Carlos Augusto Viana
“Tecla de sal, clave de sol”
No terceiro movimento, a revolta da
criatura ante os desígnios do Criador fecha o poema. Na visão do eu
lírico, a mãe, abruptamente, deparou o absurdo, a incongruência da
morte; com isso, despertou nele aquele mesmo niilismo, experimentado
por Brás Cubas, ante o cadáver de sua mãe, ´mordida pelo dente tenaz
de uma doença sem misericórdia´.(15)
A escritura de Ivan Junqueira, em sua
cristalização técnica, abre-se, permanentemente, a múltiplas
possibilidades de exploração. Cada poema-esfinge lança ao leitor o
inexaurível desafio: Decifra-me ou devoro-te. Até mesmo sob uma
aparente simplicidade, como, por exemplo, ´Ária marinha´:
Tecla de sal
clave de sol
acorde oculto
num caracol
Será o espectro
de infância morta
que desabrocha
como um farol?
Serão ginetes
já sem memória
ficando esporas
no azul lençol?
Será meu pai
debaixo d´água
com sua flauta
e seu punhal?
Ou não será
em mim disperso
o som submerso
de outro coral?
Resposta alguma
à tona sobe
mas eu indago
e lanço o anzol
Antes, assomam, sob o jogo metafórico,
a precisão e o equilíbrio dessa composição. E, desde o início, o
leitor se sente seduzido a romper a crosta das especulações,
visando, assim, à colheita do objeto-motor dessa cantiga.
A estrofe inicial põe, de chofre, o
leitor em contado com o enigma: ´acorde oculto / num caracol´,
inscrito, naturalmente, naquela ´clave´ e orientando a ´tecla´.
Incorporam-se, aí, em dois planos: o estático e o extático - a
imagem, fixada, incita as ondulações do pensamento. Há um feixe de
sensações, tecido, predominantemente, por elementos visuais e
sonoros, em que os esquemas métrico e rímico encarregam-se da
exploração das potencialidades fônicas e semânticas no conjunto dos
sintagmas edificadores do corpo enigmático. As frases nominais,
justapostas, conduzem o leitor à imagem central: o ´caracol´ a
abrigar o interminável ´acorde´; este representa, metonimicamente, a
musicalidade; aquele, a fôrma, impondo ambos a natureza
metalingüística da composição. Trata-se, portanto, da construção do
próprio poema: sobre suas águas, insinua-se a pescaria, metáfora da
busca do poético, explícita na imagem-síntese, repousada no ato
final de lançar ´o anzol´.
As três estrofes subseqüentes ligam-se
umas às outras, e de modo inextricável, no sentido de se desdobrarem
em perquirições do que, em verdade, constituiria o motivo poético
esconso na melodia daquele caracol. As especulações giram, sempre,
em torno de elementos incorpóreos, isto é, espectros do que,
magicamente, a memória recupera: a infância, a fazenda, o pai, há
muito já decompostos pelo tempo.
A penúltima estrofe aventa uma outra
possibilidade: aquele ´acorde´, ao invés de uma experiência íntima,
é, sim, resultado do que o contato com os outros poetas provocou no
eu lírico, quando a este foram reveladas aquelas ´duas dores´ da
exegese de Fernando Pessoa, reconhecendo, também, como seu o ´coral´
alheio.
Na última estrofe, ainda que insolúvel
o enigma, à semelhança do ´lutador´ drummondiano, cuja ´luta
prossegue / nas ruas do sono´(16), o eu lírico, sedento, indaga
ainda, lançando ´o anzol´. Mas o que espera fisgar? Que alimento,
este, o da palavra-peixe? Assistiria ele nas ruas do inconsciente?
