Flávio Sátiro
Fernandes
Augusto dos Anjos e a Escola do Recife (*)
O tema que trago à consideração dos que compõem este
Conselho Estadual de Cultura tem sido tocado, apenas, de leve, por
quantos se interessam pela vida e pela obra do maior dos poetas
paraibanos - Augusto de Carvalho Rodrigues dos anjos - cujo
centenário de nascimento todo o Brasil, este ano, comemora.
De fato, Agripino Grieco chama-o, de passagem, "epígono
retardado da Escola do Recife" (1); Ferreira Gullar alude ao contato
de Augusto com o "espírito cientificista que se tornara tradição da
famosa Escola do Recife, a partir de Tobias Barreto" (2); Jamil
Almansur Haddad proclama que a "geração de Augusto dos Anjos ainda é
herdeira da escola do Recife, do pontificado de Sílvio Romero e
Tobias Barreto e acaba sendo um florescimento brasileiro da poesia
científica" (3); Pinto Ferreira, em considerações sobre a Escola do
Recife, reconhece ter sido Augusto, "não diretamente ligado ao
magistério de Tobias, porém influenciado pelo evolucionismo, dentro
do clima ideológico da Escola". (4)
O tema, pois, não é original. Cabe-me, apenas, o
esforço de tratá-lo mais demoradamente e, pela primeira vez, na
província.
Dito isso, perguntaríamos: Que aproximações poderiam
ser estabelecidas entre Augusto dos Anjos e a Escola do Recife? Que
influências teria o nosso grande vate recebido daquele movimento?
Quais os sinais dessas influências na obra de Augusto?
Para responder a tais perquirições e para exata
compreensão das influências recebidas por Augusto das idéias em
voga, ao seu tempo, no Recife, creio necessário expor, inicialmente,
o que foi a Escola do Recife, suas figuras luminares, suas fases, as
teorias nela discutidas.
A Escola do Recife
O que se convencionou chamar de Escola do Recife foi
um movimento cultural de ampla repercussão, congregando pensadores,
estudiosos, juristas, sociólogos, poetas, preocupados em debater os
mais variados temas dentro de suas respectivas especialidades. A
Escola do Recife não teve um ideário próprio e definido. Antes, foi
um movimento heterogêneo, um cadinho de filosofias, de sociologias,
de correntes literárias e jurídicas. Conforme assinala Pinto
Ferreira, o grande esforço válido da Escola do Recife foi o convite
ao debate filosófico e cultural.
A Escola teve, primitivamente, três fase, Digo
primitivamente porque, consoante ainda Pinto Ferreira, "este
movimento de idéias não ficou estacionado no tempo, os segmentos do
tempo lhe foram indiferentes". Para o mestre pernambucano, a Escola
do Recife "e um movimento dinâmico que sobrevive na atualidade, em
uma nova fase de desenvolvimento". (5)
Primitivamente, pois, a Escola teve três fases: a
fase poética, a fase crítico-filosófica e a fase jurídica. Durante
essas três fases, vários nomes podem ser identificados como
exponenciais da Escola: Tobias Barreto, sem dúvida, a maior figura
do movimento, Castro Alves, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Martins
Junior, Artur Orlando e outros mais.
O primeiro período - da poesia - iniciou-se de 1862 a
1863, conforme esclarece Clóvis Beviláqua. (6) Essa fase corresponde
à formação daquela corrente denominada por Capistrano de Abreu,
"escola condoreira", integrada por Tobias Barreto e Castro Alves,
notadamente, bem como por Vitoriano Palhares, Guimarães Junior,
Antônio Alves Carvalho, Xavier Lima (7) e Sílvio Romero. (8)
Lançam-se por essa época os fundamentos da poesia
filosófico-científica.
Tobias Barreto embebe-se do panteísmo do "Ahasverus",
de Edgar Quinet e em sua poesia já estremece "um brado de revolta de
um espírito abalado pelos desgostos e pela filosofia do século". (9)
Dessa fase é o poema O Gênio da Humanidade, síntese da evolução
humana, provavelmente inspirado no Ahasverus. Outro de seus poemas,
Ignorabimus, traz à tona preocupações religiosas do autor:
Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo
E surdo ao brado do Universo inteiro...
