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Rubens Ricupero
 

 

 

 

 

 

 

Rebrilha a glória


Folha de S. Paulo

 

Houve tempo em que todo brasileiro sabia de cor a "Canção do Soldado". A mais popular de nossas músicas militares, a ela se podia aplicar a estrofe inicial: "Nós somos da Pátria amada / fiéis soldados por ela amados". Em popularidade, só chegou perto a "Canção do Expedicionário". Impregnada do lirismo de Guilherme de Almeida, o "Príncipe dos Poetas" evocava a diversidade dos soldados da FEB: "Você sabe de onde eu venho?" e a recheava com o melhor da alma lírica brasileira, os versos de Gonçalves Dias sobre a terra das palmeiras onde canta o sabiá.

No dia 7, domingo de garoa paulistana, lembrando a "Londres de neblinas frias" de Mário de Andrade, arranquei-me com esforço da poltrona à sombra da estante, para assistir, no teatro do Sesc em Pinheiros, à inauguração de ciclo dedicado ao sopro no Brasil. No meio do espetáculo, que foi todo, do começo ao fim, um deslumbramento, o gris friorento da tarde viu-se escorraçado pela súbita explosão laranja-escarlate dos fulgurantes metais da retreta: tuba, bombardina, trombones, trompetes. Era a Banda da Mantiqueira que descia as escadas atacando com brio a "Canção do Soldado". Não houve quem não se erguesse para cantar ou marcar o compasso com as palmas. Fiquei a cismar sobre o porquê do intenso brasileirismo da canção. Além da melodia, mais jubilosa que bélica, acho que se deve a dois fatores.

O primeiro é a letra. Assim como nos hinos oficiais ou nos sambas-enredos, ela está encharcada do gongorismo popular, o equivalente, na poesia, ao estilo primitivo ou ingênuo na pintura e escultura. Veja-se esta escolha kitsch de palavras: "Nas cores da nossa farda / Rebrilha a glória / Fulge a vitória". Esse "rebrilha" é um achado! Uma amiga minha, Marília Sardenberg Zelner, hoje cônsul-geral no Porto, filha de militar, tendo peregrinado, na infância, de quartel em quartel, chamou sua boneca de "Rebrilha Glória", como se fosse um nome duplo.

O outro aspecto é o da ideologia popular de rejeição da guerra, da cultura brasileira da paz. Quem imaginaria o exército prussiano, os truculentos fuzileiros ianques, até os chilenos de passo de ganso, cujo lema é "Por la razón o por la fuerza", marchando ao som de um hino ao pacifismo. "A paz, queremos com fervor/A guerra, só nos causa dor"?

Mas não vim aqui falar de música militar, e sim do "Sopro do Brasil". É imperdível, embora eu mesmo, que tive de voltar a meu exílio sem sabiá, terei de perder o resto do ciclo. Se fosse crítico, escreveria sobre tudo que me fascinou. Para começar, as crianças, bando alegre que invade a cena com assobios, apitos, varinhas mágicas que sibilam no ar com sons incríveis.

Logo após a alegria da infância, a do menino de 80 anos, "seu" Tavares da Gaita, sertanejo miúdo de Caruaru, de chapeuzinho e roupinha modesta, que transforma a gaita de boca em orquestra de forró, com harmonia, ritmo, melodia. Não contente, ainda inventa instrumentos, a combinação de talento na tradição e criatividade na busca, que é a marca do nosso povo. Em contraponto erudito, mas dentro da mesma linha de inventividade, o grupo Uitku, sutilíssimo nos instrumentos de sonoridades cósmicas, que fazem da "Aquarela do Brasil" uma peça de vanguarda.

A Mantiqueira, então é, puro deleite. Regalei-me, sobretudo, com os maxixes de Pixinguinha. Menino ainda, fui dos que redescobriram, há meio século, no teatro do largo da Concórdia, a Velha Guarda ressuscitada por Almirante, com sobreviventes de Os Oito Batutas, Donga, por exemplo, tocando prato e faca. Lundus, sambas de roda, pontos de macumba. Nunca mais tinha ouvido ao vivo alguns desses maxixes, como "Proezas do Solon", o dentista de Pixinguinha, que nos trazem de volta o Rio de Machado de Assis.

