Soares Feitosa ("Psi,
a penúltima". Salvador: Papel em Branco, 1997), poeta da terra nordestina,
não pelo pitoresco exótico, mas como integração
pessoal e orgânica, como parte física e palpável do
Brasil, como visão ao mesmo tempo épica e lírica do
rincão natal. Pertence à família dos nossos poetas
da terra, os Joaquim Cardozo, Ascenço Ferreira, Raul Bopp, Juvenal
Galeno, Thiago de Mello, mas, é preciso dizê-lo, com amplidão
muito maior no que se poderia chamar a incorporação cósmica.
Segundo a frase célebre, é um homem
para quem o mundo exterior existe, não como paisagem ou quadros
de uma exposição, mas como bloco existencial de matas e rios,
pássaros silvestres e animais domésticos, homens e mulheres
em estreita convivência com cavalos e cabras, burrinhos de carga,
a família e o meio, cenas da infância, as estações
do ano, humanidade e ecúmeno de que faz parte, expressa, aqui e
ali, com fervor patriótico. E, dominando tudo, o fator catalítico
do tempo que passa e do tempo que dura.
Para ele, a Pátria são os caminhos
que pisa, as armadilhas de caçar passarinhos, as cobras que rastejam,
as abelhas que produzem cera e mel, a paisagem esturricada, as montanhas
e as árvores que conhece pelo nome, as frutas e os campos, o sofrimento
do homem, a tragédia do clima e o milagre da chuva, a resistência
resignada com que aquele mundo enfrenta a adversidade, a recompensa das
manhãs e a impiedade do sol, o sentimento de abandono em que a região
é mantida. Não são temas "literários" e o ufanismo
de Soares Feitosa nada tem de simplório: é, antes, com amargura
e revolta que encara a realidade:
"Auriverde pendão de minha terra, que a
brisa do Brasil beija e balança... famintos do meu Brasil precisam
sonhar com um pão. Não há país como este, em
se plantando, ó Caminha, sim, plantaram, plantaram nas algibeiras
onanistas do metal. Em se plantando, seu Caminha, o que dá, não
dá, o que deu, não deu, nunca deu... o que deu, o gato comeu,
o que deu, o rato roeu".
Os motes gerais dessa poesia, nas suas próprias
palavras, são a infância, o chão, os matos, as pedras,
os céus, as águas, o sertão, os bichos grandes e miúdos,
oficinas e tralhas, cheiros e sons! mofumbos & alecrins, perfumes —
tudo expresso no idioma dos grandes poetas universais, ecos da poesia primeva,
Homero e Saint-John Perse, Walt Whitman e Victor Hugo, porque Soares Feitosa
não é um "ingênuo" do romanceiro popular, não
é o falso sertanejo da cidade nem o verdadeiro sertanejo iletrado,
mas o sertanejo autêntico hipostasiado em poeta culto.
É a "matéria do Nordeste" que forma
a substância dos seus cantos épicos e dos seus transportes
líricos, como na extraordinária "Antífona",
uma das mais belas odes jamais escritas em língua portuguesa.
É poema a ser lido por inteiro e em voz
alta:
"Venho de outras terras, meu capitão, não
sou da beira do mar, eu venho desd’onde uma bola de fogo, volúpia
de luz, volúpia de cor, cavalgava o horizonte e desabava, queda
brusca por detrás da serrania (...)".
As suas raízes humanas e poéticas,
como as de Homero (literalmente evocado), estão nos cantadores das
gestas populares:
"Acudam-me os cantadores: Ignácio da Catingueira,
negro e escravo; Romano da Mãe d’Água; vocês também
fundaram o galope, a cantoria; Pinto do Monteiro, Otacílio, dos
Batistas, a batistada toda, venham todos (...).
Leiam o saboroso "Rio Macacos":
"Rio?! Quem chamaria aquilo de rio? Era apenas
uma grota risível (...)", explicando nas notas didáticas
que acompanham todos os poemas: "Rio Macacos, nem sei se ainda existe,
mas lhes garanto que água ele não tem!". Soares Feitosa traduz
o folclore em versos literários, escritos num idioma culto, sem
concessões tolas ao populismo de carregação, assim
escapando dos lugares-comuns previsíveis e estafados:
"O sol, ainda ferro de brasa, chiando como um
ferro de ferrar boi, soltando chispas, para bater a poeira, as fagulhas
do dia, abanar-se um pouquinho da tarde quente, se esfregava nos penachos
da palmeira mais alta (...)."
A mais a seca, maldição divina,
seguida pelo milagre da água: "As águas em minha terra são
efêmeras,/ parideiras, fêmeas, efêmeras eram as águas...".
Com a primeira chuva, explodem as sementes mais apressadas: "Noutra chuva,/
outra leva nasceu (...) e mais outra, sempre mais uma leva/ de sementes
nasciam e sucumbiam/ um raspar das enxadas (...)". [Panos
Passados] e [Dormências].
Anexado ao volume, Soares Feitosa oferece ao leitor
o contacto físico com o Nordeste e o Brasil antigo, sob a forma
de um envelope com sementes de imburana-de-cheiro, por ele mesmo torradas
e moídas: é o perfume da terra que perpassa pela obra, não
só em sua materialidade física, mas também como representação
por assim dizer olfativa da poesia da terra.
Trata-se, então, de um poeta sertanejo,
limitado ao regionalismo típico das letras? Longe disso: é
um poeta lírico de harmônicas universais, inclusive as sugestões
místicas; é também um saudosista, na medida em que
são por natureza saudosistas os temas históricos e as evocações
sentimentais, inspiração para belos poemas, como, por exemplo,
"Perdidos e achados".
Não podemos tampouco ignorar-lhe o lado
ultra-moderno, criador do "Jornal de Poesia" pela Internet, em 1996, por
não haver encontrado nenhum texto de poesia em língua portuguesa
pelas ondas etéreas da eletrônica. E agora lá estão
eles, os poetas, consagrados e principiantes, o que já é,
em si mesmo, uma forma de poesia: a poesia do nosso tempo.
in O Globo, caderno de literatura Prosa & Verso,
de 26.04.97.
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