Sonia R. R. Rodrigues
reginarocha2005@gmail.com
Um
pequeno bloco de poemas & ensaios:
Catadora
de conchas
O mar foi
generoso esta manhã
Despejou
no fim da praia
- cidadão
civilizado –
o seu
lixo reciclável.
Folhas,
gravetos, frutos
Da
tempestade noturna
E
centenas de milhares
De
pequeninos tesouros
Catadora
de conchas
Um tanto
arqueóloga
Acho um
vidro aqui
Um caco
de argila acolá
Enquanto
remexo as conchas
Separo as
cores e formas
De todos
os tamanhos
As ondas
cantam mais alegres
Banhando
este cemitério;
Entre
sussurros e risos,
Contam
estórias de mistérios.
Anos
atrás eu trazia
Crianças
com seus baldinhos.
Certa vez
apanhamos
Pequeninas e delicadas
Conchinhas cor de rosa
Que
lavamos e secamos ao sol;
Depois
fomos para casa
Acabar a
brincadeira.
Em uma
tampa de madeira
Colei uma
gravura bonita
Escolhida
pelas meninas;
Quando
secou, ao redor dela,
Espalhamos conchas belas
Agrupadas
com tal arte
Que
imitavam rosinhas -
Cada qual
fez sua parte
Num mimo
pra vovozinha
Isto foi
há muito tempo.
Neste
momento
As
meninas já cresceram
E
esqueceram.
Eu é que
viro menina
E com
leves movimentos
Mergulho
as mãos na água morna
E penetro
no universo
Que ora
canto em meus versos.
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Simplesmente Walquíria
Fui princesa mimada,
enclausurada em um jardim de delícias.
Só me faltava mesmo o príncipe,
que um dia viria rompendo barreiras, matando
dragões,
despertando-me para o amor.
Ah!... o amor!...
Mas a fada madrinha,
feminista,
tinha outros planos;
libertou-me do encantamento
e qual folha ao vento
soltou-me no mundo
sem espada mágica, sem escudo
invisível,
sem tapete voador, sem gênio da lâmpada,
sem anel encantado.
Sua estranha benção foi:
“Viver ou morrer. Lutar - sempre!”.
Se eu fosse uma heroína grega
já estaria nos céus,
transformada em constelação,
tantos os Carontes que subornei!
Quantos Cérberos enfrentei!
Como Orfeu, venci o inferno tenebroso
e no último descuido
perdi o meu bem mais precioso.
Caminho às cegas, andarilha,
como um Homero a exaltar uma civilização
extinta.
Meus deuses há muito despencaram do Olimpo
e sufocam sob a superfície asséptica
de um mundo tecnicológico.
Sou como Eco, ninfa emudecida
a perseguir a beleza de Narciso,
a chorar meu destino desafortunado,
até que um deus se apiade de minha dor
e me transforme em pedra.
pseudônimo: Australiana
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Como partimos de Dr. Kildare e chegamos a
... House?
Dra. Sonia Regina Rocha Rodrigues
Médica e escritora.
Todo médico de minha geração lembra-se do
Dr. Kildare, que inspirou tantos entre nós.
Admirado, amado mesmo, este jovem médico (ainda estudante) era
apresentado como uma pessoa útil, atenciosa, dedicada, compreensiva,
que escutava e consolava seus pacientes. Nos seus relacionamentos
profissionais, havia um forte elo emocional. Humano, não se esperava
dele que fosse infalível
Neste, que é o
primeiro seriado médico que assisti, já percebemos um certo
tecnicismo, pois o supervisor de Kildare o adverte: ‘Nosso trabalho
é manter as pessoas vivas, não dizer a elas como viver.’
Comentário cínico,
cujo objetivo era garantir um distanciamento emocional que não
perturbasse o raciocínio médico, que, no caso, era quase salutar,
por impedir que o profissional sofresse com um relacionamento mais
íntimo com seu paciente, já que, inevitavelmente alguns pacientes
morrem, e alguns, morrem jovens. E, inspirados pelo jovem Dr.
Kildare, este era um mandamento que todo aspirante a médico ansiava
por transgredir.
Já o atual seriado House nos apresenta um
médico brilhante, lógico, técnico, odiado por alguns de sua própria
equipe, meramente tolerado pelos pacientes, e do qual se esperam,
apenas, resultados.
Ambos são inteligentes e dedicados: um
aconselha, importa-se que o paciente viva bem, e mesmo que morra bem
– que sua vida tenha sida uma boa vida; o outro não se importa, sua
meta é que o paciente sobreviva – seu paciente é quase um troféu,
seu triunfo na arte de diagnosticar.
House
expressa-se da seguinte maneira: “Me
importar para que? Pergunte ao paciente se ele prefere um médico que
se importa enquanto ele morre ou um médico que o ignora enquanto ele
é curado?” A
visão de mundo que o doutor House criticou nesta frase é profunda.
House não criticou apenas o altruísmo em si; ele demoliu nesta frase
o conceito de ética médica, o humano respeito ao próximo.
Sacrifica-se o espiritual em nome de uma eficácia questionável.
Proponho-me a comparar os valores
existentes nestas duas séries:
Em Dr. Kildare:
1 - Há um valor de vida – que se faça a
diferença, que se seja feliz e útil.
2 - Há um valor de morte – que se retorne
ao sagrado, ao misterioso.
3 - Há um valor de paciente – que se
aprenda e se evolua com a doença.
4 - Há um valor de médico – que se importe
com o ser humano, que sinta emoções, que seja competente e
bom.
Em House:
1 - A vida é uma miséria, todos mentem,
todos sofrem.
