Sébastien
Joachim
César Leal,
poesia e revolução
Henri Meschonnic, no seu Ecrire Hugo, abre
sobre Les feuilles d'automne um parágrafo interessante
intitulado Poesie et action, onde fala do papel social da
escritura. Antes dele, T.W. Adorno e J.F. Lyotard tinham
singularmente frisado a relação ação/escritura. Com eles podemos
reafirmar que escrever é agir, quando a obra de arte inscreve uma
ruptura, uma desconstrução-reconstrução ao nível da linguagem. A
aurora de uma tradição marca um desejo saciado, uma ideologia. O
poeta verdadeiro encerra a tradição assumindo-a, aniquilando-a, como
um processo digestivo quando destruímos o que nos nutre. A
anti-ideologia, a contra-proposta estética fazem do poeta um
revolucionário. Gostaria de esboçar um desenvolvimento desta
concepção com
a ajuda do Tambor Cósmico, de César Leal.
O "scriptor" do Tambor Cósmico não
precisa, como artista, sair à rua no papel de porta-estandarte de
nenhum movimento de contestação: caberia essa forma de militância a
sua faceta de "animal politicus". Seu protesto se exerce ao
nível da "libido scribendi". Poeta ele é? Sim. Então ele age,
ele perturba — homo ludens — poeta. Aliás, este artista
publica uma obra parcimoniosa, talvez por carência de audiência
adequada (os Happy few com os quais sonhava Stendhal), talvez
por medo de se institucionalizar, de se intradicionalizar. Com
efeito, os poemas contidos neste volume não se destacam pela
quantidade. A qualidade é sua força predominante. Não se comparam ao
rio hugoano nem às centenas de praias poéticas de Manuel Bandeira.
Eles parecem constituídos, como os poemas de T. S. Eliot, de
enseadas. Mas, em cada uma delas, efetuam-se manobras de linguagem,
uma operação textual que conta e entre as mais originais, audaciosas
e críticas sobre a expressão poética.
Desde O Triunfo das Águas, Ursa Maior e
principalmente Quinta Estação, a linguagem é intimada à
contracomunicação. O catequismo lingüístico pretende que nós
escrevemos para "comunicar". Aqui, a arte consiste em desmentir este
credo, em desdobrar-se em brancos, em ponteados, linhas, parênteses,
aspas, nos significantes do
recurso-do-dizer-conforme-as-expectativas. É o paradoxo do
Nada-na-mesa. mas você pode servir-se à vontade, segundo suas
fantasias. Na verdade, a fantasia que funciona aí é a carência, o
contrainvestimento ideológico. A língua está em falta e toma a
dobrar-se no lugar do não dito, onde são jogadas as partidas
essenciais da pré-linguagem, da imposição do unívoco. César Leal
encena um silêncio motim. O combate vira um corpo-a-corpo com um
objeto perdido — o corpo gratificante da mãe língua. Essa escritura
figura o desmancha-prazer burguês de outros poetas bem conhecidos:
Brecht, Beckett. Falar é saber se calar. Neste silêncio ativo,
defrontamo-nos com os leões do infra-mundo de uma fantasia
desinvestida, com sua farra selvagem e sua insubmissão. O artista
abre brechas, fissuras no texto pela multiplicação de sinais
gramaticais e supra-segmentais que levam à denegação, não apenas ao
nível do lexema mas, também, ao nível da linha:
/.................../
.....................
( )
ou da verticalidade e perspectiva:
// //
Obviamente, o artista é um ser escandaloso. Podemos
prever certas reações às frustrações engendradas pelos procedimentos
primários aos quais ele reconduz o leitor condicionado pela
ideologia da linguagem transparente, adequada, e que comunica um
saber racional já decodificado.
O escândalo e o mal-estar são aqui um indício
excelente de eficiência revolucionária. O signo poético em César
Leal desconforta saudavelmente, como o de e. e. cummings tão bem
parodiado por Manuel Bandeira. Tais escrituras poéticas testemunham,
justamente, porque inquietam, espalham dúvidas sobre a retórica
admitida sobre as legislações dos manuais do bem dizer e do
bem-comunicar e sobre os primeiros princípios de uma lógica que se
dá por eterna, imutável, verdade absoluta e única. O poeta inaugura
o reino da ambigüidade, do anticódigo. Para perturbar a ordem
simbólica do discurso fálico — o discurso do poder — confisca a
criatividade, deturpa o real, confecciona mitos acondicionadores: a
obra de arte reflui em direção da mãe-língua, do Imaginário, dos
procedimentos anárquicos, agride, troca o princípio de realidade
pela força ativa de um princípio de prazer, introduz-nos na "era da
suspeita", das confusões das línguas, na expectativa de novos céus,
de nova terra.
