Salgado Maranhão
conversa
com
Jefferson
de Souza
Um pouco
de luz para os cegos de plantão
Salgado Maranhão destaca-se pelas
imagens inusitadas e pelo empenho de recriar a língua escrita
Jeferson
de Souza — Ponta Grossa - PR
Sol
sangüíneo
Salgado Maranhão
Imago
119 págs.
A poesia brasileira passa por um momento crítico. Muita gente
querendo fazer pirão com a pouca farinha que há. Neste contexto,
sobra ineficiência para todo lado. As editoras, que deveriam ser as
"senhoras" desse processo, investindo em novos e bons
poetas, divulgando poesia, criando prêmios, mexendo com o
mercado... ficam à espera de best sellers modorrentos para
sustentar essa indústria caça-níqueis que está de costas para a
cultura. Aliás, é sem a menor ética que estas empresas
transfiguram as porcarias que publicam em "artigo
cultural", um engodo para intelectualóide de fim de semana. Os
críticos, salvo exceções, não têm êxito há um bom tempo na
tarefa (árdua é verdade) de descobrir gente nova com talento
suficiente para se destacar em meio à horda de pseudo-escritores.
Alguns destes pretensiosos chegam a tirar dinheiro do bolso para
jogar, nas páginas de um livro, versos que não nos levam nem até
a esquina. É certo que o dinheiro é deles e eles fazem o que
querem. Outros, até que dominam a técnica, mas se dedicam a uma
repetição sem fim. Já é possível encontrar nas livrarias até cópia
da cópia.
Mas vamos tratar do que nos interessa: as exceções. Aliás, vou
tratar de uma exceção brilhante neste cenário. (Há outras é
verdade, mas não vou cita-las para não esquecer de ninguém,
apesar de serem poucas.) José Salgado Santos, mais conhecido como
Salgado Maranhão, nasceu em Caxias, no Maranhão. Tem 48 anos e
vive no Rio de Janeiro desde 1973. Seus primeiros poemas foram
editados na antologia Ebulição da escrivatura, publicada pela
Civilização Brasileira, em 1978. Esta antologia foi organizada por
Salgado Maranhão, Antonio Carlos Miguel e Sergio Natureza. O livro
marcou a inserção de Salgado na poesia carioca. Foi também um dos
primeiros livros da poesia marginal a serem publicados por uma
grande editora, por isso e, sobretudo, pelo mérito de seus autores
teve grande repercussão na mídia e entre os críticos.
Além deste, Salgado publicou: Punhos da serpente (Rio de Janeiro,
Achiamé, 1989); Palávora (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1995 ); O
beijo da fera (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1996); Mural de ventos
(Rio de Janeiro, José Olympio, 1998). Este último rendeu ao poeta
o mais do que merecido Prêmio Jabuti.
Na poesia, Salgado Maranhão trilha o próprio caminho, sem cair na
armadilha comum de transformar referências poéticas em objetivo da
obra. A passos largos chegamos até o livro Sol sangüíneo, o mais
recente do autor. Não tenho bola de cristal, mas penso que daqui
algum tempo este livro será considerado um novo marco na vereda
literária deste poeta. Ebulição da escrivatura foi a estréia;
Mural de ventos, o reconhecimento e Sol sangüíneo, a afirmação.
Esta obra demonstra que, além dos requisitos básicos que
credenciam qualquer vivente a ser chamado de poeta, como domínio da
linguagem, sensibilidade, visão, capacidade de reflexão, entre
outros, Salgado tem um que o diferencia da maioria dos poetas
atuais: originalidade. A prova desta característica está nas
imagens inusitadas, no empenho oriental em destruir o status quo da
língua escrita e recriá-la, na dissecação do humano, sempre
"no afã/ de dar/ ao verso/ víscera". O poeta negro e
nordestino bem que poderia recorrer à poética das minorias, brigar
por causas sociais, mas ele refuta essa atitude: "Ser negro é
minha condição, não minha profissão". Uma prova da lucidez
deste poeta que sabe que se a obra não for suficientemente boa, não
adianta se apegar a estas muletas. O poeta é bom pelas poesias que
faz e assim Salgado é. Claro que essa visão não o impede de ter
orgulho de suas origens. O poema de abertura que dá nome ao livro
demonstra isso num dos versos mais impactantes e belos do livro:
"Minha terra é minha pele"(p. 18). No mais, são questões
universais revistas com brilhantismo e uma paixão pela poesia
desfilada em cada verso. Por mais que eu escreva, sei que não vou
alcançar a dimensão deste livro. Aliás, caro leitor, nem mil
leituras esgotariam as possibilidades desta obra. A entrevista que
segue demonstra que este poeta perturbador é realmente generoso com
os que o procuram.
JEFERSON DE SOUZA é jornalista.
