Wilson Martins
Prosa & Verso, 28.5.2005
Prosa e poesia (I)
Há poetas que
pensam por imagens, escrevendo no idioma metafórico da poesia
— e há os que, pensando por idéias, escrevem na língua
referencial da prosa. É neste último grupo que cabe situar
Paulo Bentancur (“Bodas de osso”) e Carpinejar (“Como no
céu”), ambos em edição Bertrand Brasil, 2005. Praticam o verso
livre sem atentar para as suas dificuldades e exigências,
talvez mais rigorosas que as do verso regular, conforme
advertiam Manuel Bandeira e Mário de Andrade: seus versos
resultam do exercício raciocinante da inteligência, não dos
impulsos espontâneos da emoção.
É fácil perceber tais
diferenças de natureza com a transcrição em linha gráfica de
prosa de qualquer poema de Carpinejar e de Paulo Bentancur,
inspirados na vida cotidiana e nas memórias. Paulo Bentancur:
“Meu pai foi tratorista, minha mãe costureira. Meu avô, um
distraído, minha avó esgotada em filho. Sem herança, mau
aluno, com medo, incapaz de roubos, os anos se passaram sem
fortuna”. Sem consultar o texto original, tente o leitor
curioso reconstituir os versos segundo as convenções gráficas
comuns.
Os versos de Carpinejar sugerem o mesmo tipo
de exercício: “Nunca tenho lugar suficiente aos livros,
atulhados entre a cama e a mesa. Anotados, dobrados, velhos,
anestesiados numa bolsa ou nas gavetas. Nenhum volume magro
ultrapassa a roleta, não vejo espaço de pé ou sentado”. O
poema termina com um dístico em que Carpinejar sugere emoção
poética: “Minha mulher ri do meu desequilíbrio na escada. Seu
riso também é uma estante cheia”. Esse, como tantos outros da
coletânea, é um poema inspirado, não no amor, mas no casamento
e na vida doméstica. Carpinejar revela persistente tendência
para as metáforas incongruentes, como, nesse caso, o riso da
mulher que é uma estante cheia, ou os livros “anestesiados”
nas gavetas, ou, em outros poemas: “E eu espalho minha nudez/
como quem retira as espinhas de um peixe”, ou, ainda: “Leio
tuas sobrancelhas/ como quem estuda a caligrafia/ de um idioma
árabe”. Em outro poema: “Abro bem os olhos de cada palavra,/
como quem pisa em telhas”. Outro: “O relógio na cozinha,
pupila de faca”. Pupila de faca? Nudez espalhada ou roupas
espalhadas? Esse tipo de metáfora aparece e reaparece em todos
os poemas: “Não nos daremos adeus,/ ainda que o fundo do
tempo/ martele os joelhos/ como um médico de família”. Tanto o
tempo martelando os joelhos quanto o médico entraram nos
versos como imagens arbitrárias. Em outro poema, um homem
“esfregava o vidro como quem termina uma carta”, tudo
culminando em referências de ornitologia e ictiologia
imaginárias: “Os peixes são mais curiosos/ do que os
pássaros./ Sou um pássaro voando com as escamas”.
Tanto Carpinejar quanto Paulo Bentancur encaram-se a
si mesmos com indisfarçável admiração, espíritos fora de série
em plena febre de criação, para nada dizer do que os distingue
dentre o comum dos mortais, mas a verdade é que nada existe de
febril, antes fria deliberação, nessa poesia prosaica. Paulo
Bentancur: “O menino pobre encontrou/ o poeta médio que virou/
homem solteiro e não casou/ mas comprou uma casa. (...) o
poeta fez de um dormitório/ depósito de papéis. E/ o sofá, a
sua cama”, etc., etc. É certo que os poetas que não se casam
permanecem solteiros. Ainda mais característica é a “Biografia
de um poeta”: “Quando nasce um poeta,/ quando nasce sua mãe?/
Quando ela o pare e, ao pari-lo,/ chora e sofre, a morrer?
(...) Quando nasce um poeta,/ quando publica um livro/ feito
de poemas que/ ou o fazem a cria ou/ criador também o fazem?/
Não sabe, assim, as datas de/ tantas vidas, tantas mortes,/ e
é sorte sua não saber/ a biografia que o ultrapassa”.
Há alguns anos, muitos jovens poetas em febre
puerperal encaravam o processo criador como um capítulo de
ginecologia, imagem que também encontra o seu favor em Paulo
Bentancur. Vimos, acima, a mãe em trabalhos de parto,
produzindo um poeta para confirmar a sabedoria dos antigos
segundo a qual os poetas nascem feitos. Um dos seus poemas
intitula-se, precisamente, “Parto”: “O espaço enorme, a folha
em branco./ O poema abre os olhos, ainda não-poema./ Dá passos
desenhados no papel, com a boca/ muda se desloca lento./
Nascem juntos autor e obra./ Reconhecimento, o primeiro
instante./ Depois cada um parte diferente,/ e sozinho”.