J.F. Lyotard expressa sabedoria quando diz, do
proletariado, que este deve se resignar em adotar a operação de
conscientização da arte moderna (o texto hermético, o não
figurativo, a pop-art) sob pena de recair na escravidão
cultural da ideologia dominante, a nova arte é um pleito em seu
favor por sua meta desconstruidora, ela não se deixa consumir, aliás
a utopia da sociedade sem classes postula, implicitamente, uma
sociedade de artistas usuários da obra de arte conscientizados e não
de avaliadores do objeto estético considerado como mercadoria criada
para satisfazer a critérios éticos (bem/mal) ou políticos
(verdadeiro/falso). Objeto para além do belo e do feio, não
consumível, a poesia revolucionária deve ser o que ela já é na
Ursa Maior e no Triunfo das Águas, de César Leal:
poemas-carrefours, poemas da contra-apresentação, testemunhos de
um lugar essencial de conscientização, através de um mosaico
intertextual dotado de valor de uso, não de valor de troca. Em
outros termos, queremos dizer que esses dois grandes poemas de César
Leal são maciços estéticos consideráveis, porque neles fica inscrita
uma dupla desconstrução irrecuperável pelas facções ideológicas de
qualquer procedência: a desconstrução ao nível semântico (inserção
de linguagem alheias ao poético, isto é, violação dos códigos
estéticos recebidos, em outros termos, infração ao código cultural),
a desconstrução ao nível discursivo (instauração de um processo
intersemiótico onde trabalham sintagmática e paradigmaticamente o
icônico, a representação, o empréstimo, o enxerto, a colagem, a
justaposição, a co-colocação, o jogo à revelia da instituição sobre
as micro-unidades, os morfemas, a sintaxe, o insólito da "dispositio",
a contra-fantasia, numa só palavra e com J.F. Lyotard: instauração
de uma ordem "figural".
Alguns críticos podem não gostar desta obra poética.
De gustibus et coloribus... diziam os velhos mestres. Então
nada há de surpreendente que esteja omitido o nome de César Leal nos
Dicionários Literários. O autor do Tambor Cósmico não tem por
que se queixar: outros reconhecimentos cingem-lhe a fronte de
louros. Há muitos anos, sentinelas de elevado nível crítico como
Oswaldino Marques, Osman Lins, Fábio Lucas, Fausto Cunha, Alphonsus
de Guimarães Filho, Abgar Renault, Ormindo Pires e outros aclamaram
a modernidade de A Quinta Estação; os contornos de O
Triunfo das Águas foram explorados filosoficamente por Leônidas
Câmara, doutor e docente livre em Teoria Literária da
Universidade Federal Fluminense, sem dúvida um dos mais
competentes críticos brasileiros da atualidade. Seus poemas foram
esteticamente estudados por Mauro Mota, João Batista de Melo Pinto,
Nelson Saldanha, Femando Py, Temístocles Linhares, José Rodrigues de
Paiva. Mauro Mota destacou, especialmente, as Invenções da Noite
Menor — essa parte mais acessível, menos erudita, menos
revolucionária do Tambor Cósmico. Mas — para além do apanhado
panorâmico de Cassiano Ricardo, na introdução do Tambor Cósmico
— existem percursos mais exaustivos desse universo poético.
Assinalamos particularmente a tese da profa. Ana Lúcia Lapenda (Tambor
Cósmico: Uma visão do Poético Absoluto, Editora Universitária,
1981)merece citação especial a pesquisa de José Domício Coutinho com
a qual obteve o grau de Ph. D. em Literatura comparada pela City
University of New york (César Leal Simbolismo e Linguagem, 350pp.)
Embora ele tenha redigido sua tese nos Estados Unidos, sob a
orientação do professor Gregory Rabassa, José Domício Coutinho é na
América em caráter permanente é brasileiro. E ainda que tenha
residência na América em caráter permanente é pernambucano, e como
tal, suspeito de nacionalismo ou regionalismo literários.