De dúvidas cruéis prisioneiro,
Tomba por terra o pensamento altivo.
Dizem que Cristo, o filho de Deus vivo,
A quem chamam também Deus verdadeiro,
Veio o mundo remir do cativeiro!...
E eu vejo o mundo ainda tão cativo!
Se os reis são sempre os reis, se o povo ignaro
Não deixou de provar o duro freio
Da travessia e da miséria o trato;
Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio,
Se o homem chora e continua escravo,
De que foi que Jesus salvar-nos veio?...
E em outro, intitulado Epicurismo, defende essa
filosofia de vida:
Se as crenças são um engodo,
Se falha o verbo da fé,
Se o homem se acaba todo
Com a matéria que ele é,
Se o coração nada aspira,
Se este bater é mentiroso,
Se além não há desfrutar,
Da vida a idéia suprema,
O grande, o sábio problema
É viver muito e gozar...
Também Sílvio Romero cultiva a poesia científica. E
mais: foi seu ardente defensor, conforme assinala França Pereira, no
Prefácio à segunda edição de A poesia científica, de Martins Junior.
(10)
São, assim, Tobias e Sílvio Romero os precursores da
chamada poesia filosófico-científica, que vai ter, ainda, na Escola
do Recife, um teorizador e praticante apaixonado, na pessoa de
Martins Junior, de que falarei adiante.
A segunda fase é a fase crítico-filosófica, iniciada
pelos anos de 1868 a 1870 e que se estende até 1882, quando, com o
concurso de Tobias Barreto, para professor da Faculdade de Direito,
tem começo a fase jurídica da Escola.
Durante a segunda fase têm curso as mais diversas
correntes filosóficas, críticas e religiosas, sobressaindo-se como
autores mas acatados e discutidos Spencer, Heckel, Hartmann,
Schopenhauer, Kant. Mas é fora de discussão que nessa época a Escola
elege, por intermédio de Tobias, notadamente, o monismo e o
evolucionismo, como as idéias principais de seu pensamento, a ponto
de Luís Washington Vita, citado por Pinto Ferreira, observar que a
doutrina adotada pelos pioneiros da Escola do Recife foi um
somatório daquelas duas teorias. (11)
O evolucionismo teve, como se sabe, em Herbert
Spencer um de seus mais importantes defensores. A nota fundamental
que o evolucionismo spenceriano distingue na evolução é o progresso.
Evolução significa progresso, conforme proclama o filósofo inglês em
seu ensaio intitulado Progresso. O progresso, segundo Spencer,
investe todos os aspectos da realidade. "Quer se trate - diz ele no
ensaio citado - do desenvolvimento da Terra, quer se trate do
desenvolvimento da vida na sua superfície ou do desenvolvimento da
sociedade, ou do governo, ou da indústria, ou do comércio, ou da
linguagem, ou da literatura, ou da ciência, ou da arte, sempre no
fundo de todo progresso está a evolução que vai do simples ao
complexo através de diferenciações sucessivas". (12)
E nos seus Primeiros Princípios, assim definia a
evolução: "A evolução é uma integração da matéria e uma concomitante
dissipação de movimento, durante a qual a matéria passa de uma
homogeneidade indefinida e incoerente para uma heterogeneidade
definida e coerente e durante a qual o movimento conservado é
passível de uma transformação paralela". (13)
Ao lado do evolucionismo, a outra doutrina, também
acatada pelos pensadores foi o monismo, cuja figura maior foi, sem
dúvida, o filósofo alemão Ernst Haeckel.
Spencer e Haeckel dominam, por conseguinte, com suas
idéias, o ambiente cultural do Recife, de fins do século passado e
princípios do atual, graças à ação intelectual de Tobias Barreto, o
grande mentor da Escola do Recife, e da dos demais que o
acompanhavam naquele movimento.
Finalmente, a terceria fase da Escola, a fase
jurídica, inicia-se em 1882, ano em que Tobias presta concurso para
professor da Faculdade de Direito do Recife. Despontam nessa fase,
além do grande sergipano, as figuras de Clóvis Beviláqua, José
Izidro Martins Junior e Artur Orlando, este mais sociólogo que
jurista.
