Rodrigo Petronio
Celebrações de Hilda Hilst
Se pudéssemos eleger uma palavra que sintetizasse Do
Amor e, de modo geral, nos desse uma noção da trajetória literária
de Hilda Hilst ao longo dessas décadas de criação, creio que esta
seria a celebração. Mística? Não sei se esse adjetivo é pertinente,
mesmo sabendo da importância que a dimensão transcendental da
realidade tem para a autora. Talvez a simples celebração, da
existência e do momento presente como portadores de uma verdade e de
um significado ocultos, que nos escapa. Esse mistério pode ser
acessado pelo sexo, um dos temas centrais de sua obra, desenvolvido
na trilogia Contos D’Escárnio. Textos Grotescos (1990), Cartas de um
Sedutor (1991) e O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), entre outras,
ou pela ascese, que se expressa por um tratamento experimental da
linguagem, como nas novelas Fluxo-floema (1970) e Qadós (1973). Há,
porém, uma terceira via: o amor, motivo da presente antologia.
É interessante notar o nexo profundo que os poemas
compõem uns com os outros, dada a distância temporal em que foram
escritos. Em todos eles vemos o tema, o amor, funcionando como uma
experiência limite, em que o indivíduo perde sua autonomia e se
funde em algo maior. Numa fina tessitura verbal, onde encontramos
ecos sutis dos elegíacos antigos, Hilda o vê como aquele que nos
propicia um contato com a unidade do Ser, afora as separações que o
mundo dos fenômenos sensíveis nos oferece. Num dos poemas, a autora
nos diz que para pensar o “Outro” ela “delira ou verseja”, pois
pensá-lo é “gozo” e “incorpóreo é o desejo”, esta frase em
maiúsculas. A colocação deixa de ser intrigante se pensarmos que
Hilda lida com a hipótese de que há uma substância imaterial
presidindo a existência, subjacente a ela. A comunicação entre eu e
o outro, portanto, só é efetiva quando ambos reconhecem em si uma
mesma essência, que é incorpórea. Daí a presença marcante de
metáforas fluídas ao longo de suas páginas, relacionadas à água,
que, na maioria das vezes, não se articulam segundo uma lógica
linear, mas tentam sim mostrar a ligação entre os objetos invocados,
e a sensação de que:
Sou menos
Quando não sou líquida.
O mundo, com suas repartições, é ilusório; o que está
por trás da aparência é que importa, porque une todos os seres. O
cerne de sua poesia parece ser a procura dessa matéria invisível que
permeia todas as coisas. Essa matéria, que é Deus, como ela disse em
certa entrevista, está até no “mijo e no escarro”, mas não é nenhum
dos dois - assim faz, talvez sem sabê-lo, uma releitura do
conceito de participação, presente já em Platão, e desenvolvido por
Tomás de Aquino e algumas correntes da mística cristã. O sexo, o
amor e a ascese, bem como diversos estados limítrofes da
consciência, são formas privilegiadas de que dispomos para conhecer
esse Outro, que pode ser tanto o ser amado quanto uma denominação
para Deus. Mas há também a loucura, que tanto fascinou e fascina a
escritora.
Filha do poeta Apolonio de Almeida Prado Hilst, que
enlouqueceu aos 38 anos, a imagem do pai sempre lhe foi muito forte,
e esteve sempre presente em sua obra. Hilda Hilst pertence, nesse
sentido, à linhagem dos autores brasileiros excêntricos, de
Sousândrade e Qorpo-Santo. Mas, diferente destes, ainda que mal
estudada pela crítica e não compreendida por uma parcela do público,
não vai ter de aguardar um século para ter sua obra apreciada e
comentada.
O que a autora define como loucura talvez seja
tão-somente a liberdade criativa com que forjou sua escrita, sem
concessões ou eufemismos, acreditando que seja
Mais certo mostrar
Insolências no verso do que mentir decerto.
postura que lhe custou as alcunhas de obscena e
obscura.
Os poemas reunidos em Do Amor vêm para quebrar esse
estigma, e mostrar uma lírica cristalina, ornada de conceitos
metafísicos, onde os raros clichês, quando inseridos no conjunto,
tomam proporção irrelevante. Como diria Propércio, o amor não gosta
dos artifícios da beleza. Eis aqui amor e beleza celebrados, sem
artifícios.
Leia a obra de Hilda Hilst
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