Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth  

Soares  Feitosa

Escreva para o editor

Titian, Noli me tangere
 

Réquiem em sol da tarde

 

“Grita, para ver se alguém te responde”

(Jó, 5,1)

 

Sim, 
a porteira do caminho do rio
ainda era a mesma.

 

A direção do rio também; 
presumo não tenham mudado o rio.

 

O benjamim, 
disseram, morrera na Seca do 93;
arrancaram-no pelo tronco.

 

Não replantaram sombra, 
nem pássaro.

 

O banco de aroeira, 
racharam-no em lenha de fogo;
O curral das vacas,
também racharam-no.

 

O chiqueiro das ovelhas, 
à esquerda da casa
e o dos bodes, 
à esquerda do das ovelhas,
sumiram todos.

 

O batente da porta-da-frente, 
e abaixo dele, outro batente,
onde uma pedra,
com um caneco d’água 
lavei os pés,
ainda estão lá,
os batentes;
e nos batentes também estavam
meus rastros em riscos de fogo,
que continuam.

 

Os canários amarelos, 
os mofumbos florados,
não os vi;
nem Flor...
que também não vi.

 

Os armadores da rede,
na sala-da-frente, sim, 
estavam no lugar,
outra vez

prontos para rangir.

 

E daquelas pessoas, 
quando perguntei por elas,
fizeram-me um gesto distante.

 

Perguntei por mim,
ninguém sabia quem era.

 

Eu disse:
é um conhecido meu que gostava muito
daqui.

 

Perguntaram-me quem eu era.

 

Um amigo — disse —,
e fiz um gesto
ao tempo.

 

Ficaram sentidos por não saberem
nem de mim, nem do “outro”.


 


 Salvador, boca da noite, 14.05.1995

 

 
     
 

 

Da generosidade dos leitores:

 
Maria Azenha

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Escreva para o editor

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Luiz Paulo Santana



No último e-mail eu disse, à respeito do poema "Réquiem", que havia coincidências. E quando o li, há algum tempo atrás, senti, não sei porque razões, que havia algo de realidade vivida. Talvez tenha sido pelas coincidências, talvez pela maneira como no poema tudo se passa. Ou as duas coisas juntas. Porteira e rio. Árvores que não existem mais. No meu caso, laranjeiras. Porta e batentes, lá estão. O piso da antiga cozinha, hoje inexistente — só restou o piso — onde compartilhei prosa enquanto debulhávamos milho com auxílio de um sabugo já limpo, tudo à luz de lamparina à querosene. Era menino de meus 16 anos. A diferença é que pude acompanhar ao longo dos últimos quarenta anos todas as transformações — um longo réquiem.

    Quando li pela primeira vez este poema senti que pulsavam nele dois momentos: o primeiro, o da inexorabilidade do tempo, do inexplicável tempo, que passa, se não ele, nós e todas as coisas que passamos, e nesse sentido, nós somos o tempo que passa.

O segundo, não obstante o sentimento de perda que o percorre de ponta a ponta, o da magia poética, recuperando o passado ao mesmo tempo em que conduz a despedida solene, lenta, melodia suave de um “Réquiem em sol da tarde”.

A onda menor representa-se pelo visitante na agonia entesourada de reaver um passado que lhe dizia respeito, e que lhe escapava a cada pergunta ou observação. A onda maior, que a tudo envolve, é a condução poética do réquiem, da despedida, na qual o visitante, pelo inventário que vai fazendo das coisas desaparecidas, culminando por, dramaticamente, não encontrar notícias nem “daquelas pessoas”, nem dele mesmo, (o “outro”) recupera para o leitor todo o passado, para dele se despedir definitivamente, sem despedir-se, ou despedindo-se “sem palavras”. Na verdade, ali estava começando o poema desde o título: “Réquiem em sol da tarde”.

Há no título uma fusão das mais interessantes. Primeiro a aristocracia musical do ofício dos mortos a acontecer nos trópicos, numa típica fazenda (ou que o valha) dos sertões nordestinos, (suponho), em “sol”, que é nota musical e também sol nordestino, sol brasileiro, e “da tarde”, que evoca o ocaso, a despedida do dia.