Deles, contudo, não nos interessa, aqui, a produção
jurídica, valiosa, sobretudo aquela saída do espírito lúcido de
Clóvis Beviláqua e consubstanciada no grande edifício jurídico que,
foi, sem dúvida, o Código Civil Brasileiro, promulgado em 1916. Não
nos interessa, igualmente, a produção histórico-jurídica de Martins
Junior, representada, sobremodo, por sua História Geral do Direito e
sua História do Direito Nacional. Deste interessa-nos, sim, a sua
produção poética, pois a ela estaria ligado Augusto dos Anjos como
seguidor do gênero poético praticado pelo mestre pernambucano.
De fato, foi Martins Júnior um aficionado da poesia
filosófico-científica. E tamanho era o seu entusiasmo a esse gênero
que chegou a teorizar sobre ele, escrevendo e publicando um opúsculo
intitulado A poesia científica, em que faz a apologia dessa poesia e
de seus precursores em França e no Brasil e onde, a certa altura,
diz:
"Os nossos literatos e poetas que hoje impugnam a
poesia científica, ou têm de se sujeitar a ela dentro em pouco ou
têm de desaparecer da liça. A lei da seleção permite que fiquem no
campo apenas os mais fortes, isto é, aqueles que na luta descoberta
por Darwin, a qual se realiza também na ordem moral, se puderem
adaptar ao meio".
Em seu Visões de hoje podemos colher versos com
estes, em que [e flagrante a aproximação entre a sua poesia e a de
Augusto dos Anjos:
Estendem-se no pó do solo os velhos cultos
Mitos fenomenais espalham-se insepultos
Numa grande extensão de esquálido terreno.
O ar é fino e puro; o espaço azul sereno.
Júpiter, Jeová, Osiris, Buda, Brahma,
Jazem no escuro chão sob esta lousa - a lama!
Como coisas senis, fossilizadas, negras,
Amontoam-se além as bolorentas regras
Da Bíblia, do Alcorão, do A Vesta e Rig-Veda.
Trôpegos, sem valor, curvos de queda em queda,
Fogem, na treva espessa, Adon, Moloque, Siva,
Ormud, Vichnu, Abriman, Baalath...
E mais:
Buscando demonstrar pela transformação
De uma simples monera a gênese do mundo
Orgânico; ensinando o dogma fecundo
Do progresso; afirmando a lei da seleção
E seu correlativo - a luta na existência!
Tentam reconstruir, fiéis à experiência,
O vetusto castelo informe do Direito
Que precisa de ser, sob outra luz, refeito!
Vemos, aqui, - Littré, Spencer, Buckle, Comte;
É a filosofia alevantando a fronte.
Ali - Haeckel, Pasteur, Darwin, Lyel, Broca;
É a ciência pura e refulgente roca
Que serve à fiação metódica dos fatos
Ou feios como a morte ou belos como os cactos. (14)
É bom salientar que essas três fases da Escola
projetam-se no futuro, influenciando o ambiente cultural do Recife,
do Nordeste e do Brasil, por muitos anos. Nenhum desses períodos se
esgota no tempo que lhe foi atribuído mais para efeito didático,
vale dizer, quando se iniciou a fase crítico-filosófica ou quando
teve começo a fase jurídica, isso não significou o esgotamento dos
períodos anteriores. Ao contrário, conjuntamente, as idéias
poéticas, filosóficas, críticas, científicas, jurídicas, da Escola
estenderam-se em larga por um vasto período da história cultural do
País, como teremos oportunidade de salientar a seguir.
O Contato de Augusto com a escola do Recife
Augusto dos Anjos nasceu em 1884, quando já se
encontrava em grande ebulição o movimento de que ora aqui tratamos.
Em 1903, com 19 anos, pois, ingressa na Faculdade de
Direito do Recife, centro dos grandes debates de idéias, palco das
apaixonantes discussões filosófico-cientíticas travadas pelos que
faziam a Escola do Recife e seus seguidores.