Insistimos no fato de que a poética de
Ivan Junqueira é, sobretudo, desafiadora; o que - ressaltamos - não
a afasta daquele poder de ´comunicar-se, ainda antes de ser
compreendida´ de que fala T. S. Eliot.(17) Se ´todas as expressões
verbais são ritmo´,(18) há uma música que se antecipa à própria
mensagem escrita, expressão viva do ´silêncio musical´, eloqüência
da própria carne.(19) Talvez por isso, em Ivan Junqueira, a
contemplação do cotidiano leva-o, amiúde, à busca de garimpar aí um
sentido mais profundo, ainda não íntimo de olhos distraídos, como no
poema ´Água´:
A água rolando na rua
a água rolando na rua deserta
a água molhando a pele da pedra
(coitada, ela tem frio)
a água rolando na rua
a água no olho do homem sozinho
a água pingando dentro do homem [sozinho
(quase não se escuta)
a água rolando na rua
a roda do automóvel machucando a água
a água chorando baixinho nas margens [da noite
a água toda suja de tristeza
a solidão da água
a água rolando na rua
a água rolando na rua deserta
Essa composição resulta, antes, de um
raro jogo estilístico: a sucessão anafórica e o emprego da forma
verbal no gerúndio; tais recursos se unem em feixes, produzindo, no
receptor, uma sensação de circularidade, a constatação desencantada
de que a vida é um beco-sem-saída, imprimindo, assim, o caos
contemporâneo. Ivan Junqueira, assim, entende a literatura: ´um dos
vários campos em que se formulam e exprimem as experiências humanas
em toda a sua amplitude, aberto portanto à realidade dos fatos e dos
problemas dos homens´.(20)
Contemplamos, a rigor, uma cena
cotidiana, mas através de elementos dispersos, tais como: ´rua´,
´homem´, ´automóvel´, exatamente porque o real, na pós-modernidade,
não possui formas definitivas: ´O real produz gozos e ansiedades. Há
um caráter doloroso no encontro com suas manifestações, que são o
próprio instante, e há também um jorro de prazer. [...] Certamente,
não dispõe de apenas um rosto, e sim de vários. [...] O real não
possui uma medida, nem é uma medida.´ (21)
Por outro lado, os elementos da cena
exterior não compõem propriamente uma topografia; antes, conforme a
natureza do lirismo, evocam angustiantes volições: sensações de
perda, de abandono que delineiam uma atmosfera de melancolia
irremediável. Compreende-se que cada um desses elementos, colhidos à
exterioridade, convertem-se em símbolos da interioridade, culminando
a com nota insistente da ´água´, a representar a dispersão do eu,
que com esta se identifica, no que comunica acerca de perdas e de
frustrações.
Os três primeiros versos do poema
´Água´ encontram na aliteração um recurso por que se acentua a sua
natureza gradativa, somente interrompida pelo lamento do eu lírico:
´(Coitada, ela tem frio)´. Desse modo, à paisagem insere-se a
personagem que a contempla; e pouco importa que o faça de uma
possível janela ou através das treliças da imaginação. A reiteração
da imagem da ´água´ sugere a progressão de uma chuva que percorre a
calçada, projeta-se por sobre o asfalto e deságua na interioridade
do eu, surpreendendo-o na noite, colocando-o, frente a frente, com
sua própria solidão. Então, fundem-se num todo indissolúvel a ´água´
e o ´homem sozinho´, pois deste aquela incorpora a melancolia e a
solidão. Sobretudo, inscreve-se a habilidade de Ivan Junqueira em
manusear o ritmo, fazendo com que jorrem seqüências sonoras: ´a roda
do automóvel machucando a água´, numa combinação engenhosa de música
e evocação: ´Os sons, assim como os pensamentos, estão relacionados
tanto entre si quanto àquilo que representam, e verificou-se que uma
percepção da ordem dessas relações está sempre ligada a uma
percepção da ordem das relações dos pensamentos´.(22)
Taciturno e corroído pelo tédio,
também se encontra o eu lírico de ´Tristeza´:
Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.
(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)
E o resto é mesmo tristeza.
Ressoam, nesse poema, ecos de tédio e
de melancolia, vislumbres de inércia espiritual e todo um clima de
estagnação, cristalizados na nota inicial de desistência: ´Esta
noite eu durmo de tristeza´. A digressão, nos versos 2 e 3, se não
revela plenamente a razão desse estado, pelo menos insinua que a
angústia é fruto da perda amorosa. Semelhante a uma parede
infiltrada, em que o mofo, lentamente, imprime fraturas na cal, o eu
lírico, pouco a pouco, vê-se minado, em suas entranhas, pela
inescrutável corrosão da ´tristeza´.
No segundo movimento, amplia-se a
paisagem desolada, já que tanto o eu lírico quanto o ambiente
incrustam-se na penumbra. Ressalte-se que o elemento descritivo - ´o
canto apagado da sala´ - não passa de um pretexto para a revelação
da subjetividade do eu lírico, configurando uma alma ainda mais
amargurada pela consciência de perdas irremediáveis. As alusões a
´sorriso´, ´brinquedo´ e ´mãozinha da criança´ remetem a um tempo de
felicidade, certamente oriundo do longe, mas, agora, dissolvido, e
que só em fragmentos habitam-lhe a memória.
A constatação sucinta, - ´E o resto é
mesmo tristeza´ - a encerrar o último movimento, intensifica a idéia
de imobilidade espiritual. Não há por que estender as mãos: a
colheita são ainda os frutos da ´tristeza´. Alusiva e
plurissignificativa, a linguagem envolve de mistérios esse ´resto´:
as outras coisas ou as sobras de tudo.
O poema ´Solilóquio´ abre a seqüência
de sonetos neste livro, estando todos (em número de quatro)
dispostos numa só estrofe. Castro Lima vê no soneto um ´conjunto
poemático de número determinado de estâncias e seqüência estrófica
imutável´.(23) Mas, ainda que a fôrma pretrarquiana haja se
cristalizado, de há muito, principalmente quanto à distribuição das
estrofes, o soneto vem sofrendo alterações. Shakespeare o construía
com três quadras de rimas independentes e um dístico, rimado;
Schelley, com quatro tercetos e um dístico. A forma compactada, em
Ivan Junqueira, entra em consonância com os ditames de sua dicção.
