O O Sol
de cada
coisa,
lançado
recentemente,
afirma a
veia poética
de Batista
de Lima,
também
contista e
ensaísta, e
nos mostra a
luminosidade
de seu verso
bem talhado,
num trabalho
gráfico
primoroso. A
partir do
título, já
se entrevê
um raio de
luz a
perpassar,
como se
fosse a
claridade o
estro da
criação,
mesmo que
imersa na
dualidade
própria da
condição
humana. Com
uma profunda
crença na
vida e no
amor, o
poeta acende
com as
palavras a
luz,
invisível
aos olhos
comuns, que
subjaz em
tudo.
Sua poesia,
ora
perscrutadora
da própria
existência,
ora amorosa,
ora
telúrica,
ilustra bem
a condição
do homem
contemporâneo
diante da
multiplicidade
de ´Faces´:
Há dias à
noite em que
pareço a
manhã que
virá, e
enxerga,
nele mesmo,
um outro a
espreitar-lhe
como um
´Vigia´: Até
dormindo /
há sempre um
olho / que
pesa sobre
meus sonhos.
Sua
constante
consciência
do estar no
mundo e de
ser outro
constantemente
não impede
que ele se
surpreenda
com o
inusitado:
Há um José
que se
esconde dos
que carrego.
Percebe-se,
nestes
poemas, a
voz do poeta
Affonso
Romano de
Sant´ana:
Debaixo de
minha pele /
alguém me
olha
esquisito
/pensando
que eu sou
ele, num
diálogo que
confirma o
dilema do
homem de
nossa época,
fragmentado
e perdido em
sua
incompletude.
O duplo se
lhe
apresenta
como uma
tentativa de
completar o
que lhe
falta e está
fora do seu
alcance.
O eterno
retorno
A presença
da terra
deixada, mas
trazida,
retoma o
mito do
eterno
retorno em
´Constatação
II´, quando
o sujeito
poético diz
ter
transcendido
a ausência
física do
lugar amado,
numa
declaração
de amor à
terra natal
da qual se
encontra
exilado.
Esse exílio,
entretanto,
é apenas
físico; ele
já não mais
tenta, nas
despedidas,
levar os
potes ou o
alpendre,
símbolos do
apego à raiz
sertaneja,
já não acena
para o
engenho
(metonímia
expressiva,
que mostra o
aceno para
todos o que
fazem parte
daquele
universo);
ele se
apercebe de
que nada
fica, quando
ele parte:
Nas outras
fui
esquecendo
despedidas /
Pois
finalmente
descobri /
que todos
iam comigo /
onde quer /
que eu
pudesse ir.
No poema
´Descobrimento´,
também
percebemos a
inevitabilidade
de seu
exílio e a
predestinação
para
assenhorear-se
dum mundo
vasto, que o
horizonte
(do
Taquari(?))
não seria
capaz de
alcançar:
´Meu pai
trouxe o mar
/ para casa
prisioneiro
de um grande
búzio / E no
alto sertão
/ Instalou
as caravelas
/ Com que
descobri o
Brasil.
Sua poesia
amorosa não
incorre em
pieguice ou
excessos; é
comedida,
embora os
sentimentos
não estejam
disfarçados.
Há
confissões
de amores
plenos, mas
quase sempre
idealizados,
como se
vivê-los
fosse o
risco de
perdê-los.
Bem ao
estilo
romântico, o
poeta parece
realizar-se
com a
distância de
sua musa.
Chegar
perto,
possuí-la,
talvez
significasse
o fim do
amor. O modo
de tê-la
eternamente
é não se
achegar, mas
manter-se ao
longo
enfermo de
paixão,
loucura e
mal-estar. O
mergulho no
sentimento
se dá em
´Amar´: Amar
é... nadar
quando o
outro se faz
lago, mas,
qual
Sílfide, a
vaporosa
dama
mitológica
do ar, a
mulher
aparece
digna não da
vida, mas de
um altar
para
imolação e
tem a voz
copiada dos
anjos. Em
´Sangria´,
há uma
gradação
perfeita,
bem nos
moldes da
´Cantiga pra
não morrer´,
de Ferreira
Gullar: na
condição da
partida da
amada, o
sujeito
lírico
desvela seus
lamentos e
chega ao
ápice na
estrofe
final,
quando pede
que ela
deixe pelo
menos a
possibilidade
de ele
morrer de
saudade.
O Tempo e os
diálogos
O tempo, com
seu efeito
corrosivo, é
outra
presença
constante
nos poemas.
O eu lírico,
em
´Contatação
I´, reclama
dos anos que
chegaram sem
aviso... um
a um com
suas fomes /
comeram
nossas
ternuras /
por não
termos
fechado as
portas. Esse
sopro
Maiakovskiano,
do
acontecido
por
permissão,
confirma
suas
leituras e
influências
que se
estendem a
Drummond e
sua máquina
do mundo (´O
domador de
relâmpagos´);
a Cabral,
com sua
lâmina só
gume (´Lição´)
ou no galo
despertando
/.../ no
espreguiçar
da manhã (´Mira´).
Ou ainda
Bandeira:
Não era um
homem / não
era um bicho
/ era o mar
/ tornado
areia (´Maré
baixa´).
