Alécio
Cunha
15.6.2003
Vento
e Pressário
Na
cena poética brasileira contemporânea, é raro um autor conciliar
tradição e modernidade sem cair nas ciladas do antagonismo. Nem
sempre negar o passado é a melhor forma de transcendê-lo, assim
como aceitar a força pretérita de modo passivo geralmente resulta
na inconsistência de textos frouxos e, na grande maioria das vezes,
anacrônicos.
O
poeta e ensaísta carioca Antônio Carlos Secchin dribla essas
idiossincrasias no livro “Todos os Ventos", que revela a potência
eólica de seus poemas. A obra, que está sendo lançada pela
editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro (RJ), agrupa três décadas
de poesia, ofício iniciado em 1973, quando ele publica “Ária de
Estação".
O
mais interessante é poder observar que a porção poemática do
autor não é tão conhecida como seu trabalho ensaístico. Durante
os anos 80 e 90, Secchin, de 52 anos publicou textos crítico-analítico
de intenso fôlego, quase sempre tentando interpretar a capacidade
poética alheia. Agora, seu magnífico trabalho passa a ter uma
circulação e ressonância maiores, à altura de seu talento.
Secchin
não é mais o poeta dos críticos, elogiado somente pelos coetâneos.
Dois deles, aliás, comparecem ao volume, com análises da
vitalidade literária do autor: Eduardo Portella e Alfredo Bosi,
esse último, autor de duas obras-primas do ensaísmo nacional:
“História Concisa da Literatura Brasileira" e “O Ser e o
Tempo da Poesia", texto de nítida vocação heideggeriana.
“Todos
os Ventos" confirma o estilo único do poeta, que adora
rearticular o passado. Seus poemas invocam o pastiche ao se
aproximarem de nomes como Álvares de Azevedo e Gregório de Matos.
No entanto, é na fonte do modernismo que Secchin brilha, dialogando
de igual para igual com nomes exponenciais daquele período.
Nesse
dialogo feérico, destacam-se Manuel Bandeira, João Cabral de Melo
Neto, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, essa última
paixão declarada do crítico, que organizou sua obra poética
completa, publicada pela editora Nova Fronteira há dois anos,
durante as comemorações do centenário de nascimento da autora de
“Romanceiro da Inconfidência".
A
metafísica de Secchin, embalada pela leveza irônica e munida de um
estro de sólido porvir, abre espaço para divagações instigantes
sobre os dilemas do ser e estar no mundo. Ele mantém uma postura
dialógica com autores bem diversos entre si, surgidos após o
embate modernista, como o maranhense Ferreira Gullar (antes da
experimentação neoconcreta) e o carioca Vinicius de Morais,
sobretudo o poeta religioso e empedernido dos anos 40, ainda
influenciado pelo catecismo carola de Octávio de Faria e Gustavo
Corção.
O
poema “Arte", dedicado a Antonio Cicero, funciona como
excepcional cartão de visitas ao estilo de Secchin: “Poemas são
palavras e presságios,/pardais perdidos sem direito a ninho./Poemas
casam nuvens e favelas/e se escondem pós no próprio umbigo/Poemas
são tilápias e besouros,/ar e água à beira de anzóis e riscos/São
begônias e petúnias,/isopor ou mármore nas colunas,/rosas
decepadas pelas hélIces/de vôos amarrados contra o chão/Resto do
que foi orvalho,/poema é carta fora do baralho/milharal virando
cinza/pelo fogo do espantalho".
O
tom metafísico de Secchin ganha ricos recheios no decorrer do
livro. “Ar", dedicado ao gaúcho Carlos Nejar, também
prenuncia o poema como depositário do belo: “O ar ancora no
vazio/Como preencher/seu signo precário?/Palavra,/nave da
navalha/gume da gaiola/invente em mim/o avesso do neutro/o não-assinalado,/o
lado além/do outro lado."
Dentro
do itinerário afetivo do poeta, há lugar para poemas-tributo
anos-luz da puxa-saquismo tradicional. Como esse, dedicado a João
Cabral de Melo Neto: “O engenheiro debruçado/sobre o som
horizontal das praias/ordena o ritmo das ondas/constrói os vértices
do verde./O engenheiro debruçado/sobre o prisma dos
areais/caligrafa a voz do vento/amestrando o som do cais/O
engenheiro debruçado/sobre as arestas do concreto/soletra o fio de
seus rios/entre as sílabas do deserto".
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