Teresa Schiappa
Carlos Moisés, tradutor de Proust
As vicissitudes inerentes à
passagem de uma língua a outra estão bem consignadas no aforismo que
todo o tradutor conhece (e invoca): traduttore/ traditore.
Claro que o aspecto visado
no aforismo não é a actividade “normalizada” da tradução ou o seu
papel indispensável na comunicação de factos, ideias ou sentimentos
em falantes de línguas diversas e sim essa comunicação
“especializada” que é, por excelência, o texto literário. Tanto ou
mais do que as palavras de uma língua, está aí presente uma dinâmica
de relações e associações, geradora de estesias e sentidos
adicionais, que é no seu todo irrepetível noutras línguas.
Contudo, o aforismo italiano
não serve apenas para lembrar os limites da tradução; demarca também
um ponto de partida – desafio, compromisso – no aprofundamento de
conceitos de “fidelidade” mais operativos, em ordem dotar a obra
traduzida de uma textura estilística e prosódica capaz de assegurar
uma fruição estética comparável à da língua original.
Estas reflexões
ocorrem a propósito do excelente labor poético que constitui a
tradução de Retratos de pintores e músicos, de Marcel Proust,
por Carlos Felipe Moisés. Os poemas, que podem ser lidos
isoladamente no Jornal de Poesia electrónico de Soares
Feitosa
[1], fazem parte de uma
colectânea de trabalhos juvenis, Os prazeres e os dias,
recentemente publicados pela Editora Códex em tradução de Solange
Pinheiro, pelo que toca aos textos em prosa (S. Paulo, 2003).
Deixamos de lado o interesse da colectânea e, em especial, o destes
retratos literários de pintores (Cuyp, Potter, van Dick, Watteau) e
de músicos (Gluck, Chopin, Schumann, Mozart), cujas peculiaridades
literárias e psicológicas o seu tradutor analisou já em pormenor,
com a habitual competência dos seus textos críticos, num substancial
artigo divulgado também pelo
Jornal de Poesia
.
A vantagem de um poeta ser traduzido por outro –
mormente com as qualidades multifacetadas de Carlos Moisés –
patenteia-se na simples leitura da versão destes Retratos:
tanto quanto a captação de um conteúdo original, que resulta da
proposta de “legibilidade” de criações artísticas enraizadas no
mundo visual e no sonoro, os textos traduzidos são por igual poemas
de língua portuguesa, que absorvem com mestria os giros
linguísticos e a tradição poética da sua segunda língua.
Carlos Moisés optou por seguir os pressupostos
formais em que Proust moldou estes poemas: o mesmo verso de doze
sílabas (alexandrino), a mesma configuração de estrofes e disposição
de rimas. Um compromisso arrojado, como se calcula, mas que o
tradutor materializa com assinalável equilíbrio entre a mimese
textual e a adaptação linguística ou metafórica, quando as
exigências formais ou estéticas da língua eventualmente o reclamam.
É esse percurso que nos parece de toda a justiça destacar, através
da explicitação de alguns casos onde modelarmente se condensa uma
ars poetica da tradução.
Se é certo que nem sempre a genuidade da linguagem
proustiana passa intacta (e não vale a pena invocar o já invocado
aforismo …), não são raros os momentos em que o ajuste de cadências
e rimas vem potencializar uma sugestão poética do original. É o caso
óbvio do retrato de Cuyp, em cujo final a tradução de minutes
profondes por “minutos dourados” (“E partem a aspirar uns
minutos dourados”) promove um enlace feliz entre a vivência da
natureza, por parte de homens e animais, e o “brilho dourado” que ao
longo do poema a manifesta.
No mesmo critério de realce visual e psicológico, a
paisagem estática e enevoada, que o poema seguinte (Potter) repisa
através da identidade rimática dos quatro primeiros versos, leva o
tradutor a preferir, à rima em i, iniciada pelo termo
gris,
Sombre chagrin des ciels, uniformément gris,
a sonoridade mais marcante em –ento, de
“cinzento”. A ligeira alteração, que a não correspondência dos
termos motiva, salda-se num verso belíssimo, de cadência e
sonoridade antológicas (em que houve claramente o propósito de
incluir a rima original):
Céu de langor sombrio, vazio, cinzento.
