O jurídico e o político
MAIS COMO ADVOGADO do que como
político – e tendo feito, por
isso mesmo, do direito uma arma
política – Rui Barbosa criou e
implantou no direito público
brasileiro o mito da Suprema
Corte norte-americana: nas
instituições de 1889 era o órgão
de oposição e fiscalização
contra os excessos dos outros
poderes. Advogado e político da
oposição, salvo os breves
momentos em que foi oposição
dentro do governo, ele sempre
representou as minorias, seja a
minoria potencial da parte
civil, antes da decisão da
causa, seja a minoria efetiva
dos grupos não admitidos ao
governo, além disso solitário na
sua superioridade como o grande
homem de Vigny. Acrescente-se
que, pela idiossincrasia
predominante do seu
temperamento, era uma
consciência jurídica praticando
convictamente a religião da
força do direito, na mesma
medida em que se opunha ao
direito da força: em Haia, expôs
polemicamente a lição teórica
sobre o que é político e sobre o
que é jurídico, reduzindo ao
silêncio as inteligências
eslavas e saxônicas, pouco
inclinadas a essas argúcias
especulativas.
Argúcias que perderam cogência
neste momento de nossa vida
pública. Pela conformação do
espírito, ele via o político
como uma realidade jurídica, ao
contrário dos homens de partido,
que costumam ver o jurídico como
uma realidade política, nisso se
resumindo todos os seus
desajustamentos em nossa vida
pública. No pensamento de Rui
Barbosa, o Supremo Tribunal
Federal não era “supermo” apenas
por se apresentar como tribunal
de superior instância: era
“supremo” constitucionalmente,
era a “cúpula do regime”. Na
ideia do seu criador, era sobre
os fundamentos jurídicos do
regime que o próprio regime
devia assentar, deles recebendo
luz e calor: na prática, pelas
inevitáveis contingências da
vida pública, a República teve
de ser política antes de ser
jurídica: Rui Barbosa construiu
o mito de um Supemo idealizado,
fundado, por sua vez, no mito de
uma idealizada Suprema Corte
que, em nossos dias, chegou a
“eleger” um presidente em
circunstâncias que teriam
escandalizado o velho Rui
Barbosa.
No
seu espírito, havia a
necessidade de uma força
jurídica que o garantisse contra
a força política e que não se
cansava de repetir seria o
Supremo Tribunal Federal.
Contudo, ele não podia
apresentá-lo como uma invenção
teórica do seu espírito na qual,
diga-se de passagem, ele era o
primeiro a acreditar: a Suprema
Corte era o que desejaria que
fosse, isto é, o absoluto
jurídico presidindo, como um
deus remunerador e punitivo, o
mundo do relativo político.
Inútil acrescentar que os
norteamericanos seriam os
primeiros a espantar-se com as
proporções desse mito,
reafirmado, claro está, quando
convém.
O
Supremo jamais chegou a ser o
que Rui Barbosa desejava que
fosse, nem, tampouco, a Suprema
Corte norte-americana. O curioso
é que o mito acabou por se
sobrepor à realidade e, ainda em
vida de Rui Barbosa, o Supremo
Tribunal Federal passou a
constituir, na organização
política brasileira, a pedra
angular que a Suprema Corte só
mais tarde veio a ser (e
incompletamente) na vida
política norteamericana. De
resto, todos os paralelos
jurídicos e políticos entre os
dois países padecem
inevitavelmente de uma certa
incorreção, de um certo
desajustamento: não há
correspondência perfeita entre
ambos e, na realidade, tanto a
Constituição de 1891 quanto o
Supremo Tribunal Federal eram
heterogêneos com as instituições
americanas correspondentes.
A
pureza jurídica do Supremo veio
comprometida desde as suas
origens: é uma corporação
política cujos membros se
escolhem segundo critérios
políticos. Cada presidente
preenche as vagas eventuais com
os seus próprios
correligionários para garantir
as maiorias de que venha a
necessitar. Mesmo em matéria
especificamente jurídica, os
tribunais não criam nem
constroem o direito:
reconhecem-no na medida em que
foi imposto pelos fatos: assim,
por exemplo, o direito novo da
legislação republicana (o
casamento civil, a liberdade
religiosa) foram impostos pelos
costumes, sem o que não seriam
adotados, o mesmo sendo
verdadeiro no que se refere à
legislação social, e assim por
diante. Há, pois, um momento em
que político e o jurídico se
confundem, todo o segredo
consistindo em fazê-los conviver
de boa fé.