Leiam-se os versos de ´Solilóquio´:
Oculto em névoa densa, ele medita
sobre o sabor da carne mastigada;
o olhar, como a poesia, já não fita
a casca, mas a seiva atormentada.
Nas noites ermas que o silêncio habita,
ele se curva absorto sobre o nada;
seu pensamento - timbre agudo - imita
o gume de uma adaga sublevada:
a lâmina, telúrica haste esguia,
oscila na espessura azul e fria
do céu, que se debruça no adro escuro,
enquanto o vértice (metal mais puro)
perfura a náusea, o tédio e acorda a chama
do enigma, ocluso em pálpebras de lama.
Mesmo em estrofe única, detecta-se,
facilmente, nesse soneto, a estrutura descrita por Massaud Moisés:
os oito primeiros versos (os dois quartetos) têm a função de criar
uma expectativa; os versos 9 a 11 iniciam o desfecho (o primeiro
terceto), a ser concluído nos versos 12 a 14, onde se imprime toda a
densidade dramática.(24) Quanto ao ritmo, há variações nos
decassílabos, por conta da presença de enjambements.
No primeiro movimento (os quatro
primeiros versos), o discurso poético imprime a atmosfera,
instalando a expectativa. A ´névoa densa´ só aparentemente é índice
de exterioridade, pois, a rigor, metaforiza a angústia existencial.
Há um ser que ´medita/ sobre o sabor da carne mastigada´. O que
busca ele? Por certo, a essência das coisas, a vida cerzida de
contrastes.
O ato de comer deixa-o atormentado,
talvez pela consciência de que a vida se alimenta da decomposição.
Uma vez ´mastigada´, a ´carne´ se desintegra para fortalecê-lo;
nisso, opera-se a tensão entre a vida e a morte. Assim, ´o olhar,
como a poesia, já não fita / a casca, mas a seiva atormentada´. As
relações entre ´sabor´ e ´seiva´, ´olhar´ e ´poesia´ contrastam com
as estabelecidas entre ´casca´ e ´carne´: nestas, imprime-se a
materialidade, isto é, as coisas em sua expressão concreta;
naquelas, a ´névoa densa´ das experiências anímicas.
O segundo movimento (versos 5 a 8)
confirma o que, deveras, consiste o interesse do eu poemático: a
perscrutação do que o atormenta, ainda que desconhecido. Há, nesse
momento, o ápice da introspecção, encerrada na imagem: ´ele se curva
absorto sobre o nada´. A associação entre o ´seu pensamento´ e uma
´adaga´ traduz, com plenitude, o estado de dilaceramento interior.
Prepara-se, assim, uma imolação na esfera do eu, corroído pelo gume
do niilismo: sob a indiferença dos deuses, (´a espessura azul e fria
/ do céu´ por sobre o ´adro escuro´) reluz, erguida, a ´lâmina´.
O movimento final (versos 9 a 14) leva
a cabo a tarefa do eu lírico: tendo como ponto de mira o âmago de
sua angústia, a ´adaga´, resoluta, ´perfura a náusea, o tédio´,
pondo a nu o ´enigma´, antes esconso sob ´pálpebras de lama´. Esta
metáfora final instaura a estranheza,(25) ao mesmo tempo em que
entra em harmonia com a idéia de ´enigma´ - este, agora, com a
´chama´ acesa.
Mas o que, exatamente, vem à luz?
Talvez, dessa ´chama do enigma´, assome o duplo: ´Projeção de si
mesmo, aliado ou inimigo, complemento ou contraste do sujeito, o
outro apresenta-se como um desafio´.(26) Nesse caso, a presença do
duplo estaria ligada à busca de libertação: um outro há de
irromper-se daquelas ´pálpebras de lama´. Esta imagem, por fim, bem
que poderia representar ´o bárbaro lamaçal´ em que estaria, a
princípio, mergulhada a alma, conforme as reflexões de Sócrates,
estabelecidas por Platão, e relidas por Mattéi: ´a alma bárbara, que
dormita no fundo de nós, se trai por esse peso ontológico que a puxa
para baixo, apesar dos esforços da educação, e a faz comprazer-se no
lamaçal dos instintos´.(27) Tudo, enfim, constitui feixes de
especulações. Mas outro não é o papel da leitura crítica, uma vez
que, por meio desta, ´a literatura é colocado como uma relação
imaginária, sendo a própria crítica uma relação imaginária destinada
a entreter, no leitor, uma relação imaginária com a realidade de sua
existência´.(28)
Continua...
Leia Ivan
Junqueira
|