Não escasseiam, aliás, os passos onde a tradução
portuguesa logra suplantar o efeito estético do original; assim, na
dupla remissão para as óperas “D. João” e “A flauta mágica”, no
poema dedicado a Mozart:
Dans le parc
allemand, où brumment les ennuis,
L’italienne encore est reine de la nuit.
Ou seja, na versão quase literal de Carlos Moisés:
E no parque alemão, onde o tédio se esfuma,
A
italiana é de novo a rainha da bruma.
Outras vezes, a equivalência não é tão literal, não
deixando com isso de ser perfeita. Acontece em frases sentenciosas,
como L’amour ayant besoin d’être savamment orné, no
poema a Watteau, que comparece em tradução num discreto parênteses:
“(O amor é tão mais sábio quanto mais galante)”; ou no jogo
oximórico que o olhar de Proust canaliza para a linguagem da poesia,
a prolongar a afinidade intuída entre van Dick e as personae
da sua pintura:
Je rêve sans
comprendre à ton geste et tes yeux:
Debout, mais reposé, dans cet obscure asile,
Duc de Richmond, ô jeune sage! – ou charmant fou? –
Je te reviens toujours: Un saphir, à ton cou,
A des feus aussi doux que ton regard tranquile.
A
impossibilidade de reprodução literal, dentro de moldes rítmicos e
rimáticos, sugeriu neste caso uma explicitação do 1º verso (sans
comprendre concretizado em “medito” e “preclaro” – adjectivo
obviamente ajustado pela conotação de distanciamento) e a
condensação do oximoro do 3º verso (ô jeune sage! – ou
charmant fou? -) em “sábio insatisfeito”[3].
Uma “infidelidade” apenas de pormenor, que em nada obscurece, na
versão portuguesa, a intenção veladamente antitética deste final
trabalhado:
Medito em teu contorno e em teu olhar
preclaro,
Aprumado
e sereno em obscuro asilo,
Ò Duque de Richmond, sábio insatisfeito,
E lembro: uma safira aninhada em teu peito,
Chamas tão doces como teu olhar tranquilo.
Estas e outras correspondências ao original francês
são realçadas por escolhas vocabulares que, se em geral acompanham o
nível culto, marcado pela homogeneidade, da linguagem de Proust,
admitem pontualmente uma maior latitude lexical, em ordem a
intensificar ou precisar determinados contextos.
Num cambiante entre o afectivo e o irónico, merece
relevo a descrição da “mula resignada, cativa” que, no retrato de
Cuyp, ergue ao céu “a cabeçorra pensativa” (cervelle pensive).
O termo “cabeçorra” é especialmente bem achado: para além de manter
a tonalidade afectiva do francês cervelle (originalmente, um
diminutivo), reforça, pelo uso implicitamente oximórico que a junção
ao adjectivo cria em português, o efeito de ironia visado no
original. Em sentido contrário, saliente-se o emprego de palavras
poéticas, como “ouropel” (Cuyp) “olvido” (Chopin) “langor” (Potter,
Mozart), de arcaísmos como “planger” (van Dick), de latinismos raros
como “fugaces” (Watteau), “infrenes” “auriflama”, “multifoliado”,
“preclaro” (van Dick).
De notar que este registo “sublime” (a que o texto
de Proust não obriga) não é o usual: apenas comparece em força no
retrato de van Dick, perpassando nele um propósito subtil de
emulação, a que se reporta um jogo etimológico de impacto sugestivo,
entre auriflama/ chama, na descrição dos “infantes reais”:
Sublimes em seus chapéus de plumas e ramas,
Auriflama
onde plange – onda através das chamas –
O lamento que vibra nas almas perenes,
Mas jamais se converte em lágrimas infrenes.