O maestro Pestana, de "Um Homem Célebre", cujo sonho era emular Mozart e só conseguia tirar do piano polcas buliçosas, de nomes estrambóticos ou brejeiros como "Candongas Não Fazem Festa" ou "Não Bula Comigo, Nhonhô". O velho bruxo não era um visual. Sua literatura é muito mais povoada de música, ópera, teatro, que de pintura. Além do Pestana, do tenor aposentado, amigo de Dom Casmurro, o maestro Romão Pires, o Queirós, de "O Diplomático", que inspirava o comentário: "Não imaginam como ele é saudoso na flauta!".

É esse o nó do problema. A flauta, a clarineta, a retreta do coreto eram indispensáveis no passado. Depois, a música brasileira empobreceu de certa forma e se limitou às cordas e à percussão. Ótimas, sem dúvida, mas falta algo. O que seria do jazz sem os metais que os ex-escravos obtiveram das bandas militares da Guerra Civil? Temos de resgatar nossos metais e madeiras. Como menino que tentou, sem talento, aprender flauta, sax, ocarina, gaita, conservo a paixão frustrada do sopro. Fiquei, assim, feliz com a iniciativa de valorizar o sopro.

Miriam Taubkin, a diretora, fez uma apresentação de grande singeleza e sensibilidade. Sopro, lembrou, é espírito. Estar inspirado é ter dentro de si o sopro, o mesmo com que Deus deu vida ao barro.

No livro dos Reis, quando Elias foge à fúria de Jezabel e espera na montanha que o Senhor lhe fale, desencadeia-se um furacão, a terra é abalada por terremoto e devastada por incêndio, mas Iahweh não estava em nenhum desses eventos espetaculares. Em seguida, há o murmúrio de uma brisa suave. Quando o ouve, Elias cobre o rosto com o manto, sai da gruta porque o Senhor estava na brisa. O espírito sopra onde quer. Neste domingo, às 18h, ele sopra no Sesc da Paes Leme. Não deixe que ele se esvaia no ar sem tocá-los.

Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


 

A propósito deste artigo de Rubens Ricúpero, recebi um esclarecimento sobre a autoria da Canção do Soldado e respectivos plágios, uma matéria super interessante, veja logo abaixo.

 

 

     

 

   
Elizabeth Marinheiro

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Edna Menezes

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!  

Ciro Correia França

francaciro@yahoo.com

 

 

 

 

 

 

Sent: Friday, September 04, 2009 5:03 PM

Subject: Canção do soldado


 

Prezado poeta Soares Feitosa,

 

                   Li no seu site o artigo do ministro Ricupero no qual ela registra seu júbilo ao ter escutado a velha Canção do Soldado.

                   Como o jornal A Gazeta do Povo, de Curitiba, publicou recentemente ( no dia 27 de agosto) artigo de minha autoria sobre a história desse belo dobrado, tomo a liberdade de enviá-lo ao amigo, pedindo-lhe que, caso possível, dê ciência dele ao ministro. Cordialmente,

 

                                      Ciro C. França

 

 

 

A HISTÓRIA DA CANÇÃO DO SOLDADO

 

 

A Europa vivia o início da primeira conflagração mundial e o Brasil, embora distante do teatro da guerra, necessitava fortalecer o seu Exército, não só diante do que ocorria  no velho continente, cujas consequências já eram sentidas aqui, mas também por questões internas. 

  A  propaganda de guerra desenvolvida pelos dois blocos beligerantes suscitou  discussões em torno da nacionalidade, e essas propiciaram ao governo as condições favoráveis para - entre outras medidas - tirar do papel a lei do Sorteio Militar, promulgada em 1908.

  Avivar os sentimentos patrióticos dos jovens, especialmente daqueles de  classe social mais alta, para aproximá-los da causa cívica, fazia parte do programa de remodelação do Exército, já desencadeado pelo Estado.

Além da ameaça externa, as dissensões políticas e os tumultos civis internos que ainda marcavam a jovem república brasileira, tornavam nítida a necessidade da organização de um exército forte, disciplinado e competente, capaz de impor-se pela participação no desenvolvimento do país e na formação da consciência nacional. Para consolidar o programa era necessário um movimento de opinião, uma campanha de convencimento, à qual foi chamado a participar o poeta Olavo Bilac, que iniciara em 1915 os seus primeiros discursos nesse sentido.

