Luiz Bello
Um rápido
comentário
sobre alguns poemas
de Soares Feitosa
1. Penúltimo Canto
Penúltimo Canto — onde há perigo, há medo. O medo produz a angústia.
A angústia inspira os poetas. E desencadeia poemas como Penúltimo
Canto, trajetória entre uma pergunta inquieta e a revelação final do
perigo de saber... Como no Gênesis, no princípio era o Nada. Depois
veio Sócratas, o primeiro a perguntar: "Que é a verdade?" Platão
tentou responder a pergunta ao mestre: A verdade é apenas um ponto
de proporções infinitesimais e consistência imaginária, mas
valorizado, ou supervalorizado, pelo fato de se encontrar
precisamente na metade do caminho entre duas dúvidas ou duas
certezas possíveis. Um poema que flui, baila e galopa ao longo de
marcos miliários distribuídos por Pound, Sócrates, pensadores
bíblicos e até o anônimo redator de um sábio manuscrito do Mar
Morto, tem alpiste suficiente para alimentar todo um viveiro de
pássaros intimidados.
E substância bastante para aspergir, sobre o meio em que brotou, a
água benta amigável de uma mensagem decodificada. Cal, virgem,
quando ferve na água e no verso de um artista sensível, convida à
reflexão Perguntas sem respostas provocam erudição. Malherbe ensinou
a dizer "Et les fruits passeront la promesse des fleurs" O Penúltimo
Canto exibe, mesmo a Primavera de uma geração de poetas como Soares
Feitosa, com suas flores literárias cultivadas entre perguntas e
temores de uma promessa concreta de respostas musiciais, delicadas,
envolventes e instrutivas.
2. Psi, a penúltima
Vulpes ad poetam: no ensaio "O Castelo de Axel", Edmund Wilson, um
dos mais atentos críticos literários do seu tempo, identificou e
classificou duas correntes no movimento simbolista dos anos trinta.
A uma dessas correntes, Edmund Wilson deu o nome de "sério-estética"
e descreveu como voltada para a expressão refinada dos sentimentos,
a musicalidade e a abstração das idéias. À outra corrente, Edmund
Wilson deu o nome de "coloquial irônica" descrevendo-a como tendente
a unir o humor risonho ao amargo em estilo convencional.
Psi, a Penúltima, um poema que provavelmente todos apontarão como a
obra-prima de Soares Feitosa, ajunta-se muito bem à segunda corrente
descrita por Wilson, o "coloquial irônico". Vincula-se com
naturalidade ao gênero do humor e da crítica bem humorada e
simultaneamente, ou eventualmente, também exerce a crítica amarga.
"Psi" incorpora o diálogo entre uma raposa nordestina, flagelada
pela seca e marcada para morrer — e um poeta quixotesco empenhado em
verberar a prepotência implícita numa campanha oficial de extermínio
aos transmissores da hidrofobia. Ao longo desse diálogo, o poema
percorre diversos itinerários da ficção poética, para ser,
gradativamente, solene ou grave, sublime ou patético, dramático ou
cômico. Para qualquer crítico, de qualquer escola ou tendência
literária, esse poema dá o que pensar, porque une um passado remoto
— Esopo, Fedro, La Fontaine que é precisamente o traço de união
entre todas as raposas da literatura milenar e a intimidada
"Comadre”, destinada a acrescentar ao perfil de Vulpes um novo
traço: o da fúria atemorizante, gerada pelo desespero. O poeta é
evidentemente um estudioso, erudito, mesmo, demonstrando, no seu
papo coloquial-irônico com a Comadre, que a nossa mente não é uma
estante de biblioteca, onde se acumulam como depósitos de
conhecimentos. Nossa mente é uma central de comunicação com toda a
humanidade, e um poema — um grande poema, como "Psi", — deve ser
precisamente, um dispositivo de comunicação entre as mentes capazes
de sentir a poesia. Em face de poemas assim, nosso cérebro costuma
atuar como um aluno atento, disposto a reagir e valor cada
excitação.
Hoje, como sempre, um grande poema pode surgir, ou ser criado como
um relâmpago de inspiração que nos ilumina e engrandece. Mas o
ofício do poeta continuar a exigir tempo para sentir, tempo para
contemplar, tempo para acender e transmitir a centelha, o
ensinamento límpido e contagioso que traz consigo as sementes do
conhecimento estético. A erudição aplicada em "Psi", inclusive com a
adoção de notas explicativas, enriquece o poema e o fortalece para
lutar — e vencer — a difícil luta da verbalização.
A poesia legítima penetra, mergulha nas profundidades do espírito,
vai até onde repousam nossas aptidões inconscientes e pode
despertá-las com súbita e magnífica energia.
Tucídides comprovou sua genialidade de historiados, depois de
absorver uma obra de Heródoto. Sófocles descobriu o próprio dom de
filosofar, durante a leitura dos manuscritos de Demócrito. La
Fontaine só acreditou na sua vocação poética, depois de ler uma ode
de Malherbe. E só depois de estudar minuciosamente as fábulas de
Esopo, Fedro e La Fontaine, Soares Feitosa — o autor de "Psi, a
Penúltima" — ousou divulgar seu maior poema, mensagem aliciante, de
leitura indispensável para quem ama a poesia.
Quem lê "Psi, a Penúltima", desvenda Soares Feitosa.
Ele esculpiu sua fisionomia poética sobre contrastes e assimilações.
Se por ventura ainda lê muito os autores de sua época, com certeza
os submete ao crivo de sua mentalidade clássica. Pois a mentalidade
clássica revela-se como o impulso construtivo de poemas maiores como
"Psi". Em contraste, Soares Feitosa usa o conhecimento dos antigos
com mentalidade moderna, por isto mesmo renovadora.
Para os poetas assim dedicados à constante valorização dos próprios
conhecimentos, a poesia não é mero passatempo, mas um poderoso
aliado nas indagações do pensamento.
Saboreando poemas como "Psi, a Penúltima", compreende-se, com
alegria que o Jornal de Poesia já principiou a cumprir sua gloriosa
predestinação que é a de revelar e apresentar ao mundo lusófono os
talentos que emergem da obscuridade para o pleno usufruto da
admiração que merecem.
3 - On line
Kant afirmou, certa vez, que não saberia ensinar a ninguém o que era
Filosofia, mas saberia ensinar a filosofar. Ninguém me ensinou a
fazer Poesia, mas eu encontrei uma definição: Poesia é tudo aquilo
que me emociona! Há duzentos anos, quando eu vim parar no Piauí,
achava engraçado o povo dizer que um céu chuvoso estava "bonito".
Foi a minha primeira lição de poesia-adquirida, porque, com o tempo,
eu mesmo olhei para um céu de aguaceiro e achei que estava bonito.
Fiquei emocionado. E aprendi. Nada a ver com o belo-horrível. A
expressão "bonito pra chover", tão comum aqui e tão estranha para o
ser que eu fui, de fora, encerra uma beleza que está nos
prognósticos implícitos e uma sabedoria que os meteorologistas não
dominam, mas poetas sim.
Seu verso despretensioso "gotejava o inverno" identificou-me com sua
inspiração, revelou-me a naturalidade do seu estro e afirmou-se (só
para mim) como algo ainda mais instrutivo — e certamente mais
sentimental — do que as mãos, a noite e o teclado de que você fala
como quem ainda não sabe que talvez seja capaz de ensinar alguém a
fazer, com a Poesia, o que Kant não se atrevia a fazer com a
Filosofia. Como todo poeta legítimo, você, SF, tem um destino:
emocionar e ensinar.
Leia a obra de Soares Feitosa
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