Vale or Farewell, ARTHUR HACKER, (1858 - 1919)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

Wilson Martins

não está mais em O GLOBO

 


Em continuidade à publicação da coluna de Wilson Martins, o JP, traz-lhes esta, sobre a escrita de Domingos Pellegrini


Gazeta do Povo

8.8.2005

 

 

Conto Romance Poesia

 

Trata-se de Domingos Pellegrini que, estreando em 1977 com O menino vermelho, situou-se desde logo entre os ficcionistas brasileiros mais importantes e originais pela temática, pelo vigor do estilo narrativo e pela originalidade, qualidades mais do que evidentes na antologia dos seus melhores contos, selecionados com algumas páginas definitivas de introdução por Miguel Sanches Neto (São Paulo; Global, 2005). No conto e no romance, Domingos Pellegrini é o ficcionista do uomo qualunque, mas tipo de natureza específica – o pioneiro do norte paranaense, herói obscuro e anônimo da epopéia coletiva em que se revelava a inteira medida do homem.

São livros regionais no que a região tem de universal, sem o caboclismo convencional que entre nós se confunde com a literatura regionalista. Em paradoxo apenas aparente, o pioneiro é homem de mentalidade urbana, tendo no caminho o seu instrumento de conquista, avançando para implantar o que é, na realidade, a agricultura industrial e internacional, o café, a madeira, a soja, criando cidades no mesmo movimento em que avança pelo território. Nas palavras de Miguel Sanches Neto, "o contista se vale de seres simples – caminhoneiros, peões, violeiros, operários etc. – para revelar uma região em que se dava a exploração humana". O que há de revolucionário em O homem vermelho, escreve ainda Miguel Sanches Neto em observação que se pode estender a toda a obra, "é a transformação do indivíduo comum em herói da vida cotidiana, que está além dos politizados, perdidos entre a realidade e as representações do mundo intelectual".

No que se refere ao estilo, "há um certo barbarismo em sua escrita, seja na construção de algumas frases seja no tratamento cru a que ele submete seus temas. Esta barbárie é positiva pois o coloca dentro do universo representado, diminuindo a distância entre a linguagem do autor e a dos personagens. […] Prova de que o autor consegue o que pretende em seus melhores contos é que o lemos sem perceber que há um texto diante de nós. A vida se sobrepõe à linguagem de tal forma que nos sentimos dentro da história e não na posição externa de observador" (Miguel Sanches Neto).

O mesmo, podendo ser dito a respeito dos seus romances anteriores (Terra vermelha, 1998; No coração das perobas, 2002, para citar apenas dois títulos), já não se aplica com a mesma justeza a Os meninos no poder (Rio: Record, 2005). Estamos, mesmo, no extremo oposto: em lugar do realismo sem ilusões, Pellegrini escreveu uma fábula política, qualquer coisa como um tratado de angelologia – sobre as eleições brasileiras, no qual os protagonistas e seus seguidores propõem a política "como deveria ser" em contraposição às baixezas da política tal como é. Na doutrinação de um figurante: "Nossa campanha não é para um grupo chegar ao poder usando o povo, como sempre, mas para o povo chegar ao poder usando pessoas bem intencionadas como nós! Pois você achou que nós íamos governar sozinhos, companheiro? E quem melhor que as pessoas que conheço e admiro, por seus talentos, para nos ajudar na missão de governar a cidade onde fomos meninos? E quem melhor que um ex-menino de rua, representando todos os desvalidos desse sistema injusto, para nos liderar nesta marcha?". Como seria de esperar, os bons acabam vencendo, graças às astúcias bem intencionadas, nem por isso menos censuráveis, do condutor da campanha, aliás inocente, sendo um doente mental de comportamento esquizofrênico.

Todos os diálogos e discursos dos personagens puros são escritos em tom declamatório, como, por exemplo, na apresentação do horário gratuito: "Olá, gente, só temos três minutos, então vamos começar com três garantias. Garantia de que aqui você não vai ouvir mentira, xingação, ironia, calúnia, denúncia, nada disso. Garantia de que vai conhecer um programa de governo pra valer, não de grandes obras que seria ideal fazer, mas das obras e serviços que precisamos e podemos fazer! E garantia de que o que gastamos na nossa campanha será mostrado, até o último centavo, no último programa desta Campanha do Bem!".

Palavras que poderiam ser ditas, e certamente o foram, pelos adversários, de forma que a política, queiramos ou não, tem a sua linguagem própria. Necessariamente populista, a campanha partia de simplismos banais: "O que mais aprendi fora daqui é o que aqui mais falta, cidadania! […] Estamos vivendo na maior das ditaduras, até porque é mundial, uma ditadura financeira e fiscal, disfarçada ou invisível, porque te cobram cada vez mais para viver, e cada vez mais há mais gente pobre e até menos ricos, mas uns poucos ficam sempre mais ricos! Só os grandes crescem, grandes bancos, grandes grupos, grandes empresas, e os pequenos ou se fundem ou fecham! A gente paga preços cartelizados no cimento, na água, no telefone, na energia, no transporte, nos combustíveis, na tevê, no sabonete, na comida, na bebida, e o governo não se importa porque leva sua parte em impostos embutidos de que o povo nem desconfia!".

Aqui é o jornalista Domingos Pellegrini falando em nome de suas convicções doutrinárias e repetindo os lugares-comuns da sabedoria popular. O mesmo jornalista ou o mesmo doutrinário que escreveu o soneto "A Che Guevara", incluindo no volume Gaiola aberta (Rio: Bertrand Brasil, 2005). Livro de sonetos, mas com tantas licenças poéticas que o autor seria certamente reprovado no vestibular da Escola Parnasiana. Apesar disso, são poemas de sensibilidade e inteligência, nos quais reencontramos a mesma visão humanitária e evangélica: "Um céu amanhecendo eternamente / e rosas que sempre desabrochassem / num mundo onde não existisse quase / nem talvez – um mundo plenamente // Pessoas que a toda pessoa amassem / como a si mesmas – tão cristãmente / que disso nem se dessem conta: gente / tão cristã que de Cristo nem lembrasse […]."

É, como se vê, a mesma ótica sublimadora que agora parece dominar a ideologia do autor: "Tolerância: a suprema religião / entre estertores das últimas crises / da ganância, do ódio e de ambição". Aceitamo-la como filosofia de vida por parte do poeta que também compôs um soneto de louvor ao soneto ("Inconformado") e elogiou "o bom mulato Machado de Assis" por jamais ter feito "um verso de pé quebrado", embora acrescentando: "o mundo não é tão regulado como a poética se quis". Mas, quando se escreve poesia, é preciso obedecer ao que a poética quer.

E como deseja o autor no seu ideário de política idealizante, confirmando, sem querer, o conhecido axioma de André Gide: é com os bons sentimentos que se faz a má literatura.

Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

14.8.2005