Nos trabalhos esparsos de Afonso
Arinos de Melo Franco agora reunidos em volume (O espírito e a ação:
ensaios inéditos, org. Afonso Arinos, filho. Rio: ABL, 2005), cabe
distinguir, justamente, entre a ação e o espírito. Há os que,
relacionados com a ação, perderam a atualidade, transformando-se em
história, paralelamente aos que, derivando do espírito, conservam
atualidade, embora incorporados à história (intelectual e
literária). Pertencem à primeira categoria os escritos de guerra,
redigidos no calor da hora, boa parte deles quando tudo parecia
perdido e nos quais a frieza historiográfica cedeu lugar às emoções
do momento: Afonso Arinos foi um combatente antifascista para quem
jamais seriam suficientes (e não foram) os insultos indignados
contra os adversários.
De fato, mais do que qualquer outra,
era uma guerra ideológica, e tão ideológica que foi, a princípio,
uma guerra de classes. Afonso Arinos refere, a esse propósito, um
episódio significativo: na França, na Inglaterra e nos Estados
Unidos, os homens no poder e a sociedade que representavam viam no
comunismo o inimigo comum que se tratava de abater, tarefa para qual
Adolf Hitler parecia o homem enviado pelo destino. Tratava-se de
deixar que destruisse a União Soviética para aliar-se, em seguida,
aos países democráticos: “Aqui reside a principal explicação para o
seu desejo de colaboração com a Alemanha. Lembro-me bem de que em
1939, menos de três meses antes da guerra, almoçando em Paris em
casa de uma ilustre família francesa, com a presença de vários
portadores de grandes nomes, fiquei assombrado pelo tom tranqüilo e
objetivo com que era admirado o chanceler Hitler naquele meio. E
esta mesma admiração pelo ditador da Alemanha, fui encontrá-la num
modesto empregado da polícia, que me acompanhou num giro, de
automóvel, pela cidade, indispensável para a obtenção da licença de
conduzir”. O mesmo pode ser dito a respeito da aristocracia
britânica, tópico que até já passou para filmes ingleses.
Pensou-se, por um momento, que o
chanceler tinha vindo como homem providência, destinado a salvar a
civilização cristã contra o comunismo ateu, frase então corriqueira,
inclusive nos meios católicos. Claro, Hitler foi o primeiro a
perceber o que havia de hipócrita nessa posição, como demonstra o
plano Schleicher (1932), citado por Afonso Arinos: “Segundo ele, a
Alemanha deve concluir uma convenção militar com a Rússia, cujo
artigo principal já foi amavelmente redigido pelo sr. Hitler. Em
seguida, aproveita-se o primeiro pretexto de guerra para atacar a
França e a Polônia, e quando se tenha chegado a uma solução a oeste,
haverá um entendimento com os adversários no sentido de um ataque
geral à Rússia”. Isso sete anos antes do famoso pacto
germano-soviético que pegou a todos de surpresa, inclusive os
partidos comunistas dos outros países.
Como seria de esperar, a história foi
reescrita em perspectivas maniqueístas: em nossos dias, é possível
questionar o comportamento de um papa em face da realidade
hitlerista, sem esquecer o herói que, refletindo o anticomunismo
visceral dos norte-americanos, declarou suas simpatias pelo nazismo:
era o “aluno de curso secundário Charles Lindberg”. A nação
americana, acrescentava Afonso Arinos, estava lutando “contra
enormes empecilhos, dos quais o menos importante era a pregação
ingênua e irritante de alguns bobos semi-fascistizantes da marca do
colegial Lindberg, ora em férias”. As paixões do tempo explicam esse
vocabulário, mas basta lembrar que foi necessária a tragédia de
Pearl Harbour para que os Estados Unidos se decidissem a entrar numa
guerra em que não se sentiam implicados.
Esses são os tópicos em que a ação
perdeu em atualidade o que ganhou em historicidade, enquanto os do
espírito conservam atualidade permanente, sem prejuízo de terem
passado, já agora, para os anais historiográficos. Do conjunto,
cumpre destacar o brilhante paralelo intelectual entre dois homens
que, nos anos de 1940, refugiados de guerra, acrescentaram novas
dimensões ao pensamento brasileiro, introduzindo um sopro de cultura
até então tanto mais desconhecido quanto acabávamos de sair, se é
que havíamos saído, do mais estreito provincianismo: o regionalismo
“nordestino”, impregnado do esquerdismo primário e simplificador que
o condicionava.
Trata-se de Georges Bernanos e Otto
Maria Carpeaux, assunto de “numerosos traiçoeiros escolhos”, um dos
quais “condensar em algumas linhas ou páginas idéias de todo inúteis
sobre personalidades tão complexas”. Complexas e organicamente
opostas entre si, apesar dos incontáveis mal-entendidos que, à
primeira vista, os tornava semelhantes e complementares. Bernanos
era um direitista de esquerda, enquanto Carpeaux poderia ser visto,
àquela altura, como um esquerdista de direita. Sabe-se que se
desentenderam, como seria inevitável, enquanto Carpeaux, de seu
lado, despertou odiosa hostilidade nos meios comunistas. Bernanos
vinha de Action Française, embora tivesse rompido quando Maurras e
sua doutrina foram condenados pela Igreja. Direitista quanto fosse
ou parecesse, Carpeaux investiu “vitoriosamente contra Charles
Murras, contra este Murras que é talvez o mais funesto, o mais
criminoso escritor do seu tempo, o feiticeiro genial e ressentido,
que dedicou a vida a destruir, pela inteligência, a dignidade da
inteligência”.
Palavras de Afonso Arinos que, apesar
de tudo, devem ter reaberto velhas feridas na alma de Bernanos.
Quanto a Carpeaux, terminaria a vida na companhia de esquerdistas
brasileiros em jornais de oposição.
Ao lado desses temíveis gladiadores
convém colocar para contraste e equilíbrio a nobre figura de Clóvis
Beviláqua, cuja oração fúnebre Afonso Arinos escreveu com abundância
de coração e respeito que lhe era e continua devido: “a morte de
Clóvis Beviláqua não foi apenas o desaparecimento de um verdadeiro
sábio, de um insigne varão da República, de um espírito dotado de
uma pureza ingênita, quase incomparável entre os homens de seu
tempo”. E de todos os tempos, acrescento eu, aqueles que, contra
ventos e marés, resguardaram a dignidade do homem. |