Mas depõem a favor da poesia de César Leal vozes de
fora. Por exemplo o físico nuclear, filósofo das ciências e
humanista italiano Carlo Borghi, ao descrever o Universo
Geodésico, ilustra teoremas de Einstein e Levi-Civica citando
expressamente versos de O Triunfo das Águas, de César Leal. A
revista "Europe" que se edita em Paris, em seu número de setembro de
1982, publica um poema de César Leal, em tradução do poeta e
professor Oliver Luneau, tradutor para o francês de Invenções da
Noite Menor, considerando o Tambor Cósmico um livro "
extraordinaire".
Gostaria de concluir essa introdução à poesia de
César Leal com um comentário técnico sobre a tradução de Luneau de
um dos poemas: "Canção ao Sul da Linguagem" (Chanson au sud du
Langage). Este poema não foi escolhido por sua complexidade
formal. Muito ao contrário. Ele é apenas uma amostra adequada da
problemática da tradução poética, e por isso mesmo é reveladora da
originalidade de César Leal.
Canção ao Sul da Linguagem
Quando os dias e semanas
nos trazem sempre a rotina:
— labores, cinemas gordos
enchendo os magros domingos;
quando um nutrido cigarro
se torna lívida cinza
E nossos dedos amargos
mudam-se em garfos de cal
fincados dentro da terra
como agulhas ou espinhos; |
Chanson au sud du Language
Trad: Olivier LuneauQuand jours et
puis semaines
ne nous apportent que routine:
Labeurs, maigres dimanches
que les cinémas gras, remplissent;
quand une cigarette épaisse
devient cendre livide
et quand nos doigts amers
fourches de chaux deviennent
enfoncées dans la terre
comme aiguille ou épine; |
quando fluidas mãos erguidas
como chamas ou estrelas
buscam luz, anestesiadas,
em sonâmbulos espelhos;
quando recordamos ventres
de mulheres olvidadas
— ausentes ou estendidas
no seu exílio de sono
onde translúcidos anjos
quebradiços, montam guarda;
|
quand de fluides mains levées
comme des flames, des étoiles
cherchent lumière, anesthésiées,
auprès des miroirs somnambules;
Quand nous rappelons les ventres
de femmes rejetées.
étendues et absentes
dans leur sommeil d'exil
où montent la garde, fragiles,
des anges translucides;
|
quando sonhamos famintos
no fundo escuro das fábricas
e sirenes nos preservam
de bombardeio ou naufrágios;
quando a espuma desfalece
por circunstâncias ou ventos
e os hospitais nos acolhem
— leitos de éter, gaze e linhos —
para a luz que nos acende
ou trevas que nos apagam;
quando armas apocalípticas
libertam ódios em chamas
devorantes sobre as cousas
mais que bocas devorantes;
quando algo ao mar se acrescenta
— mar noturno em sua origem —
dele o sal que nos habita
busca no amor novas órbitas
de temporária albumina
e eternas metamorfoses;
quando é removida angústia
do coração da linguagem,
emigrando como vozes
de prantos atormentados,
e gira em torno do limbo
que oculta nossas mensagens
transportadas em vogais
submersas, invisíveis
— símbolos indecifrados
pesando em nós como números; |
lorsque naus révons affamés
au fond des usines obscures
et nous prèservent les sirènes
du bombardement, des naufrages,
Lorsque l'écume se disperse
au gré des vents, des circonstances;
Quand on franchit les hôpitaux
aux lits d’éther, de gaze et lin
pour émerger à la lumière
ou pour sombrer dans les ténèbres;
Quand de terribles armes crachent
des haines enflamées
qui fondent sur les choses
plus que bouches voraces;
Lorsque la nuit gonfle la mer
dont le sel nous habite
et dans l'amour recherche
de nouvelles orbites
à l'albumine temporaire,
eternelles métamorphoses;
Quand du coeur du langage
s'éloignie enfin l'angoisse
pour émigrer comme une voix
tourmentée, gémissante
et puis tourner autour des limbes
qui cachent nos messages
transportés en voyelles
englouties, invisibles,
symboles mystérieux
qui tels des chiffres nous oppresent;
|
quando tudo isso acontece
não procuro substâncias,
o mais belo tem legendas
lúcidas, definitivas
— posto que meu coração
seja usina de palavras
mais luminosa e potente
que os obesos dicionários
meu engenho nada explica,
não responde nem indaga
quem decifra esta mensagem
vivida no ponto extremo
de raízes que se ocultam
nas águas deste poema. |
Lorsque tout cela arrive