O ofício se desdobra lentamente num cortejo em que o sentimento de solidão, do visitante, dos visitados e do leitor, se aprofunda. O visitante se demora na busca sofrida, luta para reaver oLuiz Paulo Santana tempo perdido. Faz o inventário das perdas, o benjamim, o banco de aroeira, o curral das vacas e os chiqueiros das ovelhas e dos bodes, “Os canários amarelos,/os mofundos florados,/não os vi;/nem Flor.../que também não vi.” — (Flor, quem será Flor?). Consola-se com os sinais de permanência de seu “tempo”: Os batentes da porta da frente, “Os armadores de rede,/na sala-da-frente, sim,/estavam no logar,/parecem/outra vez prontos para rangir.”  A palavra “logar” remete para “aquele” tempo, tanto como reapresenta o passado.

Tenta um consolo final: “E daquelas pessoas,/quando perguntei por elas,/fizeram um gesto distante.” Um gesto distante, perdido no tempo. E insiste o visitante, perguntando pelo “outro”. Essa tentativa desesperada de buscar nos atuais moradores um vínculo ainda que remoto com o sem “tempo” e a resposta mais uma vez negativa, reflete, nos inquiridos a sua própria dor, pois “Ficaram sentidos por não saberem/nem de mim, nem do “outro”.”. A passagem do tempo revela-se aqui dramaticamente inapreensível para todos.

“Um menino pequeno começou a chorar,/lá dentro.”. Aqui patenteia-se um recomeço, uma outra instância. Aqui talvez o visitante percebesse para além do seu egoísmo que a vida, transmutada, continua, é fluxo. Aquele choro, aquele menino, permitia entrever que o ciclo se renovava com outras cores, embora tudo fosse contido num só grande tempo. Mas que, também, o seu ciclo se esgotara. Então despede-se em silêncio.

Mas um silêncio que redunda num poema, numa catarse, na entrega final, para que tudo se cumpra como tem de ser, malgrado o intenso sofrimento. O visitante, instrumentalizado no poema,  reconstitui o passado por vias transversas e o poeta sagra-o no espaço atemporal da poesia. 

No poema "A exumação dos corpos" referi-me aos "mortos-vivos em mim". Pois aí está. O visitante fez a exumação de seus mortos, e o poeta revivesceu-os. Para sempre.

Um grande abraço,

LPSantana  


Direto para a página de Luiz Paulo Santana

Da Vinci, La Scapigliata

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

Luís da Silva Araújo


SF

De vez em quando falo com os amigos acerca de sua criação literária. Não é por nada, não há de ser por nada; tão-somente pelo meu entusiasmo, o de um leitor que busca achar em cada palavra não apenas o que ela mostra, mas também o que esconde. Desta vez, trato do poema Réquiem em Sol da Tarde, onde eu vejo um mundo como que visto de longe e, em princípio, parece vazio, como todos os mundos vistos de longe. Mas à medida que se vai aproximando, o vazio dá lugar a personagens que o autor mostra sutilmente como se, na verdade, as quisesses esconder...

Assim é, que, aberta a porteira, sabe-se que houve um tronco e um sombra onde o transeunte — quiçá o sertanejo — cansado, pudesse se escorar para recobrar a força perdida em longa caminhada sob o cáustico sol; e um banco onde ele pudesse relaxar os músculos ressequidos pelo sertão; e um fogo onde — quem sabe? — ele não assasse o miserável preá que lhe mataria a fome... o banco, não sei se foi, deveras, rachado para lenha, ou se o fogo do sertanejo, talvez do transeunte, transido de ausências, quem o incendiou...

E sabe-se dos currais das vacas, das ovelhas e dos bodes; sabe-se dos próprios currais da casa... o poeta diz que nada disso existe mais, no entanto, eu vejo isso tudo desenhado pelo cromo indelével do pincel extraordinário com que o poeta traça tais rabiscos... eu vejo tudo isso na essência de cada palavra, em cada nuança do poema. E, de certa forma, num instante, me vejo perdido pelas caatingas indomáveis desse sertão de fogo.

