Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 5.2.2005



Estante de romances (I)
 



 

Sem detrair da qualidade estilística e fluência da narrativa, pode-se pensar que “O fotógrafo” (Rio: Rocco, 2004) ficará entre as obras menores de Cristóvão Tezza. A começar pela articulação dos episódios em segmentos justapostos (designados por títulos específicos), processo em que a história perde o centro de gravitação, apesar da sugestão de unidade representada pelo protagonista — narrador, quando “fala” na primeira pessoa, e narrado, quando intervém o romancista onisciente. A intriga lembra um pouco o conhecido poema de Drummond: Lídia, esposa do fotógrafo, é amante de Duarte, casado, por sua vez, com Mara, analista de Íris, a ser fotografada por encomenda, aliás mal esclarecida, e por quem, como seria de esperar, o fotógrafo se apaixona.

Pelo uso imoderado e desnecessário de palavrões segundo a escola estilística vigorante entre nós, o autor é o primeiro a infringir a regra n 1 dessa matéria: em obras literárias, o palavrão só se justifica quando responde a um propósito descritivo ou caracterizador, mas, no caso, o que desde logo chama a atenção é a sua gratuidade incongruente com o caráter dos figurantes ou com as respectivas situações. Esses expletivos de botequim só se admitem quando servem para definir o personagem em termos de educação ou classe social. Trata-se de questão técnica, não de escrúpulos moralizantes, tanto mais que se conjuga com o tratamento superficial dos interlocutores enquanto personalidades específicas. Tudo isso concorre para neutralizar a atmosfera dramática de que o romance (qualquer romance) depende para se configurar como testemunho do homem.

Quanto aos recursos narrativos, na minúcia com que se interessa pelo objeto, seus processos repetem o saudoso Novo Romance francês, que se definia a si mesmo, como se sabe, como a “escola do olhar”, tanto mais apropriadamente quanto o protagonista, por cacoete profissional, vê o mundo exterior através de lentes, reais ou instintivas: “enquanto eles falavam com o repórter, o fotógrafo se perguntava sempre: A luz? De onde vem a luz? — e ele mais uma vez olhou em torno, avaliando já um pouco mais do que a luz (...). E não estava fazendo o que devia: olhar antes para ela, gravar bem na alma aquela imagem (...). Mas acontecia justo o contrário, ele sentiu: ela que olhava para ele (...) cada gesto dele era escarradamente o gesto de um fotógrafo profissional (...) porque entre eles e o mundo está a máquina, o amortecedor do olhar (...)”.

É ainda o fotógrafo que surpreende por acaso a mulher saindo do cinema a que tinha ido com o amante. Sua primeira reação foi procurar a máquina na sacola para fixar o inesperado instantâneo: “Olhou em torno (...) e viu. Talvez não. Mas era Lídia mesmo, longe, na frente do cine Luz, com alguém. Deu dois passos adiante, como quem não se importa, a simulação da indiferença (...). Ela estava longe. Entre o fotógrafo e eles, adiante, passavam carros. Acabavam de sair do cinema. Ou não? Apenas se encontraram ali, no mesmo acaso dele? (...) Instintivamente, a mão procurou a teleobjetiva na bolsa aberta de um golpe, e ele puxou Lídia e o desconhecido para bem perto, enquadrando-os: conversavam, de fato, e sorriam, ela mais, ele menos. O dedo tateou o botão para bater a foto, mas um sentimento de vergonha, uma sombra, impediu-o de fotografar — não era uma fotografia que ele estava vendo. Outro impulso, devolveu a máquina para a bolsa, fechou o zíper e virou-se”.

Cena semelhante à dos dois padres que falavam e gesticulavam animadamente em frente à catedral de Leiria, conversa imaginariamente reconstituída por Eça de Queiroz, romancista que os observava de uma janela, no outro lado da praça, trecho clássico na literatura de língua portuguesa com as mesmas qualidades plásticas da fotografia ou, melhor ainda, do cinema, o que, enquanto técnica, é a mesma coisa. Inversamente, Cristóvão Tezza substitui o olho da câmera (que recusou para fixar o flagrante) pelo olhar do romancista, ao descrever, segundo a segundo, um instantâneo da vida urbana: “A porta do ônibus, enviesando-se naquela momentânea profusão de carros que se engarrafavam entre buzinas, freadas e pedestres na rua estreita, abriu-se guinchante antes mesmo de parar completamente, e o fotógrafo pulou para o asfalto, a três passos da calçada, preocupado com o tempo (...). Foi pedindo licença, cortando as filas compridas da espera dos ônibus, um cheiro de pipoca fresca no ar (...) desviou-se de uma senhora com um filho no colo que lhe estendia os dedos negros, uma exata simulação de sofrimento no rosto (não era uma boa fotografia, ele pensou) e desceu rápido os degraus que enfim o entregaram para a praça Santos Andrade, um espaço aberto, e ele respirou fundo, segurando firme a bolsa com o equipamento”.

Nem tudo, porém, neste romance, é do mesmo cristal. Há, pelo menos, duas passagens de constrangedor artifício, diálogos e até situações em que o autor não encontrou o justo tom de voz: um dos encontros com Íris, outro com o amigo de infância, agora deputado, a quem vai fotografar. São os desníveis que tornam menor, no conjunto da obra, este romance de Cristóvão Tezza. No último caso, os interlocutores já não se viam há tanto tempo que, no primeiro momento, mal se reconheceram, sendo inverossímil, diga-se de passagem, que o fotógrafo não lhe soubesse o nome. Mas, que a partir do efusivo reconhecimento, passassem a recordar nos mínimos pormenores os episódios de infância parece absolutamente inaceitável, dado o caráter puramente profissional da entrevista.

Menos crível ainda é que o deputado saltasse das evocações sentimentais para o discurso político de palanque: “parece que todos sabem o que fazer para o país se salvar, essa incrível, absurda, interminável grandeza brasileira, esse imenso coração (...)”, etc., etc... São as páginas menos felizes do conjunto, porque o próprio Tezza não é um romancista de idéias, aliás incongruentes com a natureza da história. Neste, como nos anteriores, ele se caracterizaria, antes, como romancista do olhar ou da visão, vendo a realidade através das lentes imaginárias da literatura.

 




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12/08/2005