peu m'importent les substances,
le plus beau a des légendas
lucides, définitives:
— bien qu'il existe en mon coeur
une usine de paroles
plus lumineuse et puissante
que d'obèses dictionnaires,
Mon esprit n'explique rien,
il ne sait ni ne souhaite
déchiffrer un tel message
eprouvé au point extrême
de racines qui se cachent
dans les eaux de ce poème. |
Sem dúvida, a tradução do texto de autoria de César
Leal, por Olivier Luneau, é um novo dizer/viver, uma nova força
enunciante. Mas é por isso mesmo que as partes são bem divididas,
como uma partitura. Por isso, o texto de César Leal, passando pela
inflexão de voz de Olivier Luneau, torna-se necessariamente um outro
texto. Em vez de acusar esse fatalismo de infidelidade, melhor seria
saudar nesse acontecimento um advento. Mas o novo objeto discursivo
nascido não é um objeto absolutamente autônomo. Ele é satelizado por
um discurso primogênito. Semanticamente, é lógico, a substância do
texto vassalizado é parasitária. O sistema semiótico posto à mostra
por Canção ao Sul da Linguagem, de César Leal, não é,
consequentemente, suplantado pelo sistema semiótico avalisado em
francês por Olivier Luneau. Ambos são interdependentes, partem para
um novo destino conjunto (cojóint).
No entanto, devemos admitir que constitui um valor
poético absoluto; um objeto estético derivado/desviado. E isso,
tanto no plano da substância quanto da forma do conteúdo. Por um
lado: uma substância portuguesa, com seu impulso, seu ritmo, seu
"tempo", suas pontuações, suas ligaduras ou suas elípses próprias.
Por outro lado: uma substância francesa com sua cadência, seus
litotes e expansões, sua economia própria. Diverge também a forma do
conteúdo: as escolhas verbais, as cadeias isotópicas características
de César Leal são, às vezes, re-cunhadas num outro registro por
sutis jogos de substituição que recompõem uma outra medida
interpretativa. Os efeitos de sentido abrem uma brecha para uma
ideologia suprente, um acesso pulsional. São numerosos os exemplos
desses desvios. Limitar-nos-emos a assinalar alguns fatos de
transferência (ritmo, apelos de som, vocabulário).
Transferência rítmica: o martelar dos quando,
no sistema primeiro, passa a ser quando alternado com lorsque, no
sistema segundo. Na sensibilidade de um arquileitor, esse quando, do
texto tutor, desperta na sua uniformidade um eco romântico (Vitor
Hugo) e neo-romântico (Henri Michaux) que remetem a uma economia de
um "pattern" estrutural que permite a César Leal ir além de
seus predecessores na visão cósmica e apocalíptica do mundo moderno.
Também, os signos de isolamento de grupos sintáticos (-), presentes
em todas as estrofes/seqüências anunciam, quase sempre, uma invasão
da consciência por ícones semânticos com valor de amplificação ou de
aposição ao grupo sintático imediatamente anterior. A tradução apaga
cinco entre os seis, e conserva o último (posto que), indicador da
intelectualidade do tradutor ou da substância da língua de chegada
do que o fato poético da língua de partida. Muito rico de
ensinamento fica a comparação dos dois primeiros "versos", em ambos
os textos:
quando os dias e semanas —
quand jours et puis semaines
nos trazem sempre a rotina — ne
nous apportent que routine.
Obviamente, a reescritura do texto insiste sobre a
sucessividade de (puis) no primeiro verso, ao passo que o texto de
César Leal utilizava os recursos da ambigüidade poética contida no
/e/, postulando simultaneidade e sucessividade. Igualmente, a
instância enunciativa segunda restringe a abertura do /sempre/ de
valor repetitivo e durativo, encurvando-o para o "ne... que"
(apenas). Ora, essas tênues considerações de pura forma nos levam às
fronteiras do semântico. Poderiam incitar semelhantes anotações os
apelos de sons em fim de versos, quer intraestróficos (como
erguidos/ estendidos) na segunda estrofe, quer extraestróficos (como
espinhos/ espelhos) entre a primeira e a segunda estrofe. A tradução
não assume, neste nível, a substância do conteúdo. Ela deveria fazer
isso? Em outros termos: a tradução deveria ou não procurar
concorrenciar o sistema matriz no horizonte de seu próprio sistema
derivado?
