Roberto Pontes
A poesia do
tempo
Da poesia cearense
atual ressoam a nível nacional as vozes cristalinas de Gerardo Mello
Mourão – radicado há décadas no sudeste brasileiro –, do cantador
popular Patativa do Assaré, do versejador de raízes sociais Pedro
Lyra, do até aqui pouco conhecido Alcides Pinto e deste mais que
surpreendente bardo, também vitimado pelos anos de chumbo, Roberto
Pontes.
Pela enésima vez deve
repetir-se aqui o velho chavão segundo o qual a poesia da província
infelizmente não repercute a nível nacional além do eixo Rio-São
Paulo, traduzindo uma realidade possivelmente devida ao gigantismo
continental do país e às seqüelas da aparição do regime federalista
só a contar da República, ou seja, de um século para cá.
Então é lamentável
ver-se estiolarem nas fronteiras de sua pequena região poetas
federais (como queria Drummond) como Florisvaldo Mattos, na Bahia,
Mário Quintana (falecido), no Rio Grande do Sul, e Manuel de Barros
– este capaz de desejar a um jornalista: "obrigado por tentar tirar
algo do nada". Obviamente, temos aí uma boutade do poeta ou a
tradução de uma realidade interior?
Provincianismos à
parte, obrigatório imporem-se os condões dos artistas capazes de
abrir os olhos de uma geração para acontecimentos ocorridos à sua
volta – exemplo de Roberto Pontes –, captados pela antena mágica de
quem deixa "cair do queixo a interrogação/ tatuada nos rostos de
abismo", porque "a palavra é/ pra desencantar", convencido o poeta,
mais que ninguém, que a "noite eterna cairá/ e do seu âmago fluirá a
paz".
Autor embrenhado nas
sendas da criação desde os idos de 1964 – caminhando e fazendo o seu
caminho, porque, como disse outro poeta, "o caminho não existe, o
caminho se faz", Roberto Pontes incendeia o verbo encarnado há mais
de três décadas, sem jamais esmorecer e sem jamais produzir
literatura chapa branca ou poesia de ocasião para agradar à
burguesia sedenta de satisfação estética perfeitamente tranqüila e
dotada do necessaário soporífero.
O poeta se dispõe a
assumir sua tarefa como um compromisso e jamais como um deleite para
entorpecer as consciências, justificando sua atitude muitas vezes
como alguma coisa "tatuada nos rostos de abismo", sem olvidar jamais
a promessa de que "um dia/ quando as noites forem mansas/ e os dias
tristes/ todos entenderão o sentido destes versos".
E neste diapasão,
colocando sua dicção no alvorecer da antemanhã, ele projeta o
futuro: "quando as noites forem novas/ e os dias perpétuo carnaval",
tudo poderia se tornar uma "branca voz/ de alvorada". Mas a seguir o
criador se depara com situação embaraçosa – no exato instante em que
resolve tributar ao velho Ho Chi Minh a homenagem da certeza de que
"o pássaro amarelo/ vai cumprindo seu destino", sem esquecer de se
voltar para um antigo colega de colégio, Frei Tito, a quem lembra
candidamente, que "os ausentes necessitam sempre/ bilhetes",
arrematando que "dos ausentes fica sempre um sorriso".
Roberto Pontes não é um
poeta ingênuo, imaturo e voltado ao bestialógico do primarismo
estéril – professor universitário (Literatura) e bacharel em
Direito, percorre a margem do rio há pelo menos uma geração e
aprendeu, no terrível período turbulento responsável pela destruição
de de milhares de brasileiros, não ser possível erguer as mãos para
uma falsa democracia lastreada em bases inócuas e absolutamente
hostis.
Mas, embora esse Verbo
encarnado condense toda a biografia poética do autor (numa espécie
de obra completa), não colhe o leitor nestas páginas o azedume de
alguém ressentido, amargurado ou entregue a situações de desabafo
catártico – antes, pelo contrário: aqui surgem, como brotando do
solo fértil, bafejados pela natureza, o poema dos meninos azuis ("as
flores do esqueleto/ são minério e cor"), a contemplação perfeita do
mistério da natureza (‘olha como se amam as borboletas/ que fiam
corpos no mistério") e a exata compreensão de que "um arco-íris se
planta/ onde mora a consciência"– adiantando o artista para os
pósteros que "há retalhos de memória semelhantes a certeza".
Roberto Pontes não sabe
"para onde vai a história/ em seu velório carpido", dispõe de
"migalhas de tempo no bolso", mas não quer a direção em que nós
vamos". O tempo se dilui lentamente e murcha os nossos olhos,
adverte o poeta, para logo descobrir que o "búzio dorme na madeira
enxuta/ e dentro dele, represado, o mar".
Cumpre reiterar não
estarmos diante de um autor da obviedade – não podemos aqui esperar
os lances dispersos de uma musicalidade tropeçante. Roberto Pontes
canta o seu dia e a sua hora, contemplando a janela do tempo, jamais
estereotipado em ritmos e dissonâncias obsoletas, viajando na
captação do instante por vir. Um poeta do seu tempo e da sua
colheita, interessado na construção de algo mais sólido que a pura
dispnéia do prazer, da experimentação lúdica e do império da
satisfação. Ele adverte para a perenidade da espécie na Terra e
levanta sua voz: "As uvas pétreas/ jamais se douram/ junto ao
símbolo marinho".
ALBERTO DA SILVA é jornalista (Tribuna de Notícias-RJ;
jornal RioArte; Revista Poesia Sempre) e escritor, autor de Cinema e
humanismo (ensaio) e A primavera mora na rua (contos).
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