Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Ascenso Ferreira

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alguma notícia do autor:


 

Poesia:


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Ascenso Ferreira


 

"Oropa, França e Bahia"
 

 

(Romance)


Para os 3 Manuéis:
Manuel Bandeira
Manuel de Souza Barros
Manuel Gomes Maranhão



Num sobradão arruinado,
Tristonho, mal-assombrado,
Que dava fundos prá terra.
( "para ver marujos,
Ttituliluliu!
ao desembarcar").


...Morava Manuel Furtado,
português apatacado,
com Maria de Alencar!

 

Maria, era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar...


A vida de Manuel,
qque louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de "Oropa, França e Bahia"!

 

— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota , Maria.
Essas naus foram vintena
Que eu herdei da minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais a trocaria!

 

Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra Estrela,
perfumes de benjoim...

 

Nada.
A mulata só queria
que seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
prá ela ir ver essas terras
"De Oropa, França e Bahia"...

 

— Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só prá tu te distraire
desse pensamento ruim...
— Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!

 

"Ó lua que alumias
esse mundo de meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus..."
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.

 

"Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são"...
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente no pilão...


Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul...
— Ah! Seu Manuel, isso chega...
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.


— "Onde vais mulhé?"
— Vou me daná no carrosé!
— Tu não vais, mulhé,
— mulhé, você não vai lá..."

 

Maria atirou-se n´água,
Seu Manuel seguiu atrás...
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido da minha tia !
Vêm dos confins do mundo...
De "Oropa, França e Bahia"!

 

Nadavam de mar em fora...
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia...
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!

 

De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia...
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!

 

E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?


— continuam mar em fora,
navegando noite e dia...
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!


— As eternas naus do Sonho,
de "Oropa, França e Bahia"...
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ascenso Ferreira


 

A mula de padre


Um dia no engenho,
Já tarde da noite
Que estava tão preta
Como carvão...
A gente falava de assombração:


— O avô de Zé Pinga-Fogo
Amanheceu morto na mata
Com o peito varado
Pela canela do Pé-de-Espeto!
— O cachorro de Brabo Manso
Levou, sexta-feira passada,
Uma surra das caiporas!
— A Mula de Padre quis beber o sangue
Da mulher de Chico Lolão...


Na noite preta como carvão
A gente falava de assombração!
Lá em baixo a almanjarra,
A rara almanjarra,
Gemia e rangia
Oue o Engenho Alegria
É bom moedor...


Eh Andorinha!
Eh Moça-Branca!
Eh Beija-Flor. . .


Pela bagaceira
Os bois ruminavam
E as éguas pastavam
Esperando a vez
De entrar no rojão...
Foi quando se deu
A coisa esquisita:
Mordendo, rinchando,
As pôpas e aos pulos
Se pondo de pé
Com artes do cão,
Surgiu uma besta sem ser dali não...


— Atallia a bicha, Baraúna!
— Sustenta o laço, Maracanã!
E a besta agarrada
Entrou na almanjarra,
Tocou-se-lhe a peia
Até de manhã ...


E depois que ela foi solta
Entupiu no oco do mundo!
Num abrir e fechar d'olhos
A maldita se encantou...


De tardinha.
Gente vinda
Da cidade
Trouxe a nova
De que a ama
De seu padre
Serrador
Amanhecera tão surrada
Que causa compaixão!


.....................................


Na noite tão preta como carvão
A gente falava de assombração
 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Ascenso Ferreira


 

A cavalhada


Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis,

 

Alegria nervosa de bandeirinhas trêmulas!
Bandeirinhas de papel bulindo no vento!...

 

Foguetes do ar...

 

— "De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai começar!"

 

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis...

 

— Lá vem Papa-Légua em toda carreira
e vem com os arreios luzindo no sol!
— Danou-se! Vai tirar a argolinha!

 

— Pra quem será?
— Lá vem Pé-de-Vento!
— Lá vem Tira-Teima!
— Lá vem Fura-Mundo!
— Lá vem Sarará!
— Passou lambendo!
— Se tivesse cabelo, tirava!...
— Andou beirando!...
— Tirou!!!
— Música, seu mestre!
— Foguetes, moleque!
— Palmas, negrada!
— Tiraram a argolinha!
— Foi Sarará!

 

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis...

 

— Viva a cavalhada!
— Vivôô!!!

 

— De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai terminar!


Publicado no livro Catimbó (1927).
In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981
 

   

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ascenso Ferreira


 

A pega do boi


A rês tresmalhada
ouviu na quebrada,
soar a toada,
de alguém que aboiou:

 

— Hô — hô — hô — hô — hô,
Vaá!
Meu boi Surubim!
Boi!
Boiato!

 

E, logo espantada,
sentindo a laçada,
no mato embocou...

 

Atrás, o vaqueiro,
montando o "Veleiro"
também mergulhou...

 

Os casco nas pedras
davam cada risco
que só o corisco
de noite no céu...

 

Saltaram valados,
subriam oiteiros,
pisaram faxeiros
e mandacarus...

 

Até que enfim...
No Jatobá
do Catolé,
bem junto a um pé
de oiticoró,
já do Exu
na direção...

 

— O rabo da bicha reteve na mão!

 

Poeiriço danado e dois vultos no chão)
.......................................

 

Mas, baixa a poeira,
a res mandingueira
por terra ficou...

 

E um grito de glória
no espaço vibrou:

 

— Hô — hô — hô — hô — hô,
Váá!
Meu boi Surubim!
Boi!
Boiato!


Publicado no livro Cana caiana (1939).
In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981
 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ascenso Ferreira


 

Filosofia

 

(A José Pereira de Araújo - "Doutorzinho de Escada")



Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!

 

Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!


Publicado no livro Cana caiana (1939).
In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981
 

   

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Ascenso Ferreira


 

Minha escola


A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
Complicado como as Matemáticas;
Inacessível como Os Lusíadas de Camões!

 

À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
— O meu engenho de barro de fazer mel!

 

Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual é o maior rio da China?
— A 2 + 2 A B = quanto?
— Que é curvilíneo, convexo?
— Menino, venha dar sua lição de retórica!
— "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
— Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
— Agora, a de francês:
— "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..."
— Basta
— Hoje temos sabatina...
— O argumento é a bolo!
— Qual é a distância da Terra ao Sol?
— ?!!
— Não sabe? Passe a mão à palmatória!
— Bem, amanhã quero isso de cor...

 

Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.


Publicado no livro Catimbó (1927).
In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981
 

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Ascenso Ferreira


 

Toré


Os dois maracás,
um fino e outro grosso,
fazem alvoroço
nas mãos do Pajé:

 

— Toré!
— Toré!

 

Bambus enfeitados,
compridos e ocos,
produzem sons roucos
de querequexé!

 

— Toré!
— Toré!

 

Lá vem a asa-branca,
no espaço voando,
vem alto, gritando...
— Meus Deus, o que é?

 

— Toré!
— Toré!

 

— É o Caracará
que está na floresta,
vai ver minha besta
de pau catolé...

 

— Toré!
— Toré!

 

Cabocla bonita,
do passo quebrado,
teu beiço encarnado,
parece um café

 

— Toré!
— Toré!

 

Pra te ver, cabocla!
na minha maloca,
fiando na roça,
torrando pipoca,
eu entro na toca
e mato onça a quicé!

 

— Toré!
— Toré!


Publicado no livro Cana caiana (1939).
In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981
 

   

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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