Dificil é uma adequada resposta teórica que não se
articula com uma prática. Isso nos leva a uma segunda e última ordem
de considerações. A leitura-escritura de Olivier Luneau parece ter
tentado algumas soluções à pergunta acima formulada, substituindo
certos lexemas da Canção... outros lexemas em afinidade com a
atmosfera dela na Chanson... Por exemplo, na segunda estrofe,
mulheres olvidadas/ausentes ou estendidas foram substituídas por
femmes rejetées/étendues et absentes, onde absentes faz um
feliz eco a ventres anteriormente inscrito. Mas, estou me
perguntando se a isotopia do sono (irmão da morte) iniciado pelos
termos precedentes sonâmbulos, recordamos — não está rompida pelo
fato mesmo desta substituição. Pois /olvidadas/, reforçada pela
redundância de /ausentes/, em seguida de /exílio/, e de /sono/ ...
me parece um elo de melhor força coesiva e, além disso, desprovido
de violência instituída por /rejeteé/ num universo onde o
sono ladeia a morte, um sono além disso protegido pelos anjos de
plantão (en faction).
Aí desponta-se o que chamaria a ideologia, entendida
como sistema subjacente de pensamentos, de posições discursivas, de
regras de comportamentos que nos habitam. A visão do sistema
semiótico fica, neste exato ponto, um pouco mais agressiva. Talvez
seja ela menos colorida de misticismo, se se nota que, um pouco mais
adiante, no início da estrofe 4, a enunciação segunda corrige /armas
apocalípticas/ da enunciação primeira por /terribles armes/ (Deus
terribilis est?); a tendência agressiva aí volta na
transferência de /libertam ódios/ em /crachent des haines/. É
curioso, todavia, ver o texto 2 tentar compensar certos excessos de
sua intemperância por uma recuperação/ desviação de tipo
pseudo-místico, como no penúltimo verso da quinta estrofe: /SYMBOLES
MYSTERIEUX/ para /símbolos indecifráveis/. Ora, a cadeia da isotopia
lexemática é evidentemente do registro (du chiffre), não do
registro não-digital: linguagem, vogais, indecifráveis, números.
A reescritura é, contudo, apoiada pela superfície do texto que
inscreve submersas, invisíveis, em contiguidade com vogais. Mas,
esses vocábulos pertencem a uma isotopia marítima ou aquífera em
ação através das quatro últimas seqüências.
Paro aqui. Foram apenas algumas considerações de
transferências estranhamentos familiares às melhores traduções
literárias, visto que elas são obrigadas a interpretar para além dos
valores de significação. Ora, interpretar é escolher entre a
constelação dos valores de relação, face a dois sistemas semióticos
às vezes o atual e o virtual. A tradução ideal é a cópia.
Infelizmente, existe cópia apenas onde coincide a substância signica
dos dois sistemas semióticos, isto é, dentro de uma mesma língua.
Entre línguas diferentes isso não é possível, por possuir cada uma
sua fonêmica própria. No entanto, nada impede o surgimento deste
combate singular, que tem como palco a poesia de César Leal, e onde
se defrontam: o leve e o pesado, a luz e a sombra, o pleno e o
vazio, o sonho e a técnica, o dentro e o fora, o silêncio e o grito,
o homem e a natureza, o viver e o dizer, a paz e a violência, a vida
e a morte. Convém lembrar que a canção traduzida pertence a fase
mais juvenil do poeta César Leal, tendo sido escrita em 1952. Daí
para cá, o poeta tem crescido em complexidade, a ponto de alcançar
essa dicção irredutível a qualquer outra que lhe adquiram discípulos
entre poetas de valor que surgiram em Pernambuco sob a influência de
sua poesia e de sua teorização crítica. Pois César Leal — como viu
José Guilherme Merquior é até agora o poeta brasileiro mais
preocupado com a teoria do poema. Ora, quando um artista consegue o
milagre de ter resposta — confessada ou não — nas gerações que
surgem, começa logo uma espécie de processo dinâmico e autônomo de
revezamento da chama. Sua voz pode ser apagada pelos auto falantes
do conformismo e do mercantilismo, mas César Leal será, para uma
geração pelo menos, um despertador, um vigia, e merece a Humanidade.
Leia a obra de César Leal
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