Criada a Liga de Defesa Nacional, Bilac eletrizou o país fazendo conferências e proferindo discursos para estudantes e militares, numa cruzada pela conscientização da juventude. 

Foi naquele clima de entusiasmo nacionalista criado não só pela propaganda do Estado,  mas também pelo  fantasma da guerra , que um Sargento Telegrafista do Primeiro  Batalhão de Engenheiros  teve os seus sentimentos cívicos alvoroçados pelos acordes de um dobrado de autoria desconhecida que escutou no Rio de Janeiro,  e   resolveu dar-lhe uma letra.  Com os seus versos nasceu a primeira canção militar brasileira, que ele intitulou  Da Pátria Guardas.

“ Em 914 ou 15 eu conheci, tocado pelas bandas do Rio,  um dobrado muito bonito. Melodia alegre e marcial em todas as suas três partes. Amante da boa música, fiquei querendo-o bem. Chamava-se Capitão Cassulo. Como seria bonita uma canção militar com aquela melodia suave e comunicativa! Dei-lhe pois uns versos que falavam com certa insistência  da sublime missão do soldado  em seu apostolado cívico. Destacava-o como  guarda permanente da Pátria.” (Letra da Canção do Soldado autografada pelo Ten.Cel. Alberto A. Martins).

São palavras publicadas em maio de 1949, na Revista do Clube Militar - sob o título Erro Legislativo - pelo autor dos versos da conhecida Canção do Soldado, o   curitibano Alberto Augusto Martins, nascido em frente ao antigo Fórum , na avenida Marechal Floriano Peixoto. 

Com a execução do Sorteio Militar - escreveu Martins - o Exército passou por  profunda modificação em sua estrutura.  Era necessário preparar  cenário adequado  para os novos soldados. E a canção militar foi um grande veículo dessa inteligente propaganda.”

Difundido pelo rádio, executado pelas bandas militares de todo o país,  incorporado  pelo Exército e pelo povo,  o dobrado ganhou  popularidade nacional.

Não poderia supor o então sargento Martins, que os seus versos viriam a lhe causar aborrecimentos.

Com a popularidade da canção , vieram as apropriações. Em São Paulo,  tomou o nome de Canção do Soldado Paulista, no Rio Grande do Sul e em Minas, chamaram-na de Amor Febril, nas publicações militares  passou a chamar-se Canção do Exército, de autoria anônima. Recebeu também adendos obtusos, além de aparecer como sendo obra de um  sr. F. Fonseca - observou Euclides Bandeira , a quem Martins se queixou por carta: Minha canção, apenas divulgada, foi adulterada! 

Pelo jornal Diário da Tarde, de Curitiba, mais de uma vez Bandeira referiu-se   à canção, reclamando da omissão do nome de Martins como autor dos versos e  contra as impropriedades adicionadas às suas rimas.

Também indignado com os erros com que era citada a canção no  hinário do Exército, seu superior hierárquico, o capitão José Azevedo da Silveira Sobrinho,  escreveu para o jornal A Noite, do Rio, esclarecendo definitivamente a autoria dos versos.

Com o reconhecimento alcançado graças ao gesto do seu capitão, Martins ganhou os apelidos  de “Pátria Amada” e  de “Amor Febril”, que não o incomodavam. Os que o conheceram dizem que era de trato fácil e agradável, e até mesmo que gostava dos apelidos.

Talvez o incomodasse mais  a curiosa paródia que um humorista carioca fez dos seus versos e que tornou-se tão popular entre  estudantes quanto as  rimas originais.   

O que realmente  angustiava o sargento Martins era desconhecer o nome do autor da melodia . E conviveu quase 30 anos com a curiosidade de saber com quem  partilhar  o sucesso da canção, o que veio a acontecer na década de quarenta, de forma inusitada. Residindo no Rio, sabia apenas que o autor não seria de lá.  Se o fosse, não teria permanecido incógnito por tanto tempo, diante do  sucesso que a canção alcançou.

Na busca do autor, Martins consultou um conhecido compositor popular e colheu o nome provável de um músico militar pernambucano, já falecido, que ele anotou com carinho: Euclides da Costa Maranhão.  Era apenas uma possibilidade.