Não menos intrincado na ideia, o original é, no
entanto, estilisticamente mais simples:
Vêtements résignés, chapeaux à plumes braves,
Et bijoux
en qui pleure – onde à travers les flammes –
L’amertume des pleurs dont sont pleines
les âmes
Trop hautaines pour les laisser monter aux
yeux.
O confronto entre os dois passos fala por si.
Através de uma tradicional “linguagem de pose”, a versão portuguesa
faz confluir, no texto de Proust, a impressão estética e pessoal que
as personagens régias do pintor flamengo evocam também no tradutor.
Não é exemplo único de uma apropriação deliberada que, nos limites
da fidelidade, Carlos Moisés se empenhou em concretizar.
Do conjunto dos poemas traduzidos de Proust, o
retrato de Schumann constitui, a meu ver, o texto que melhor permite
detectar a convocação de uma tradição poética que individualiza
tanto a língua quanto as vivências literárias do seu tradutor. Pode
também ter sido o que mais problemas levantou na passagem para
português: há, em todo ele, um claro efeito de acumulação, destinado
a sugerir, na pulsão onírica das imagens – ou fragmentos delas – a
loucura que vitimou o compositor alemão.
Esse efeito cumulativo foi especialmente trabalhado
por Carlos Moisés, sendo talvez por isso aí mais sensível um empenho
de integração contextual, que se nos afigura claro no tocante à
poesia de Pessoa. Assim entendemos, por exemplo, o verso 2 da 2ª
estrofe, que remete conjuntamente para dois trechos schumannianos:
“O pássaro-profeta” (do conjunto Cenas da floresta) e “À
lareira” (das Cenas Infantis):
L’enfant lit
l’avenir aux flammes du foyer,
que Carlos Moisés traduz:
O infante lê o porvir nas chamas da lareira.
O desfasamento de sentido, criado pela manutenção do
termo etimológico “infante” em vez de “criança” - também presente no
retrato de van Dick -, não é isento de ambivalência, e em associação
com “porvir” (enquanto noção privilegiada na Mensagem)
proporciona eventualmente ao leitor de Pessoa uma dupla leitura,
implicando na representação do “profeta” schumanniano de Proust a do
Infante visionário, que se projecta na 1ª e na 2ª parte da
Mensagem.
É o fecho do poema, contudo, que leva a crer na
intencionalidade deste procedimento de transposição – mais
sistemático no poema a van Dick, como observámos, mas mais impreciso
nos referentes. Proust pretendeu sem dúvida dotar este final de uma
maior complexidade, prolongando por seis versos (em vez dos quatro
das estrofes anteriores) o efeito cumulativo que referimos atrás:
Coule, embaume, défile aux tambours ou sois
belle!
Schumann,
ô confident des âmes et des fleurs,
Entre tes quais joyeux fleuve saint des douleurs,
Jardin pensif, affectueux, frais et fidèle,
Où se baisent les lys, la lune et l’hirondelle,
Armée en marche, enfant qui rêve, femme en pleurs!
Ou, na versão de Carlos Moisés:
Coleia ao som dos guizos, desfila, tão bela!
Schumann,
doce amigo das almas e das flores,
A apascentar feliz o riacho das dores
Pelo velho jardim, fiel, sob a cancela
Onde o luar e os lírios se beijam – e ela
Se afasta, criança, a suplicar teus amores.
Como resulta do confronto, a marca do tradutor
patenteia-se em retoques de pormenor, que são de duas ordens: por um
lado, a de uma maior legibilidade, inerente ao acto de traduzir e à
leitura interpretativa nele implicada; por outro, a de uma
apropriação pontual à linguagem poética de O guardador de
rebanhos, que um ou outro passo dos poemas de Proust deixa
também filtrar (por exemplo, a borboleta “a apascentar seus giros”,
no retrato de Chopin).