O poeta escrevendo, sugere Paulo Bentancur, é um
Vulcano na sua forja, expelindo fagulhas, enfrentando a
hostilidade do mundo e dos elementos: “Como as nuvens/ que
armam tempestades/ e em seguida desarmam/ — sem nenhum sorriso
—,/ também eu me armo/ para o que me ama,/ me construo em
queda/ e logo, em pleno ar,/ vôo no desassossego.// Como as
nuvens/ eu passo, flutuando,/ numa queda horizontal./ O olhar
na escuridão/ de um rosto que sonha o céu,/ firmamento que
derrubo/ para limpar o que sobrou./ A tempestade que armo/
passa quando eu caminho” (“Como as nuvens”). Daí, com certeza,
a queda horizontal.
O exercício gratuito da escrita
resultou, às vezes, em poemas de pura fabricação, como “Antes
do primeiro round”, mas há coisas melhores, como o poema em
prosa “A infância de Adão”: “Antes que recebesse o sopro
divino, Adão era frágil forma, choro e riso sem amparo: cadê
mãe? Precisava beber leite de um seio cujo sangue fosse o
mesmo seu (...)”, embora tudo só deve ter ocorrido “depois” de
Adão haver recebido o sopro divino. Quando supera o tropismo
autobiográfico literal, Paulo Bentancur escreve “Na praça
pública”: “Aqui o limo tomou o lugar da saudade/ e a solidão
nada tem de orgânico. Aqui/ o sol pouco bate. E seus raios
esfriam/ em tanta pedra opaca, em tanto monumento/ sem
momento, em nomes sem família,/ em ilustres gastos pelo tempo
que enterra/ toda estátua para a sua queda e logo outra/ de um
herói mais recente toma uma nova praça (...)”. Poema a ser
posto ao lado de “A vida é maior” ou “Quem vem”, ambos de
evidentes harmônicas drummondianas. A suposta “poesia” da
infância será antes um mito idealizador e reconstrutivo que
uma realidade biográfica, mas não é o que importa: a poesia
existe precisamente para tornar poético o que na vida exterior
foi apenas prosaico.
Prosa e poesia (II)
Prosa & Verso, 4.6.2005
A diferença
entre os versos escritos em língua referencial e a poesia
escrita no idioma metafórico não é de qualidade, mas de
natureza: os primeiros simplesmente não são poesia literária.
O aferidor de qualidade só se aplica nos domínios específicos
da poesia: há poetas bons e menos bons, para nada dizer dos
grandes, situados fora de série, mas a avaliação de qualidade,
pressupondo-se no leitor a competência judicativa no ponto de
partida, tem muito de pessoal e subjetivo. Os “bons” poetas
são para determinados grupos de leitores de idêntica
sensibilidade e formação: a poesia literária está tanto no
poeta quanto no leitor.
Eis, por exemplo, o caso de
Jorge de Lima (1893-1953), cuja obra não pode ser ignorada,
nem mesmo menosprezada, nos quadros da poesia brasileira do
século XX, e contudo... sujeito a periódicos “esquecimentos”,
regularmente entremeados de não menos periódicas reavaliações,
sempre destinadas a recuperá-lo, abrindo caminho para outras
temporadas de oblívio. Bom conhecedor da matéria, José Paulo
Paes reduzia-lhe a carreira a duas fases — a
consubstancialista e a formalista — “deixando de fora os
primeiros sonetos esparsos e os XIV alexandrinos como meros
tentamens de versejador, mais que de poeta.”
De fato, ele foi organicamente um espírito mimético,
parnasiano ao tempo do Parnasianismo expirante, modernista
quando o Modernismo já era história, surrealista temporão do
nosso Surrealismo igualmente temporão, ao qual incorporou as
crenças e o proselitismo católico durante a vaga que recebeu o
nome de Espiritualismo. Daí para a epopéia de biblioteca era
um passo quase previsível, transposto em 1952 com “Invenção de
Orfeu”, “nebulosa cosmogonia”, como a qualifica Cláudio Murilo
Leal (Jorge de Lima. “Invenção de Orfeu”. Rio: Record, 2005).
Nas históricas palavras introdutórias da primeira edição,
Adolfo Casais Monteiro, refletindo desde logo a perplexidade
que iria tomar conta de nosso pensamento crítico, afirmava que
seriam necessárias várias gerações de intérpretes e analistas
para que afinal se configurasse o quadro dos julgamentos
definitivos. As gerações se sucederam, como no Eclesiastes, e
a “terra” continuou a mesma: de Casais Monteiro e Mário
Faustino e chegando a Luiz Busatto, o veredito, tão amenizado
quanto possível, tem sido negativo, apesar da benevolência dos
jurados.