2 - A morte é o fim, e toda crença
religiosa é ilógica, já que não se pode provar – a supervalorização
da ciência, vista como técnica.
3 - O paciente é um ser humano tolo, na
melhor das hipóteses, ou indigno, na pior, e exige resultados da
medicina, quer ser curado e salvo a qualquer preço.
4 - Do médico exige-se a cura – que faça
o serviço pelo qual está sendo pago, e que obtenha os melhores
resultados. Ser bom é inútil. Descartou-se a espiritualidade.
Para tentar entender melhor como chegamos
a este lamentável estado de coisas – ou alguém acha que a atual
situação da saúde no mundo não seja lamentável? - temos de ir além
do médico, temos de penetrar nos paradigmas de nossa sociedade
capitalista.
Os pacientes de Dr. Kildare eram pessoas
sofredoras, sensíveis, centradas em suas famílias, amigos, e
objetivos baseados em mérito pessoal e trabalho duro: a professora
desejava ensinar, o vendedor vender, os jovens, concluírem um curso.
Os pacientes de House são, em sua maioria,
insensíveis como ele, amantes da tecnologia, consumistas, consomem o
produto saúde como consumiriam qualquer outra coisa, e são focados
no sucesso monetário: o atleta olímpico que quer o ouro, o artista
que quer o Oscar, o empresário que quer comprar a rede concorrente,
todos querem ser o primeiro, não basta concorrer, nem ganhar,
trata-se de ganhar em primeiro lugar. Erros são descartados – o
filho que foi reprovado de ano, a atleta que não se classificou, o
marido desempregado, a mulher feia, esqueça, são todos ridículos e
indesejáveis perdedores. E qualquer paciente que se apresente
amoroso e idealista é logo dissecado para que revele suas
ambiguidades e contradições, apresentadas como mentiras e fraquezas
inadmissíveis.
No último século, assistimos a certas
mudanças na sociedade capitalista.
Antes, aceitava-se a morte como um fato
natural; admitia-se que as pessoas deviam estar preparadas para
morrer, bem como para viver; os médicos eram vistos como seres
humanos esforçados e empenhados em fazer o melhor possível, dentro
de possibilidades razoáveis.
Agora, quer-se evitar o confronto com a
morte, retardar o desfecho da vida a qualquer preço, mesmo a custo
de uma vida de qualidade ruim.
Os médicos entram nesta visão capitalista
como geradores do produto saúde, portanto não são vistos como seres
humanos, mas como um mal necessário, já que as máquinas não
funcionam sozinhas; deles se exige perfeição técnica e nenhuma
ética; paga-se a eles o menor honorário possível e são trocados da
equipe assim que algum cérebro
mais brilhante surja. Espera-se que sejam
infalíveis, e, a par disto, critica-se esses mesmos médicos por
serem arrogantes e diz-se deles que sofrem de ‘complexo de Deus’.
A minha geração médica, que anda ao redor dos sessenta anos,
ressente-se do reconhecimento não recebido; já a geração atual, bem,
sejamos honestos, toda a categoria é atualmente vista pela população
como House, um médico que desdenha tudo, desde o sistema até o
doente, que ficou reduzido a uma ficha clínica.
Afirma Gurdjieff que estamos a viver os últimos dias desta era
técnica. O planeta nos destruirá se não mudarmos. O clima já mudou,
e anuncia ao homem que ele, homem, não é o senhor do planeta, que a
humanidade é tão descartável na escala cósmica como os dinossauros.
Chega o tempo de voltarmos a ser humildes. De enterrarmos House e
buscarmos o Dr. Kildare, pois, desde os tempos de Esculápio, o que
a humanidade deseja é, antes de tudo, compartilhar a vida e ser
consolada, pois curar, é possível às vezes, e consolar, é possível,
sempre.
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DIAS DE VERÃO
Viagens de férias. Sorvetes. Tudo o que é bom parece acontecer no
verão. É uma exuberância de frutas, um não acabar mais de passeios
ao ar livre, e quando se mora à beira mar, então, há um vasto leque
de diversões à escolha. Caminhadas na praia, mergulho, natação,
pescaria, passeios de barco e toda sorte de esportes aquáticos.
Claro, nem sempre o calor é agradável. Para quem
trabalha exposto ao tempo, sem ventilador, sem ar condicionado,
fazendo esforço físico, não é nada divertido.
Há dias em que a temperatura sobe tanto que, visto
de longe, o asfalto parece água, e a paisagem junto ao solo
estremece, distorcida pelas ondas de calor. Dias em que, já pela
manhã, tudo parece queimar a nossa pele _ o sofá, os lençóis, e até
das torneiras jorra, à temperatura ambiente, um líquido escaldante e
nada convidativo. Dias em que nada refresca - nem banho, nem
piscina, e mesmo os aparelhos de ar condicionado não conseguem
amenizar o mal estar. Dias em que a única atitude sábia é
encolher-se à sombra, como um bichinho, imóvel, esperando, pois está
quente demais até para se conseguir dormir. (deveria haver um verbo
para a suspensão temporária das funções vitais provocadas pelo calor
extremo, uma espécie de hibernação às avessas)
Um dia como o de ontem, que dizem ter sido o mais
quente dos últimos cinqüenta anos. O solstício de verão já
acontecera, mas parecia que a Terra continuava, distraída, a
inclinar-se mais e mais em direção à fonte da vida.
Foi com certeza em um dia assim que um grego
imaginou a lenda de Faetonte, o mortal que dirigiu o carro do sol
tão desastradamente, chegando tão próximo que quase incendiou o
planeta.
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