Outra
leitura
Já em
´Momento´, a
passagem do
tempo não é
dolorida, ao
contrário, é
esperada e
até
bem-vinda:
Assim sem
pressa vou
ficando ao
largo / não
me canso por
me tornar
idoso /
antes idoso
que virar
saudade.
Subtende-se
a aceitação
da
maturidade e
o medo da
morte, que
é, depois,
desafiada: A
mãe terra
tem fome de
mim /.../ só
não sabe a
mãe terra /
onde poderá
guardar /
esse
explosivo
lixo que
carrego /
esse cismar
que vai
comigo (´Desafio´).
Outro
diálogo se
dá, desta
feita, com
Quintana,
que, em sua
´Confissão´,
diz: Acho-me
relativamente
feliz /
Porque nada
de exterior
me
acontece...
/ Mas, em
mim, na
minha alma,
Pressinto
que vou ter
um
terremoto!´.
Nova
dualidade se
faz: a do
jogo
aparência/essência.
Mas o tempo
é mais
saudade, não
uma saudade
doída, mas a
marca de uma
ausência, de
uma falta
que habita:
Que tempo
bom era
aquele /
redes
virgens na
varanda /
tapioca no
fogão /
dente de
ouro na
fresca /
barulho de
faca em
feira /.../
e minha mãe
na janela /
pilando
pimenta e
lágrima /
batucando um
pilãozinho (
Poema:´Uma
casa só
portas´).
Sua ligação
com a terra
se dá num
continuum
entre
cancelas e
caminhos,
potes e
alpendres,
quando o eu
poético se
sabe ´tábua,
ripa e
caibro´.
Vozes se
entrecruzam:
a mãe, o
pai, o avô,
a avó (que,
eufemisticamente,
amanhece
viúva), o
engenho, a
casa e suas
histórias.
Essa ligação
com as
raízes se
revela tanto
no conteúdo
de alguns
poemas, como
na linguagem
e na própria
forma:
´Tulipa´,
por exemplo,
é um pequeno
cordel
(quase
épico) que
conta uma
história de
amor
malsucedida.
´BR-116´ é
uma
mini-epopéia
nordestina,
uma viagem
contemplada
pela janela
do ônibus
durante um
trajeto pela
estrada que
liga
Fortaleza a
Lavras, mas
é,
sobretudo,
uma viagem
pelo ritual
do ir e vir:
a cadeira
onze na ida
/ e a vinte
e sete na
volta; há
também um
lamento
pelas perdas
oriundas do
progresso:
Esta BR
apunhalou o
coração de
minha terra
/ passarinho
voou voou /
nas asas do
seu medo
próprio. /
BR 116 /
cadê minha
galinha
pedrez / o
canto da
curicaca / a
flor de
manjericão...
A metapoesia,
presença
constante a
mostrar a
preocupação
com o fazer
poético,
atinge o
ponto mais
alto n´´O
domador de
relâmpagos´,
quando o eu
lírico diz
que a poesia
é dama
desnuda /
que se veste
de poema e
mostra o
também duplo
processo
criador: O
poema vem
sem pressa
/.../ tenho
caçado
palavras /
como quem
caça
veredas,
deixando,
desse modo,
confessa sua
criação como
misto de
inspiração e
trabalho
cerebral.
O lírico
Batista de
Lima é, na
concepção de
Schiller, um
´poeta
sentimental´,
pois
´pratica uma
poesia de
caráter
reflexivo,
filosoficamente
comprometida
com seus
próprios
meios de
expressão e
realização´.
Neste novo
livro,
sobretudo,
ele
filosofa,
silencia,
perscruta,
recorda,
celebra, faz
declarações
de amor,
brinca com
as palavras,
seduze-as,
apascenta-as
e confirma
seu nome na
poesia
cearense
contemporânea.
Suas
múltiplas
vozes não
apenas domam
os
relâmpagos,
mas acendem
as luzes
intemporais
do sol
invisível de
cada coisa e
abrem portas
para
celebrar a
vida!
AÍLA
SAMPAIO*
Colaboradora.
*Professora
da
Universidade
de Fortaleza
FIQUE POR
DENTRO
O eu do
poeta e o eu
lírico
O eu do
poeta,
segundo
Massaud
Moisés (A
criação
literária.São
Paulo:
Cultrix,
1967), se
confessa por
meio do eu
lírico, cuja
natureza
vale a pena
examinar de
perto. Que
se trata de
um autêntico
eu, a
simples
leitura de
um poema o
demonstra;
pertence ao
universo
empírico
saber que no
poema fala
uma primeira
pessoa. A
discussão
não se
trava, por
isso, em
torno de sua
existência,
mas de sua
fictividade
ou não. A
vivência
pode ser
fictícia no
sentido de
invencionada,
mas o
sujeito
vivencial e
com ele o
sujeito-de-enunciação,
o eu lírico,
pode existir
somente como
um real
fictício. Em
suma:
fictício
seria a
vivência, e
real a voz.
A voz é real
enquanto
sujeito-de-enunciação,
um eu
empiricamente
detectável,
a
manifestar-se
por meio da
expressão
poética, e
real também
porque
possui as
características
do eu como
entende a
Psicologia.
E fictícia
naquilo em
que ostenta
qualidades
de uma
pessoa
vivente, sem
o ser, ou em
que pertence
ao mundo
imaginário,
inventado,
suposto; não
só a
vivência
participaria
do plano da
invenção,
mas o
próprio eu
que a
experimenta.