Com a declaração de guerra, em 1942, Martins substituiu alguns versos e acrescentou outros doze à poesia original, adaptando-a ao momento histórico. Com eles, a canção tomou novo impulso e embalou os já exaltados sentimentos de patriotismo dos soldados brasileiros, que teriam importante  participação  no conflito. (Ao lado, o Ten. Cel. Alberto Augusto Martins, autor da letra da Canção do Soldado).

Passados quase trinta anos do sucesso, surgiu em Belém do Pará, durante a guerra, o músico Teófilo Dolor Monteiro de Magalhães, reivindicando a autoria da canção, que teria composto em 1911, segundo afirmou.

Ao tomar conhecimento da revelação daquele músico, Martins procurou-o  imediatamente e, apesar da má impressão que teve de Teófilo  (que alegou ter perdido os documentos e a partitura da música durante um naufrágio)    “...acreditei nele” – disse  em carta ao jornalista Saul Lupion Quadros -” e procurei auxiliá-lo naquilo que julgava ser sua reabilitação como notável músico”.

Militar patriota, cidadão cordato e correto, incapaz de supor que alguém fosse capaz da vilania de intitular-se autor daquilo que não produziu - especialmente tratando-se de um louvor cívico - Martins acreditou de boa fé estar diante do compositor do Capitão Cassulo. Com a ajuda de Martins, Teófilo conseguiu junto à empresa fonográfica Odeon  o registro do seu nome como compositor do célebre dobrado.

Difundido  pelo rádio  para todo o país – com Teófilo agora citado como autor - não demorou para que surgissem protestos vindos de Pernambuco, contestando aquele músico e reclamando a autoria da canção a um músico daquele Estado.

Estava criada a polêmica.

Teófilo insistiu na autoria e, quanto mais insistiu, sem prová-la -, mais se fizeram ouvir os protestos dos pernambucanos.      

Por fim, foi encontrada no Recife, datada de 1909, a partitura original da melodia, do próprio punho do autor: o modesto músico militar pernambucano, Euclides da Costa Maranhão.  Aquele mesmo precioso nome que eu um dia recolhi e guardei carinhosamente - registrou Martins em seu artigo.

Mas a revelação do nome do verdadeiro autor não colocou ponto final na trajetória polêmica da canção. 

Depois de ter banido da memória o episódio, foi com espanto que Martins deparou em jornais de maio de 1948, com a seguinte notícia:

“Camara dos Deputados – presentes  185 deputados, teve início a ordem do dia com  o Projeto no. 387-B, que concede uma pensão mensal de mil cruzeiros a Teófilo Dolor  Monteiro de Magalhães, autor da Canção do Soldado.”

Indignado com a pretensão absurda, Martins redigiu o artigo Erro Legislativo e encaminhou-a à Revista do Clube Militar, historiando os fatos e desmascarando a fraude, na tentativa de evitá-la.  Seu artigo, no entanto, só foi publicado  quase um ano depois  - disse ele ,   “mercê da curiosa prática das publicações mensais quando atrasadas, de não darem saída a qualquer matéria, embora de cunho relevante,  senão na tiragem corresponde  ao mês em  que  o trabalho foi entregue à redação. E assim, a calamidade não foi evitada.”

Em carta dirigida ao diretor do jornal O Dia, em outubro de 1959, pela qual agradece  ao jornalista Saul Lupion Quadros as palavras que ele escreveu sobre a canção, Martins  esclarece  que a pensão foi concedida, apesar  da manifestação contrária do então deputado Café Filho, que apresentou em plenário um memorial  da família de Euclides Maranhão  provando ser ele o verdadeiro autor da canção.

E, com um travo de amargura Martins encerra a carta, dizendo: Por isso tudo, meu amigo, e em consequência de fato considerado de elevado sentido moral e cívico, temos como pensionista do Estado um reles usurpador.”

Ao abordar a canção  em um de seus artigos escrito antes do episódio da fraude, Euclides Bandeira parece antever a reação dos pernambucanos, ao dizer: Ahí fica o reparo. O de que precisamos é, como em 1914-15, repetir: Nós somos da Pátria guardas.

                                                                           Ciro Correia França

 

     

 

   
Renata Palottini

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Maria Georgina Albuquerque

 

 

 

 

 

 

 

 

20.01.2005