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Rodrigo Petronio




A morada do sol


 

Ela deve estar agora frente a frente com o Amado. Muitos podem ser os seus nomes, já que não há apenas um Deus, mas um número infinito de deuses que se dispersam na matéria e tornam a mobilidade da vida possível. Ele pode ser o Grande Obscuro, o Cão de Pedra, o Sem Nome, o Inteiro Caracol, O Inteiro Desejado, o Grande Olho, o Cara Cavada, o Grande Corpo Rajado, o Mudo-Sempre, Grande Perseguido, o Sumidouro, o Máscara do Nojo, o Semeador, o Homem-Luz. Essa era a metamorfose dos pequenos deuses pessoais de Hilda Hilst. Eram os ícones do templo verbal que ela ergueu a despeito do despeito burro do mundo para com sua obra. Penso em um deles: o Cão de Pedra. É nele que se recolhem as dezenas de cães que a poeta acolheu na Casa do Sol – nome também no mínimo sugestivo? O Cão de Pedra é consubstancial aos seus amados cães, verdadeiros, reais, como Deus o é aos vestígios que nos dá de si em tudo o que vemos. Coisas que ela leu em Plotino, autor que tanto venerava.

Mas as leituras não importam. Ou melhor: só importam quando nos ensinam a transcender a palavra. O resto é literatura, como diria Verlaine, com todo o desprezo. E literatura é uma besteira se não consegue mover a paixão e a inteligência ao máximo delas mesmas, ou seja, se não é capaz de nos mover além de nós mesmos. Porque afinal, Ele não se move de si. Agora, remexendo seus livros, naquelas antigas edições Quíron ou em outras, assinadas pelo grande editor Massao Ohno, veio o baque. Percebo de maneira mais concreta a falta que a poeta vai nos fazer. Não é aquela falta egoísta ou utilitária, tão cheia de jargões empresariais, de quem lamenta a interrupção de uma obra ou de uma carreira. Isso é o de menos. É de outra ordem, uma falta existencial, como se de repente o mundo se visse privado de uma de suas peças e o Criador se visse diminuído sem uma de suas criaturas. Falta de uma pedra angular indispensável ao regulamento de sua engrenagem, um dos eixos nos quais o real se apóia para oferecer-se a nós. Perda semelhante à de um pastor que perde uma de suas rezes e assim, em seu âmago, diminui como pastor. Como se uma árvore que, sobrando em uma paisagem, tivesse sido retirada dela e, privando-lhe de beleza, priva-lhe de algo mais essencial do que todos os outros elementos que a constituem.

Leio seus versos. O caminho de dentro é um grande espaço-tempo. Sou menos quando não sou líquida. E deitei-me como quem sabe o Tempo e o vermelho: brevidade de um passo no passeio. Sem ser amado – pertenço. Hoje te canto e depois no pó que hei de ser te cantarei de novo. Como se te perdesse, assim te quero. E nem é possível acreditar que a morte exista. Aliás, podemos até chamá-la de outro nome: Insana, Fulva, Feixe de Flautas, Calha, Candeia. Por que não? E cantá-la em nomes perecíveis: Palha, Corça, Nula, Praia. E essas reflexões se misturam a coisas bem mais prosaicas. Lembro-me um dia, em casa de um amigo comum. Hilda ligou e pelo seu tartamudear intui que ele não a compreendia. Dizia que tinha enfim conseguido telefonar para Paracelso, e que este havia lhe confiado o segredo da imortalidade. Sim, Paracelso, o alquimista do século XV. Outro amigo conta que a última vez que a visitou ela havia capturado vozes do Além em um gravador, sendo que se tratava obviamente de interferências radiofônicas. E nisso havia uma mistura inexplicável de mistério, humor, mística e blague, profundidade e nonsense koan, que parece ser o segredo, senão da imortalidade, desse olor inexplicável que se desprende de sua obra e que nos atordoa em suas melhores páginas.