Os canários, meu caro SF, não fugiram, não fugiram porque estão lá, e só os não vê quem não quer. Ainda que o poeta tente dizer que nem flor tem aos pés de mofumbos, é mister entender que o poeta é apenas maldoso por querer guardar essa visão que ele viu, vê e transcreve e desenha, só para si.

E se ninguém soube falar de nada, nem deu notícias de ninguém, é porque eles todos não eram outros senão o espírito da vida que ali existiu e existe ainda.

 

Luís


Direto para a página de Luiz da Silva Araújo

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

 

 

 

 

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

 

 

Estanislau Fragoso


Soares Feitosa

 

Somente agora, depois de um longo e tenebroso inverno, li seu poema REQUIEM EM SOL DA TARDE. Olhei-me no espelho. Nos meus setenta e sete anos, tenho sonhado com a minha volta ao Teixeira. Ninguém mais, talvez, me reconhecesse. Pareceria um outro mundo e não o meu mundo de criança. Por isso me comovi ao ler a sua (tão semelhante à minha) volta de 1995. Parabéns. 

É bom quando a gente se descobre um pouco, ou um muito, nos outros, também. Você faz poesia com a vida e não, apenas, com o que sente.

 

Fragoso

 


Direto para a página de Estanislau Fragoso

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

Gil Cleber


From: "gilccarvalho" <gilccarvalho@ig.com.br>
To: <soaresfeitosa@uol.com.br>
Sent: Monday, April 02, 2007 4:51 PM
Subject: Panfletos


 

Prezado Soares Feitosa:

Os panfletos que me enviou têm na capa, um deles a imagem de uma marinha e o título "Do 4o Panfleto"; o outro, o título "Estudos & Catálogos - Mãos". Pode enviar-me outros, pois me interessam.
"Réquiem em sol da tarde" é um poema extraordinário, que encontra eco em minha própria obra, pois um dos temas que mais exploro é o tempo e seu poder de transformação do mundo que construímos e vemos, gradativamente, destruir-se.

Esse destruir-se é, no entanto relativo, tanto quanto o construir-se, pois é verdade que sempre construímos nosso mundo sobre as ruínas de outros, e se o vemos transformado não é certo que esteja sendo destruído, porém certo é que outros já iniciaram sua construção sobre o nosso. Parece-me que o "Réquiem" diz mais ou menos isso.

Gil

 


Direto para a página de Gil Cleber

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Adriana Bernardi



Adriana Bernardi (adrianabernardi@uol.com.br)

SF

E requiem só conhecia o de Mozart e o do Guarnieri - e de mais alguém que não me lembro o nome... Fui lá, certa que encontraria uma missa... Não era uma missa, vê se pode?

Era, de fato, um requiem. Prazer em conhecê-lo, requiem sem coro nem tímpanos. Só com maestro. E despedida. Como tem que ser. Fiquei pensando nessas vezes que a gente tropeça, depois de muito tempo sem ver, em ex-amores, grandes amigos que deixaram de fazer parte das nossas vidas... que volta à casa da vó muito tempo depois dela ter partido... no colégio do jardim da infância... na pracinha que a gente andava de bicicleta... e a gente se espanta com o novo penteado, a barriguinha que surgiu, com o cheiro de casa de vó que virou cheiro de tapete fofo, com aquelas árvores traiçoeiras que continuaram a crescer sem precisar do nosso olhar como adubo!!!

Bateu saudade...

Sabe o que mais me espanta nos teus poemas??? É a singeleza. (existe essa palavra pelo-amor-de-deus???)

A delicadeza. A simplicidade ao expressar a dor. Um fato. Um mundão. E fico tentado imaginar como teu olhar funciona. O que ele vê... de que jeito vê. E as peripécias que vc deve aprontar prá chegar ao simples. - é, porque num quero acreditar que vc chega facim, facim na essência. Assim... como num espirro. Num é possível!!! ou é?. E num te falei. Mas no céu também tem internet¹. ''Divinha por quê??)

Outro abração

Adriana

¹ - A propósito de "No céu tem Prozac"


Direto para a página de Adriana Bernardi

Da Vinci, La Scapigliata

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 


Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth