Rubens Ricupero
João Cabral de Melo Neto
Quando soube que
João Cabral tinha morrido, meu primeiro impulso foi escutar de novo
sua voz pernambucana, tão inesperada para quem só o conheceu por
ouvir dizer e o associa a palavras como cerebral, lógico, asséptico.
Logo me dei conta de que era impossível. Meu único exemplar do velho
78 rotações da editora Festa, no qual ele dividia o vinil com Murilo
Mendes, eu o dera de presente ao próprio João, que me contara ter
ficado sem nenhuma cópia do disco.
Foi em 1961,
quando a renúncia de Jânio deixara João Cabral sem funções. Ele
viera do exterior para ser chefe de gabinete de seu primo, Romero
Cabral Costa, ministro da Agricultura, e de repente não tinha mais o
que fazer. Eu tampouco tinha muito, pois o gabinete do ministro San
Tiago Dantas ficara às moscas depois que a renúncia parecia ter
provocado a volta da capital para o Rio de Janeiro.
Passávamos horas
em conversas no segundo andar do Ministério da Saúde, sede
provisória do Itamaraty em Brasília, até que João foi encarregado de
fotocopiar o acervo relativo ao Brasil no Arquivo das Índias, em
Sevilha. Foi assim que escutei muitas de suas histórias sobre a vida
diplomática.
Pois o que não
se diz na maioria dos artigos que lhe foram dedicados é como ele foi
sempre funcionário exemplar, tão rigoroso e preciso na profissão
como na poesia. Em razão desta última, preferia, como um dia me
explicou, postos menores, muitas vezes de consulados, que não
exigissem a absorção total que devia a uma atividade mais alta. João
escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada: quando ninguém
mais há de lembrar os nomes eminentemente descartáveis de nós
outros, embaixadores e ministros, seus poemas continuarão a ser
lidos desde os bancos escolares.
Em belo
editorial da Folha, dias atrás, lembrava-se de que ele era dos
últimos elos que nos prendiam a um Brasil mais confiante em si
mesmo, mais capaz de gerar arte e pensamento próprios e originais,
sem copiar modelos. Podia-se ter acrescentado que, curiosamente,
quatro das grandes expressões criativas daquele Brasil dessa metade
do século eram vinculadas ao Itamaraty e tinham vivido prolongados
períodos no estrangeiro: Guimarães Rosa, Cabral, Vinícius, todos
diplomatas, e Clarice Lispector, casada com nosso colega Maury
Gurgel Valente. Não é este o lugar para examinar a relação, casual
ou não, do Itamaraty com a cultura brasileira, mas fique aqui o
registro pelo que possa valer.
Também não se
falou quase nada sobre seu humor e a coragem com que suportou a dura
perseguição do macarthismo da época da Guerra Fria, infelizmente a
cara oculta dos anos 50. A história que vou contar diz muito sobre a
força de suas convicções e o humor com que desafiou a injustiça.
Em 53, empenhado
em derrubar Vargas a todo custo, Lacerda lança em seu jornal
campanha sensacionalista contra uma famigerada célula comunista
Bolívar, que teria sido descoberta no Itamaraty graças à violação da
correspondência particular (como se vê, os grampos telefônicos de
hoje têm brilhantes antecedentes na tradição inquisitorial deste
povo cordial por excelência).
João Cabral é
acusado junto com outros e sabe-se condenado de antemão, pois o
governo, enfraquecido, se dispõe a lançar às feras alguns cordeiros
expiatórios. No inquérito “pro forma” para tentar legitimar a farsa,
um dos inquisidores, um general, lhe faz a inevitável e estúpida
questão da época, que se havia feito a Prestes, quando senador. “Em
caso de guerra entre o Brasil e a União Soviética, que lado o Senhor
escolheria?” Sem hesitar, João responde: “O Brasil”. Mas, não se
agüentando, acrescenta: “General, o senhor não deve tirar nenhuma
conclusão indevida de minha resposta. Se houver guerra entre o
Brasil, de um lado, e a Rússia e o resto do mundo, do outro, eu
escolho o Brasil. Mas, se tiver guerra entre Pernambuco e o resto do
Brasil, fico com Pernambuco. Ou, ainda, se a guerra for entre o
Recife e o resto de Pernambuco, escolho o Recife. Em caso de
conflito entre meu bairro e o resto do Recife, brigo pelo meu
bairro. O senhor compreende, general, é questão de filosofia:
prefiro sempre o particular ao geral”...
Foi condenado,
sofreu muito, acabou voltando, pois existia ainda o Estado de
Direito. Quando este foi suprimido em 64, temeu o pior, mas a
vaidade de Castello Branco, que gostava de se dar ares de
intelectual, foi providencial, mesmo após o sucesso, para ele
inoportuno, de “Morte e Vida Severina”, em festival na França.
Ao contrário,
porém, do que se diz, João nunca abandonou a luta. Continuou-a com a
única arma que tinha, a poesia. Como, por exemplo, em 84, no “Auto
do Frade”, sobre o dia da execução de frei Joaquim do Amor Divino
Caneca, em que se encontra esta meditação sobre a morte: “Temo a
morte, embora saiba // que é uma conta devida. // Devemos todos a
Deus // o preço de nossa vida // e a pagamos com a morte. // (...)
Nessa contabilidade // morte e vida se equilibram, // e, embora no
livro-caixa, // (...) apareça favorável, // e sempre, o saldo da
vida, // no dia do fim do mundo // serão iguais as partidas”. Frei
Caneca, “tão justas as coisas via, // que uma cidade solar // pensei
que construiria”. Dele dizia o povo, “na sua boca tudo é claro, //
como é claro o dois e dois quatro”. E concluía: “Crê no mundo, e
quis consertá-lo. // E ainda crê, já condenado? // Sabe que não o
consertará. / Mas que virão para imitá-lo”.
João Cabral de Melo Neto
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