Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

 

 

As Carnaubeiras de Catuana

 

Wilson Martins


 

Jornal do Brasil
12.9.2009

 

 

O jurídico e o político

 

MAIS COMO ADVOGADO do que como político – e tendo feito, por isso mesmo, do direito uma arma política – Rui Barbosa criou e implantou no direito público brasileiro o mito da Suprema Corte norte-americana: nas instituições de 1889 era o órgão de oposição e fiscalização contra os excessos dos outros poderes. Advogado e político da oposição, salvo os breves momentos em que foi oposição dentro do governo, ele sempre representou as minorias, seja a minoria potencial da parte civil, antes da decisão da causa, seja a minoria efetiva dos grupos não admitidos ao governo, além disso solitário na sua superioridade como o grande homem de Vigny. Acrescente-se que, pela idiossincrasia predominante do seu temperamento, era uma consciência jurídica praticando convictamente a religião da força do direito, na mesma medida em que se opunha ao direito da força: em Haia, expôs polemicamente a lição teórica sobre o que é político e sobre o que é jurídico, reduzindo ao silêncio as inteligências eslavas e saxônicas, pouco inclinadas a essas argúcias especulativas.

Argúcias que perderam cogência neste momento de nossa vida pública. Pela conformação do espírito, ele via o político como uma realidade jurídica, ao contrário dos homens de partido, que costumam ver o jurídico como uma realidade política, nisso se resumindo todos os seus desajustamentos em nossa vida pública. No pensamento de Rui Barbosa, o Supremo Tribunal Federal não era “supermo” apenas por se apresentar como tribunal de superior instância: era “supremo” constitucionalmente, era a “cúpula do regime”. Na ideia do seu criador, era sobre os fundamentos jurídicos do regime que o próprio regime devia assentar, deles recebendo luz e calor: na prática, pelas inevitáveis contingências da vida pública, a República teve de ser política antes de ser jurídica: Rui Barbosa construiu o mito de um Supemo idealizado, fundado, por sua vez, no mito de uma idealizada Suprema Corte que, em nossos dias, chegou a “eleger” um presidente em circunstâncias que teriam escandalizado o velho Rui Barbosa.

No seu espírito, havia a necessidade de uma força jurídica que o garantisse contra a força política e que não se cansava de repetir seria o Supremo Tribunal Federal. Contudo, ele não podia apresentá-lo como uma invenção teórica do seu espírito na qual, diga-se de passagem, ele era o primeiro a acreditar: a Suprema Corte era o que desejaria que fosse, isto é, o absoluto jurídico presidindo, como um deus remunerador e punitivo, o mundo do relativo político.

Inútil acrescentar que os norteamericanos seriam os primeiros a espantar-se com as proporções desse mito, reafirmado, claro está, quando convém.

O Supremo jamais chegou a ser o que Rui Barbosa desejava que fosse, nem, tampouco, a Suprema Corte norte-americana. O curioso é que o mito acabou por se sobrepor à realidade e, ainda em vida de Rui Barbosa, o Supremo Tribunal Federal passou a constituir, na organização política brasileira, a pedra angular que a Suprema Corte só mais tarde veio a ser (e incompletamente) na vida política norteamericana. De resto, todos os paralelos jurídicos e políticos entre os dois países padecem inevitavelmente de uma certa incorreção, de um certo desajustamento: não há correspondência perfeita entre ambos e, na realidade, tanto a Constituição de 1891 quanto o Supremo Tribunal Federal eram heterogêneos com as instituições americanas correspondentes.

A pureza jurídica do Supremo veio comprometida desde as suas origens: é uma corporação política cujos membros se escolhem segundo critérios políticos. Cada presidente preenche as vagas eventuais com os seus próprios correligionários para garantir as maiorias de que venha a necessitar. Mesmo em matéria especificamente jurídica, os tribunais não criam nem constroem o direito: reconhecem-no na medida em que foi imposto pelos fatos: assim, por exemplo, o direito novo da legislação republicana (o casamento civil, a liberdade religiosa) foram impostos pelos costumes, sem o que não seriam adotados, o mesmo sendo verdadeiro no que se refere à legislação social, e assim por diante. Há, pois, um momento em que político e o jurídico se confundem, todo o segredo consistindo em fazê-los conviver de boa fé.

   
 
 

 

 

 

 

 

6.12.2008