“Invenção de Orfeu” é o coroamento natural e,
ao mesmo tempo bastardo, de sua obra: “o mimetismo chega à
paráfrase, se não à transcrição pura e simples dos grandes
modelos, inclusive de segunda mão, através das empedradas
traduções de Odorico Mendes, aliás elogiadas pelos teóricos do
Concretismo”, escrevi em 1997. Cuidadosamente ignorado pela
crítica, o livro de Luiz Busatto (“Intertextualidade de
Invenção de Orfeu”, 1987) é a resposta irônica ao prefácio de
Casais Monteiro, ao tempo em que os plágios, imitações e
remissões literais receberam o nome acadêmico de
“intertextualidade”. Imitar epopéias não é escrevê-las: sua
unidade estrutural, observava José Paulo Paes, “é garantida
ora por um fio narrativo, ora por alguma homogeneidade de
dicção. Já isso não acontece em “Invenção de Orfeu” cujos dez
cantos não desenvolvem nenhum tipo de argumento: a ocasional
reiteração de motivos-chave, como o da busca da ilha mística
ou da progressiva e emblemática fundação do poeta pelo seu
próprio cantar metalingüístico, não chega nem de longe a dar
um mínimo esqueleto de sustentação à mole verbal de mais de
nove mil versos. Tampouco há qualquer homogeneidade de dicção:
verso branco e verso rimado se alternam discricionariamente;
discricionariamente se misturam variados tipos de estrofação”.
Segundo o livro clássico de C. M. Bowra (“From Virgil
to Milton”, 1945), as epopéias se distinguem não por serem
“autênticas” ou “literárias”, mas por serem orais ou escritas:
a “Eneida”, modelo dos “Lusíadas”, pertence a esta última
categoria, assim como a “Jerusalém libertada” e o “Paraíso
perdido”. Desnecessário dizer que a ambição de Jorge de Lima
foi rivalizar com Camões superando-o, aposta perdida no
instante mesmo em que se formulou, antes de mais nada por lhe
faltar matéria autêntica: “Os autores de epopéias literárias
vêem o seu assunto através de enevoadas associações eruditas;
não o abordam diretamente como parte de sua vida quotidiana”,
ensinava o mesmo Bowra. O poeta brasileiro não via a “ilha”,
mas Camões, conforme Cláudio Murilo Leal assinala no ensaio
introdutório: “‘Invenção de Orfeu’, o longo poema
épico-subjetivo de Jorge de Lima, está para a literatura
brasileira como ‘Os Lusíadas’ estão para a portuguesa” — idéia
que só pode ser aceita se a despojarmos de qualquer conotação
qualitativa, antes de mais nada porque, dado o caráter
fragmentário dos cantos, falta-lhe a unidade profunda que toda
narrativa épica deve ter.
Na composição dos versos,
ele empregava os artifícios próprios do plágio, como, por
exemplo, a substituição de palavras: onde Odorico Mendes
escreveu: “Vai talvez resvalando”, ele escreve: “Vai minaz
resvalando”; em lugar de “Berço de ventos”, “berço de heróis”,
quando não ocorre a cópia pura e simples: “invictos muros,
divinal estância”, nos dois poetas. Mas, como é natural,
sempre se salva alguma coisa: “Se todavia, além de atento, o
dito leitor for medianamente sensível, não deixará de
encontrar, na sua travessia desse magma, regiões da mais alta
beleza — para citar apenas dois exemplos imediatos, o soneto
sobre a garupa palustre e bela, as estâncias sobre o
desassossego de Inês — e, a cada braçada, versos memoráveis
como o há sempre um copo de mar / para um homem navegar” (José
Paulo Paes).
Apesar de tudo, trata-se de um malogro,
“grandioso e desafiante malogro que convida à perene
revisitação”, concluía José Paulo Paes, o que, claro está, não
é a mesma “revisitação” dos grandes épicos ou, mesmo, a de
poetas que deixaram a sua marca no desenvolvimento dos
gêneros. Qual será o autêntico Jorge de Lima, quero dizer, o
que respondia à sua natureza profunda de homem?
“Consubstancialmente”, para retomar a palavra no que realmente
implica, era o anti-épico por excelência, o regionalista, o
populista do homem comum, razão por que os seus fervores
religiosos sempre parecem mais “literários” do que
espontaneamente místicos. Sem herói e sem narrativa, faltam a
“Invenção de Orfeu” os dois requisitos essenciais e
definidores da epopéia.
|