José-Augusto de Carvalho
Os longes da memória, o tempo e o modo
renascem, inventados, água e lodo...
Rasgando a treva, a chama de um farol,
por montes, vales, plainos, surge o trilho...
O múrmuro trinar do rouxinol
poisou no choro brando do teu filho.
E de montante, o rio rumoreja,
espreguiçando a doce melodia.
P'los campos, o olivedo que esbraceja
candeia que há-de ser já anuncia...
Na calma santa e mítica de luz,
a vida sonha e quer-se imaginário...
O tudo e o nada, o todo se reduz
ao berço do infinito planetário...
(In "tempos do verbo", Lisboa, 1990)
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Este
meu canto...
Expurgo deste canto as notas
dissonantes.
As notas onde o som apenas é ruído.
Que fique a melodia e sejam por
bastantes
as notas desfolhando um cravo proibido…
Um cravo que resiste em cada primavera
e ganha, na canção, a dimensão do mito.
Um cravo que, em abril, simbólico me
espera,
um cravo que novembro assim mantém
proscrito.
E canto à chuva e ao sol, a preto e
branco e a cores
o verbo e a melodia eternos da canção.
Infernos de verão e invernos de
tremores
instantes sobre mim jamais me calarão.
À noite, a minha ceia é sempre pão e
vinho:
o alento de amanhã --- o intérmino
caminho!
Lisboa, 5 de Setembro de 2012.
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Eu soube de um país
à beira-mar,
à beira-pesadelo, à beira-pranto...
De insónias e tristezas no cantar,
do sonho, que a tardar, doía tanto!
Eu soube de um país
que teve um cais
e um barco que largou ao mundo além...
Que foi e que voltou por entre os ais
e sempre desse além ficou refém...
Eu soube de um país
à beira-fado,
guitarra dedilhando a decadência...
Amante, entre grinaldas, mal-amado,
cativo de masmorras e de ausência...
Eu soube de um país
que se rendeu,
num dia de novembro, e se perdeu...
(in Do mar e de nós)
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Os Cabos
O Cabo Não dobrámos com
denodo.
E nele levantámos o padrão,
memória do querer dum povo todo
que a medos e renúncia disse não.
O Cabo Bojador também dobrámos!
E fomos, com Pessoa, além da dor!
E foi de dor em dor que tanto ousámos
até que o mar impôs o Adamastor!...
O Cabo das Tormentas era o medo
maior, o nunca visto nem sonhado!
O Capitão do Fim, olhando o Medo,
gritou: ou morro aqui ou és dobrado!
Agora, falta o Cabo da Desgraça!
E agora? Agora, a gente ou morre ou passa!
Lisboa, 13 de Setembro de 2012.
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Rimance do Lua Nova
Lua Nova era o meu
nome
de registo de campanha
quando resistia à fome
lá para a raia de Espanha.
Clandestino até no lar,
nem à mulher concedia
saber qual o meu andar
ou ao certo o que fazia.
Aos trabalhos da lavoura
me entregara de menino.
Outra sorte melhor fora,
mas tive esta por destino.
Neste saber várias artes,
saltava de galho em galho.
Em qualquer de tantas partes,
tinha agasalho e trabalho.
De empreitada, ali ceifava;
mais além, era a cortiça;
nos tempos mortos, parava
e dava o corpo à preguiça.
Sempre com desembaraço,
a minha jorna suava.
Nunca neguei o meu braço
à tarefa que acertava.
Ah, mas num dia azarado,
e quem os não tem na vida?,
fiquei incapacitado
para a minha dura lida.
Experto entre tantas liças,
eu já conhecera mundo…
Sabia até que a cortiça
boia e nunca vai ao fundo!...
Sob a manta de maltês,
andava de monte em monte;
rasgava, de quando em vez,
as trevas deste horizonte.
Passava a salto o Guadiana,
entrava em terras de Espanha…
A Guarda Fiscal se dana
e grita: ninguém o apanha?
Ia e vinha, sempre a pé,
a noite me protegia…
Cada carga de café
boa féria me rendia…
Lua Nova, a minha alcunha,
deu rimance popular.
Até eu fui testemunha
de tanto o ouvir cantar…
Lua Nova é uma lenda,
o Alentejo é um destino;
não há aqui quem se renda,
às claras ou clandestino.
