O
segundo, não obstante o sentimento de perda que o
percorre de ponta a ponta, o da magia poética,
recuperando o passado ao mesmo tempo em que conduz a
despedida solene, lenta, melodia suave de um “Réquiem
em sol da tarde”.
A
onda menor representa-se pelo visitante na agonia
entesourada de reaver um passado que lhe dizia respeito, e
que lhe escapava a cada pergunta ou observação. A onda
maior, que a tudo envolve, é a condução poética do réquiem,
da despedida, na qual o visitante, pelo inventário que
vai fazendo das coisas desaparecidas, culminando por,
dramaticamente, não encontrar notícias nem “daquelas
pessoas”, nem dele mesmo, (o “outro”) recupera para
o leitor todo o passado, para dele se despedir
definitivamente, sem despedir-se, ou despedindo-se “sem
palavras”. Na verdade, ali estava começando o poema
desde o título: “Réquiem em sol da tarde”.
Há
no título uma fusão das mais interessantes. Primeiro a
aristocracia musical do ofício dos mortos a acontecer nos
trópicos, numa típica fazenda (ou que o valha) dos sertões
nordestinos, (suponho), em “sol”, que é nota musical
e também sol nordestino, sol brasileiro, e “da
tarde”, que evoca o ocaso, a despedida do dia.
O
ofício se desdobra lentamente num cortejo em que o
sentimento de solidão, do visitante, dos visitados e do
leitor, se aprofunda. O visitante se demora na busca
sofrida, luta para reaver o
tempo perdido. Faz o
inventário das perdas, o benjamim, o banco de aroeira, o
curral das vacas e os chiqueiros das ovelhas e dos bodes,
“Os canários amarelos,/os mofundos florados,/não os
vi;/nem Flor.../que
também não vi.” — (Flor, quem será Flor?).
Consola-se com os sinais de permanência de seu
“tempo”: Os batentes da porta da frente, “Os
armadores de rede,/na sala-da-frente, sim,/estavam no logar,/parecem/outra
vez prontos para rangir.” A
palavra “logar” remete para “aquele” tempo, tanto
como reapresenta o passado.
Tenta
um consolo final: “E daquelas pessoas,/quando perguntei
por elas,/fizeram um gesto distante.” Um gesto distante,
perdido no tempo. E insiste o visitante, perguntando pelo
“outro”. Essa tentativa desesperada de buscar nos
atuais moradores um vínculo ainda que remoto com o sem
“tempo” e a resposta mais uma vez negativa, reflete,
nos inquiridos a sua própria dor, pois “Ficaram
sentidos por não saberem/nem de mim, nem do
“outro”.”. A passagem do tempo revela-se aqui
dramaticamente inapreensível para todos.
“Um
menino pequeno começou a chorar,/lá dentro.”. Aqui
patenteia-se um recomeço, uma outra instância. Aqui
talvez o visitante percebesse para além do seu egoísmo
que a vida, transmutada, continua, é fluxo. Aquele choro,
aquele menino, permitia entrever que o ciclo se renovava
com outras cores, embora tudo fosse contido num só grande
tempo. Mas que, também, o seu ciclo se esgotara. Então
despede-se em silêncio.
Mas
um silêncio que redunda num poema, numa catarse, na
entrega final, para que tudo se cumpra como tem de ser,
malgrado o intenso sofrimento. O visitante,
instrumentalizado no poema, reconstitui o
passado por vias transversas e o poeta sagra-o no
espaço atemporal da poesia.
No poema "A
exumação dos corpos" referi-me
aos "mortos-vivos em mim". Pois aí está. O
visitante fez a exumação de seus mortos, e o poeta
revivesceu-os. Para sempre.
Um grande abraço,
LPSantana