Para um conhecedor nato da poesia caeiriana, como
Carlos Moisés, essa aproximação poderá ressaltar quase naturalmente
da imagem de um Schumann regressado a uma infância idílica, em
comunhão com as almas - os “seres-almas” da lírica ortónima - e as
flores da paisagem campestre, onde decorreram os dois últimos anos
de vida do músico. O que, dentro de limites compreensíveis, poderá
estimular aproximações curiosas entre a poética de Caeiro e a das
Cenas Infantis de Schumann.
Não está obviamente em causa a identificação de
personagens poéticas em quem recai o peso de mundos de sinal
contrário – o do delírio em Schumann e o da lucidez em Caeiro/
Pessoa. Mas entre ambos há também uma larga e previsível margem de
confluência, que, aliás, preenche parte significativa dos escritos
obsessivos de Pessoa sobre a loucura. Nessa medida, a forma de
beatitude que Proust associa, no quadro
de um jardin pensif … fidèle, à contemplação de um fleuve
saint des douleurs nada perde com o registo caeiriano que o
tradutor lhe imprime: “A apascentar feliz o riacho das dores /Pelo
velho jardim,
fiel …” - onde “apascentar” equivale legitimamente a “contemplar”
(como ocorre na própria poesia de Carlos Moisés[4]).
Com a substituição
secundária de hirondelle por “cancela”, destinada em
princípio a salvaguardar a rima original, a versão portuguesa
consuma a nota intimista que passa, da música das Cenas Infantis
de Schumann, à ambiência supostamente idílica em que o poeta Caeiro
pôde autodefinir-se: “não fui senão uma criança …”
A visão transposta dos
Retratos de pintores e músicos de Proust representa assim
um produto de elaborada convergência poética que, na melhor linha
da lição de O corvo de Edgar Allan Poe/ Pessoa, a recente
edição brasileira de Os prazeres e os dias traz aos
seus leitores.
Antepondo à fidelidade literal (que também existe) a fidelidade de
uma recriação atenta aos recursos artísticos de uma herança
literária rica de um e outro lado do Atlântico[5],
os textos traduzidos assume-se sem complexos como poemas de língua
portuguesa, com a marca do excelente poeta e leitor de poesia que
reconhecemos também em Carlos Felipe Moisés. Pelo que não será
excessivo estender à presente versão destes Retratos o juízo
com que Anatole France, no seu sugestivo prefácio, saudou a juvenil
colectânea de Proust: “Seu livro é como um rosto jovem, cheio de um
charme discreto e de uma graça delicada!”[6].
[1]
Com o endereço electrónico www.jornaldepoesia.jor.br
[2] Carlos Felipe Moisés,
O desconcerto do mundo. Do Renascimento ao Surrealismo, S. Paulo, 2003,
pp.239-258.
[3]
Não é improvável que o verso proustiano tenha sido, mesmo que inconscientemente,
inspirado pelo significado da palavra oximoro, de origem grega: “agudo
(ou arguto, oxy ) sob a aparência de parvo (ou louco, moros)”. A
solução de Carlos Felipe baseia-se igualmente no oximoro: o sábio, no seu
sentido absoluto, não aspira à sabedoria porque a possui já (conceito que
remonta a Platão).
[4]
Convirá precisar que o termo não tem representação directa em Caeiro e em
particular no poema IX de O guardador de rebanhos, (“Sou um guardador de
rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todos
sensações …”) - onde a antítese feliz/ triste, decorrente de um estado de
contemplação, igualmente comparece. Entendemos a equivalência referida na poesia
de Carlos Moisés como reflexo de um jogo de intertextualidade com Caeiro e
Pessoa ele-mesmo, visível em poemas como “Inconfidência 4” de Subsolo
(1989) e “Pedra da Memória”, de Urna diurna (1974) - ambos
incluídos em Lição de casa & poemas anteriores, S.
Paulo, 1998 (veja-se em especial pp.89 e 157).
[5]
Os últimos poemas de Subsolo são eventualmente os que melhor explicitam a
intenção de tornar presente essa dupla herança, de D. Dinis a Mário de Andrade
(Lição de casa e outros poemas, pp. 76-109).
[6]
Os prazeres e os dias (tradução citada de Solange Pinheiro), p. 7.
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