Uma família à venda?!
Eis que uma excelente
notícia chega ao mercado editorial infanto-juvenil:
Socorro Acioli, jovem e premiada escritora de obras
para crianças, ingressa nesse segmento. E o faz com
um livro de forte impacto temático: Vende-se uma
família. Surge, assim, uma indagação: que segredos
envolvem essas pessoas, capazes de sugerir um título
tão contundente à narrativa?
Trata-se de mais um
importante item do catálogo das Edições Demócrito
Rocha, com ilustrações de Suzana Paz, as quais
renderam excelente solução gráfica ao livro, quer
pela tonalidade pardacenta do papel, quer pela
miniaturização das figuras e quadros que narram, a
seu modo, fatos de um Brasil que o tempo ainda não
se encarregou de fazer extinto.
O germezinho inicial
da narrativa foi a sugestão de Frei Betto,
destinatário preferencial da história, para que a
autora recriasse a biografia do Dragão do Mar, que,
como sabemos, foi um dos heróis da saga de
libertação dos escravos na "Terra da Luz".
Apesar do apelo algo
épico da proposta, a autora preferiu deixar aos
historiadores o papel de assinalar algumas das
práticas sociais vigentes na ordem
político-ideológica, quando o Brasil ainda se
encontrava oficialmente preso ao peso da escravidão.
Isso não quer dizer que tenha prescindido da
objetividade dos dados históricos, e o fez por
intermédio do pesquisador Carlos Eduardo Bezerra,
graduado em História, Mestre em Letras pela UFC, e
doutorando em Literatura e Vida Social pela Unesp,
que trouxe de seus arquivos, por exemplo, nomes de
periódicos que trombeteavam a justeza da causa
abolicionista, como o jornal Libertador, ou ainda
detalhes sobre entidades como a Sociedade
Libertadora Aquirazense, implantada por Justiniano
de Serpa.
Boa parte do relato
tem como cenário a cidade de Aquirás, onde a autora
cria um contraponto entre dois mundos: o das
famílias de Manoel da Cunha e João de Luanda,
contraponto marcado pela ausência de liberdade, de
que os "fétidos navios negreiros, os temíveis
tumbeiros", que transportaram os africanos ao Brasil
poderiam ser a representação, sem falar na nefasta
figura do feitor Francisco das Chagas, que se torna
perseguidor de seus próprios irmãos de raça, além
dos indígenas que lá viviam aprisionados. Ao tom
sombrio do relato, conjuga-se um aspecto luminoso,
porém: o forte laço de amizade entre Álvaro, o "sinhozim"
branco e Benício, o pajem negro, irmãos de leite,
que trazem para a história a significação da
convivência harmônica em meio à diversidade
cultural.
A narrativa corre
veloz, acompanhando os passos dos irmãos até a vida
adulta, mantendo continuamente acesa a curiosidade
do leitor quanto ao "e depois", e levando-o, ao
mesmo tempo, a folhear um álbum da família
brasileira através da conjunção dos costumes das
três raças que lhe deram origem. As folhas do álbum
transcrevem rituais negros e indígenas: as artes de
curar, pela crença no poder mágico das ervas, o
canto e a dança, como alegria e consolação, as
cerimônias fúnebres, os rituais de ouvir e contar
histórias como nutrição para o espírito.
Longe de ser uma
narrativa anacrônica, Vende-se uma família atualiza
a questão da escravidão que, infelizmente, ainda diz
respeito a nós todos, habitantes do século XXI. Sob
que formatos se apresenta ela na contemporaneidade?
São perguntas de hoje, cabendo ao hoje a busca de
uma solução eficaz, para o que se conta com o poder
da leitura, atuando sutilmente na sensibilidade e na
argúcia de crianças, jovens e adultos, guiados todos
pela linguagem persuasiva da autora em foco.
Fernanda Coutinho, professora do Curso de Letras da
UFC, é doutora em Teoria da Literatura
SERVIÇO:
Vende-se uma Família
Socorro Acioli
Fundação Demócrito Rocha
Preço R$ 23,00