Apanhá-lo quem se
atreve?
Quem consegue tal façanha?
Em Portugal é pé leve
e pé leve é em Espanha!
Aquém ou além Guadiana,
desmonta qualquer ardil:
a Guarda Fiscal engana,
engana a Guardia Civil…
Entre limpas e montados,
astuto também engana
o ardis sempre aprontados
p'la Guarda Republicana.
Lua Nova, morto ou vivo,
hoje é já a lenda viva
que serve de lenitivo
à vida sempre cativa.
Lisboa, 26 de Novembro de 2012
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Irreverência
Mote
Apoiada no quadril,
traz a moça a cantarinha.
Vem da fonte e vem asinha.
Voltas
Diz-se de «Abril, águas mil»!
E tanta sede que eu tinha,
naquela manhã de Abril!
Mas a moça vinha asinha
e negou-me a cantarinha
que apoiava no quadril...
Fiquei-me quase febril
devido à sede que tinha!
E nem sei mais se de Abril
ou se da moça que vinha
apoiando a cantarinha
no bailado do quadril...
30 de Março de 2012
Viana*Évora*Portugal
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Sonho
Sonho meu, que estás
em mim,
que sempre bendito sejas!
Oxalá que me protejas
até que chegue o meu fim!
Que sempre a tua vontade
seja o pão de cada dia,
que me alenta na porfia
de chegar à claridade!
Perdoa as hesitações
e os passos tantos perdidos...
Que possam ser entendidos
como severas lições!
E nunca me deixes só
nem sequer quando eu for pó...
13 de Março de 2012.
Viana*Évora*Portugal
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Poema para Maria de Magdala
Que
manto de silêncio assim te esconde,
perdida sob névoa e banimento?
Já nem o eco à minha voz responde!
Até te silencia a voz do vento!
A boa nova, espanto e maravilha,
aos outros que ficaram, tu levaste.
Eleita, confirmaste, na partilha,
a força da raiz na frágil haste.
O turbilhão dos tempos te tragou.
Das trevas sem registo e sem memória,
a lenda que o sem tempo deslumbrou
no todo o sempre escreve a tua história.
Na tela onde o pintor te quis dilecta,
eu vivo a minha angústia de poeta.
26 de Dezembro de 2011.
Viana*Évora*Portugal
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Ibéria
N'
Os grandes cemitérios sob a
Lua,
o grito do cigano de Granada
a noite da vergonha perpetua
na dor da minha Ibéria assassinada.
Ardia o mês de Agosto. Era verão.
E a terra ensanguentada ainda jaz,
memória de um sem tempo e sem razão
que fuzilou o sonho, o verbo e a paz.
Agora, nas palavras, o tardio
consolo do clamor que repudia
o gesto da barbárie consentida.
Mataron Federico! E no
vazio
do tempo sem amor e sem Poesia,
persiste, em carne viva, esta ferida.
26 de Março de 2007.
Viana do Alentejo * Évora * Portugal
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A verdade de mim
Bendito seja o meu
nome!
Semeio e colho este pão,
mas só migalhas me dão,
enganando a minha fome.
Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!
Arautos de feira exultam.
E com palavrinhas mansas
e falazes esperanças,
o meu dia a dia insultam.
Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!
Quem me promete o que é meu,
como se fosse oferenda?
Quem supõe que estou à venda?
Quem é aqui mais do que eu?
Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!
Da noite dos tempos venho,
vergado, chapéu na mão,
à deriva como um lenho
sem velame nem timão.
Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!
Milénios já percorridos
de sofrimento e lições,
quando os terei aprendidos
por memória e por razões?
Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!
Continuo um pé descalço,
um deserdado, a ralé,
a subir ao cadafalso
num qualquer auto de fé...
Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!
Enredado em várias malhas
e presa dos maiores danos,
morro em todas as batalhas
só p'ra mudar de tiranos!
Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!
Ah, que força, que arreganho
assim me tolhe a vontade
de me erguer e com verdade
ser livre e do meu tamanho?!
Até mudar de caminho,
serei sempre o Zé-povinho?
Redigido em 21.03.1996
Corrigido em 30.10.2009
Viana * Évora * Portugal
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