Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

O transitório e o permanente

Jornal do Brasil
10.12.2005

Nos trabalhos esparsos de Afonso Arinos de Melo Franco agora reunidos em volume (O espírito e a ação: ensaios inéditos, org. Afonso Arinos, filho. Rio: ABL, 2005), cabe distinguir, justamente, entre a ação e o espírito. Há os que, relacionados com a ação, perderam a atualidade, transformando-se em história, paralelamente aos que, derivando do espírito, conservam atualidade, embora incorporados à história (intelectual e literária). Pertencem à primeira categoria os escritos de guerra, redigidos no calor da hora, boa parte deles quando tudo parecia perdido e nos quais a frieza historiográfica cedeu lugar às emoções do momento: Afonso Arinos foi um combatente antifascista para quem jamais seriam suficientes (e não foram) os insultos indignados contra os adversários.

De fato, mais do que qualquer outra, era uma guerra ideológica, e tão ideológica que foi, a princípio, uma guerra de classes. Afonso Arinos refere, a esse propósito, um episódio significativo: na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, os homens no poder e a sociedade que representavam viam no comunismo o inimigo comum que se tratava de abater, tarefa para qual Adolf Hitler parecia o homem enviado pelo destino. Tratava-se de deixar que destruisse a União Soviética para aliar-se, em seguida, aos países democráticos: “Aqui reside a principal explicação para o seu desejo de colaboração com a Alemanha. Lembro-me bem de que em 1939, menos de três meses antes da guerra, almoçando em Paris em casa de uma ilustre família francesa, com a presença de vários portadores de grandes nomes, fiquei assombrado pelo tom tranqüilo e objetivo com que era admirado o chanceler Hitler naquele meio. E esta mesma admiração pelo ditador da Alemanha, fui encontrá-la num modesto empregado da polícia, que me acompanhou num giro, de automóvel, pela cidade, indispensável para a obtenção da licença de conduzir”. O mesmo pode ser dito a respeito da aristocracia britânica, tópico que até já passou para filmes ingleses.

Pensou-se, por um momento, que o chanceler tinha vindo como homem providência, destinado a salvar a civilização cristã contra o comunismo ateu, frase então corriqueira, inclusive nos meios católicos. Claro, Hitler foi o primeiro a perceber o que havia de hipócrita nessa posição, como demonstra o plano Schleicher (1932), citado por Afonso Arinos: “Segundo ele, a Alemanha deve concluir uma convenção militar com a Rússia, cujo artigo principal já foi amavelmente redigido pelo sr. Hitler. Em seguida, aproveita-se o primeiro pretexto de guerra para atacar a França e a Polônia, e quando se tenha chegado a uma solução a oeste, haverá um entendimento com os adversários no sentido de um ataque geral à Rússia”. Isso sete anos antes do famoso pacto germano-soviético que pegou a todos de surpresa, inclusive os partidos comunistas dos outros países.

Como seria de esperar, a história foi reescrita em perspectivas maniqueístas: em nossos dias, é possível questionar o comportamento de um papa em face da realidade hitlerista, sem esquecer o herói que, refletindo o anticomunismo visceral dos norte-americanos, declarou suas simpatias pelo nazismo: era o “aluno de curso secundário Charles Lindberg”. A nação americana, acrescentava Afonso Arinos, estava lutando “contra enormes empecilhos, dos quais o menos importante era a pregação ingênua e irritante de alguns bobos semi-fascistizantes da marca do colegial Lindberg, ora em férias”. As paixões do tempo explicam esse vocabulário, mas basta lembrar que foi necessária a tragédia de Pearl Harbour para que os Estados Unidos se decidissem a entrar numa guerra em que não se sentiam implicados.

Esses são os tópicos em que a ação perdeu em atualidade o que ganhou em historicidade, enquanto os do espírito conservam atualidade permanente, sem prejuízo de terem passado, já agora, para os anais historiográficos. Do conjunto, cumpre destacar o brilhante paralelo intelectual entre dois homens que, nos anos de 1940, refugiados de guerra, acrescentaram novas dimensões ao pensamento brasileiro, introduzindo um sopro de cultura até então tanto mais desconhecido quanto acabávamos de sair, se é que havíamos saído, do mais estreito provincianismo: o regionalismo “nordestino”, impregnado do esquerdismo primário e simplificador que o condicionava.

Trata-se de Georges Bernanos e Otto Maria Carpeaux, assunto de “numerosos traiçoeiros escolhos”, um dos quais “condensar em algumas linhas ou páginas idéias de todo inúteis sobre personalidades tão complexas”. Complexas e organicamente opostas entre si, apesar dos incontáveis mal-entendidos que, à primeira vista, os tornava semelhantes e complementares. Bernanos era um direitista de esquerda, enquanto Carpeaux poderia ser visto, àquela altura, como um esquerdista de direita. Sabe-se que se desentenderam, como seria inevitável, enquanto Carpeaux, de seu lado, despertou odiosa hostilidade nos meios comunistas. Bernanos vinha de Action Française, embora tivesse rompido quando Maurras e sua doutrina foram condenados pela Igreja. Direitista quanto fosse ou parecesse, Carpeaux investiu “vitoriosamente contra Charles Murras, contra este Murras que é talvez o mais funesto, o mais criminoso escritor do seu tempo, o feiticeiro genial e ressentido, que dedicou a vida a destruir, pela inteligência, a dignidade da inteligência”.

Palavras de Afonso Arinos que, apesar de tudo, devem ter reaberto velhas feridas na alma de Bernanos. Quanto a Carpeaux, terminaria a vida na companhia de esquerdistas brasileiros em jornais de oposição.

Ao lado desses temíveis gladiadores convém colocar para contraste e equilíbrio a nobre figura de Clóvis Beviláqua, cuja oração fúnebre Afonso Arinos escreveu com abundância de coração e respeito que lhe era e continua devido: “a morte de Clóvis Beviláqua não foi apenas o desaparecimento de um verdadeiro sábio, de um insigne varão da República, de um espírito dotado de uma pureza ingênita, quase incomparável entre os homens de seu tempo”. E de todos os tempos, acrescento eu, aqueles que, contra ventos e marés, resguardaram a dignidade do homem.

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19/01/2006