"O Brasil vive de costas para a América de língua
espanhola." Esta frase é sua. O que a poesia brasileira perde
com este distanciamento?
Embora eu já tenha falado esta frase muitas vezes, não creio que
seja só minha, pois este já é um sentimento generalizado. Nosso
olhar e nosso interesse estão, quase sempre, voltados para a Europa
e principalmente para os Estados Unidos — que é um país (povo)
com enormes recursos e possibilidades mas, politicamente, muito
etnocêntrico. Perdemos, com isso, a variada riqueza literária dos
países latino-americanos com sua vastíssima tradição cultural.
Apesar de algumas traduções e do esforço de poucos abnegados como
Eric Nepomuceno e Suzana Vargas, o afastamento ainda é grande. Há
nisso, a meu ver, o medo de nos confrontarmos com o nosso próprio
espelho.
E o que há de tão terrível ou temível nesse espelho?
Desde sempre, desejamos ser Primeiro Mundo. Pensamos ser um país de
brancos (basta observarmos a nossa mídia), mas na verdade somos
negros e mestiços. Estamos, o tempo todo, buscando modelos
distantes. Há, no meu entendimento, um certo medo de que o irmão
que está próximo possa realçar características que abominamos em
nós mesmos.
Como nasce a poesia de Salgado Maranhão?
Estou, quase sempre, em estado de poesia. Mesmo quando não escrevo.
O que busco em meu verso é a expressão genuína que, de tão
complexa, pareça simples. Não é fácil alcançar isso, pois não
pode ser forçado para não ficar falso. Nas artes em geral, e em
particular na poesia, eu procuro o que me surpreenda, a torteza
inusitada que me arranque do chão e me faça indagar: como foi possível
alguém achar tal viés? Isso para mim é o que faz a língua andar,
ganhar contornos e infinitude. E a palavra está no cerne da questão.
Não a palavra fria dos dicionários mas, sobretudo, a palavra
lanhada na existência. Para mim, é necessário para um poeta que
pretenda fazer algo relevante, com voz própria (e só interessa o
que tem voz própria, pois a arte é o primado da individualidade)
tenha, além do dom, uma vivência singular, já que ser poeta é
correr risco. O próprio Vinicius já dizia: o poeta só é grande
se sofrer.
E o que faz este poeta maranhense, radicado no Rio, sofrer?
Quando cito o verso de Vinicius, não estou fazendo profecia do
sofrimento. Estou apenas dizendo, de outro modo, que não se fabrica
poeta. O verdadeiro poeta o é pela contingência da vida, não por
força da vaidade. Ele apenas se aperfeiçoa. E nessa instância de
gratuidade criativa está sua principal recompensa.
Poesia x letra de música. Há quem diga que uma coisa não tem
nada a ver com a outra. O senhor tem parcerias com grandes nomes da
MPB e um trabalho já bastante reconhecido na poesia. Como analisa
essa questão: letra de música é poesia?
No campo da escrita, em tudo, há interdependência. Às vezes há
prosas que são pura poesia e poemas cheios de prosa — segundo
Murilo "a poesia sopra onde quer". Isto também se dá em
relação à letra de música, mas precisamos nos ater a um equilíbrio
delicado: nem todo poema funciona numa música. A letra de música
tem, naturalmente, uma estrutura flexível para aceitar a melodia
com sucesso. Porém, no momento em que esta se recolhe e as palavras
se desnudam, se mostram — na pauta em branco sem a escora da música
— então é que se vê quem tem garrafa vazia para vender. O olhar
recorrente na página em branco, onde qualquer rasura tem toque de
arte final — como já disse o poeta Armando Freitas Filho — é
terrivelmente cruel e só o verdadeiro poema se garante. Não
podemos, entretanto, esquecer que desde Noel e Orestes, passando por
Vinicius até Paulo Cesar Pinheiro e Aldir Blanc — para não citar
Caetano e Chico — o Brasil é um celeiro de bons letristas. E
seguindo a máxima de Murilo, posso afirmar que há letras
extremamente poéticas e poemas (às vezes até bastante longos) que
têm muitos versos, mas nem um tostão de poesia.
Como foi trabalhar em letras para Zizi Possi, Ivan Lins, Ney
Matogrosso, Paulinho da Viola?
Quando cheguei ao Rio, na década de 70, já vinha com o desejo de
fazer, também, letra de música. Talvez influenciado por Torquato
Neto, de quem fui amigo em Teresina. Depois da publicação do livro
Ebulição da escrivatura em 1978 (antologia organizada por mim,
Antonio Carlos Miguel e Sergio Natureza), comecei a compor com
Paulinho da Viola, Vital Farias e Herman Torres. Mais tarde com Ivan
Lins, Zé Américo e Elton Medeiros, entre outros. Fico muito
honrado em ter minhas letras cantadas por artistas que tanto admiro.