Não se assemelha ao que é imortal, já que este termo me soa como algo muito impoluto, frio, grandiloqüente e cheio de pose. Coisa de estátuas, medalhinhas na lapela, comendas públicas, ou seja, tudo o que Hilda não era. Assemelha-se sim a uma intensidade de vida que parece não se reger pelos mesmos critérios transitivos de nossas vidas ordinárias e comezinhas. Algo que parece se radicar no coração do real e que o devassa em seu cerne, é aquilo que lhe subjaz e faz com que ele se ofereça a nós da maneira como se oferece e que ele seja como é. E aqui vejo o quão preciosos são poetas e loucos, como Hilda. Mostram-nos a matéria irredutível de uma experiência que nos desconcerta e que até hoje não conseguimos entender e talvez nunca consigamos: existimos. Sim, existir. O louco existe, e isso lhe basta. A voz existe. A beleza subsiste nela e diz: chega. Isso lhes completa. O cantor canta – e não há como apartar o canto do cantor. A palavra sopra, existe por si e à revelia de quem quer que a leia ou ouça. Podemos dizer: é. As condições mais elementares do que há no universo são ao mesmo tempo as de mais difícil explicação. Existir. Ser.

Lembro-me que a primeira vez que li as narrativas de Ficções na adolescência tive vontade de chorar. Não de tristeza, nem de alegria, nem de nada: chorar. Alguém havia me mostrado uma coisa tenebrosa: o que é. Gesto de grande delicadeza e de acuidade intelectual esse, ensinar-nos a ver as coisas nelas mesmas. O é das coisas, para lembrar outra grande escritora. Vemos o nome dos personagens: Haydum, Kouyo, Kadek, Ruiska, Osmo, Mirtza, Kaysa, Agda, Qadós, Hamat, Hiram, Herot, Hakan, Kalau, Celonio. São praticamente entidades, entificações de forças, idéias, intensidades, formas, pensamentos, conceitos, sensações. E ao mesmo tempo, como são humanos! Mais até do que os personagens de romances urbanos, psicológicos, regionais, jornalísticos, naturalistas ou realistas. São encarnações sensíveis de algo que nos transcende – mas que nos é contíguo. Parecem provar à força o que é uma obviedade para os bons artistas: a arte não tem nada a ver com a vida, tal qual a vivemos. A arte é a vida potencializada, diversa de si, a tal ponto que se torna uma estranha de si mesma. A arte é a vida possível, mais larga do que a provável. Esta imita aquela, não o contrário, porque aquela é o motor ideal que a guia. Sou fruto do que li, mas os livros independem de mim. Tatuam-me, mas eu não os possuo. Inscrevem-me, mas não fui eu quem os escreveu. O mito precede o mundo, e assim o transforma.

Figura difícil, Hilda. E para além de qualquer bobagem romântica ou hipotética mistificação de si mesma, como querem alguns idiotas. Passou a vida sendo publicada em pequenas tiragens e elogiada por grandes nomes: Leo Gilson Ribeiro, Anatol Rosenfeld, Nelly Novaes Coelho, Sergio Milliet, Jorge de Sena, Claudio Willer, Wilson Martins, Alcir Pécora, e mais uma lista de outros. Isso alimentou seu ressentimento e sua acidez, o que é justo e compreensível. Depois começou a ser editada por Pedro Paulo de Sena Madureira, na Siciliano, e, tempos atrás, sua obra completa começou a sair pela Globo, pelas mãos de Wagner Carelli. E ela continuou reclamando. Porém, sem razão. Credora da vida – poderíamos defini-la. Sim: sentia que podia fazer o que quisesse. Deus perdoa as suas almas diletas.

Nesse ínterim, Hilda causou polêmica com suas obras pornográficas, e alguns a acusavam de falta de coerência. Como se o artista, ou seja, exatamente aquele que vive de se esquivar de si, de se negar, de se anular como indivíduo, de se perder para que os outros por meio dele se encontrem, tivesse que ter coerência com qualquer coisa. Mas isso em nada alterou o valor de sua obra. Apenas lhe acrescentou o ingrediente de uma certa polêmica criada à sua custa. A louvação do Pai e do Amado não se finda, nem a radicação terrena dessa lírica que se propôs compreender e se infundir no Outro. Porque a palavra soergue o passado e o futuro. E diz à boca do Tempo que os devore. Está renascendo a cada instante. Para além da vida, está o escrito, a linha de fogo gravada, o rio-linguagem, o devir numinoso da palavra e a corrente ancestral da poesia e da memória. Do fluxo ao floema os signos perfazem seu percurso e a vida cumpre em si o que o verbo não resume e o que as mãos não retêm. Eis o ponto final. Mas o texto se multiplicará em nós indefinidamente. Rio que nunca termina – transborda.
 



Hilda Hilst
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