Boas letras de música podem fazer com que o grande público se
aproxime da poesia? Afinal de contas, sua poesia não é popular,
mas suas letras são...
A canção popular pode sim abrir o apetite para a boa poesia. O que
não pode é ocupar o lugar desta. Na época da ditadura, por um
momento, a letra de música desempenhou um papel importante, porque
os grandes poetas estavam exilados ou fora do debate da poesia
discursiva.
A boa canção ajuda a despertar interesse, mas não é "o
caminho" para formar público leitor de poesia. Como atrair
mais gente para esse universo ainda muito hermético da poesia? O
senhor, como poeta, tem essa preocupação de ser lido por um público
maior ou acha que a poesia é para poucos?
A poesia é para todos, embora nem todos a procurem. Num mundo
coletivamente hipnotizado pelos objetos, é necessário investimento
na cultura a longo prazo, desde a infância, para reprogramar o
imaginário das pessoas. Sou a favor do uso de todos os meios de
comunicação para que a poesia alcance a quem dela precise.
O que representou para o senhor ganhar o Jabuti, em 1999?
Foi muito bom. O Prêmio Jabuti é o mais respeitado do Brasil, um
país que, levando em conta as dimensões e a população tem,
proporcionalmente, poucos prêmios. Só para se ter idéia, o México
— com metade da população brasileira — tem vários prêmios
com dotação de cem mil dólares.
O senhor já disse que "o poeta é uma espécie de gigolô
das palavras". São as palavras que fazem o poeta ou é o poeta
que faz as palavras?
Sou uma pessoa que escreve na borda do sistema lingüístico.
Explorando, ao máximo, a dimensão polissêmica das palavras. Puxo
por elas, faço-as falar aquilo que acham que não querem falar.
Desnudo-as de semânticas viciadas e ponho-as para trabalharem, para
rodarem bolsinha nas esquinas do poema. No começo elas reclamam,
gemem um pouquinho, mas depois adoram. Como se vê, há uma certa
simbiose, uma interpenetração do poeta na palavra e da palavra no
poeta.
O senhor se autodefine como um "poeta apolíneo". Este
seria o seu diferencial diante da tradição dionísica da poesia
brasileira?
O conceito de apolíneo, em minha obra, não é dual, mas integrado;
não se opõe ao dionisíaco, mas o transcende. Minha visão está
mais em sintonia com o pensar de Nietzsche (conforme observou o
Prof. Luis Fernando Valente, da Brown University) e com o pensamento
oriental em que os valores se completam. Entendo o apolíneo como
refinamento máximo, depois da vivência com o dionisíaco. A poética,
em sua via de finalidade sem fim, polindo o poeta e sua mirada.
O senhor é terapeuta corporal, já foi professor de Tai Chi
Chuan e é mestre de Shiatsu. Qual a influência da cultura oriental
na sua poesia?
Embora tenha estudado jornalismo, e até trabalhado com isso mesmo
antes de ir à faculdade, foi na cultura oriental que encontrei um
caminho e um meio de sobrevivência que não brigam com a poesia. O
jornalismo diário, pelo seu exclusivismo e pela sua urgência intrínseca,
não deixa espaço à reflexão. E a poesia é uma prática
contemplativa, cozinhada em fogo brando, representa o sentido maior
da minha vida. Nesse ponto, o modo de pensar oriental trouxe
harmonia à minha natureza, trouxe a noção de equilíbrio no caos
e de caos no equilíbrio, diferente da visão ocidental que
dicotomiza corpo e mente, desconhecendo o percurso da alquimia
interna. Para a filosofia ocidental, conhecer é refletir e
conceituar; para a filosofia oriental é experimentar e transcender.
E que poetas o fazem transcender?
Vários. Dante, Camões, Rimbaud, Gonçalves Dias, Quasímodo,
Montale, Célan, Eugênio de Andrade, Gullar, e... por aí vai.
Uma provocação: poesia para quê?
Poesia para nos tornarmos infinitos. Não concordo com os que dizem
que ela não serve para nada. Isso é niilismo esnobe. Porque tudo
nos imprime algum legado. Mesmo uma pedra no caminho, no mínimo,
nos deixa a experiência do desvio; e, no máximo, uma topada que
nos acorda e nos instiga. Do Renascimento para cá, ao assumir seu
destino, o ser humano tem, cada vez mais, dessacralizado a vida. E
vai ficando perceptivamente raso; fisiológico; rente aos buracos;
escravo das sensações. Com isso perde a noção de sutilezas e até
da sobrevivência básica: vai poluindo o ar que respira; vai
sujando a água que bebe; vai cavando a cova entre os pés. Por
isso, cada rasgo de autêntica poesia nos ensina a desconfiar das
certezas. Nos revela, através da linguagem verbal, a constante mutação
das coisas. A poesia é essa força sutil que dá vertigem ao
esqueleto das palavras.
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