E aqui nós temos uma comprovação da extensão da
influência da Escola por um vasto período de tempo. À época em que
Augusto freqüenta a velha academia, longe de arrefecer, o movimento
levado a efeito por Tobias Barreto e outros permanecia
influenciando, com toda vitalidade, a ambiência cultural do Recife,
apesar de decorridos quase vinte anos da morte de sua figura maior.
Um depoimento eloqüente do quadro vivencial
constatado àquela época é dadopor Gilberto amado, contemporâneo de
Augusto dos Anjos, na Faculdade de Direito:
"O espírito de certas épocas penetra a gente de
maneira que se aprende no ar, recebe-se a Doutrina dos tempos pelos
poros mesmo sem ter estudado, passado os olhos por livro algum.
Quase todo rapaz do meu tempo em Pernambuco era agnóstico,
espencerista, monista... Havia, porém, uma minoria que, não chegando
aos extremos, refugava o fenomenismo, o mecanismo e afirmava-se
espiritualista, teologista. Como se ouve hoje, no Rio, perguntar:
"Você é Flamengo ou Fluminense?", ouvia-se na Faculdade do Recife,
no velho convento: "Você é monista ou dualista?" Fiquei sabendo como
o século XIX, que acabava de morrer, interpretava o que Spinoza
chamava substância, Descartes mecanismo, Leibnitz mônada, Kant a
"coisa em si" e o que esse século deparava na palavra de Deus a
Moisés - Ego sum qui sum".
Terá sido, porém, na Faculdade de Direito o primeiro
contato de Augusto dos Anjos com as idéias da Escola do Recife? Terá
sido lá o primeiro encontro de Augusto com Haeckel e com Spencer?
Terá sido na Faculdade o seu primeiro conhecimento acerca da poesia
filosófico-científica defendida tão ardentemente por Martins Júnior?
Certamente que não. Já se tem dito e repetido que
Augusto teve um único professor de Humanidades - seu pai, Alexandre
dos Anjos que, conforme assinala Francisco de Assis Barbosa,
aplicaria o seu cabedal de conhecimentos como preceptor dos filhos
desde as primeiras letras aos exames preparatórios e até mesmo ao
ensino do Direito.(15) Observa, ainda, Francisco de Assis Barbosa
que o "Doutor Alexandre Rodrigues dos Anjos possuía idéias
abolicionistas e republicanas. Pelo menos, foi a fama que deixou,
como a de ter vasta erudição, verdade que era em letras clássicas
além de atualizado com a cultura do seu tempo, leitor de Spencer e
até Marx, que citou num artigo "Considerações sobre o salário", por
sinal antimarxista, estampado no Almanaque do Estado da Paraíba.
Fora contemporâneo de Tobias Barrento, na Faculdade de Direito do
Recife". (16)
É natural que, dotado de tal bagagem intelectual,
tenha, como professor do filho, transmitido a este conhecimentos a
respeito das idéias mais correntes ao seu tempo.
Contudo, essa ação paterna não terá tido força para
influenciar a poesia de Augusto. Prova disso é a sua produção
anterior ao término do curso de Direito, na qual encontramos versos
que falam do amor, da vida, da natureza, de namorados, do mar, do
sol, de luz, de estrelas. Aqui e acolá, uma nota de tristeza, de
desalento, de desencanto, de desesperança. Jamais, porém, as
perquirições de ordem filosófica, as preocupações, as indagações de
toda ordem a respeito do homem, da natureza, do ser; jamais o
cientificismo, com toda a sua terminologia esdrúxula e que haveria
de ser uma das marcas indeléveis de sua poesia.
O que vai influenciar de maneira marcante o espírito
de Augusto, assinalando novos rumos à sua poesia, é a sua estada na
Faculdade de Direito do Recife, onde o estudo das idéias e das
teorias que já lhe fora apresentados, certamente, por seu pai, vai
ser revigorado ao sopro dos ventos que, na velha Faculdade,
impulsionavam os espíritos jovens de então, consoante o depoimento
já visto de Gilberto Amado.
Observa R. Magalhães Júnior que quando após a morte
do pai, em janeiro de 1905, Augusto dos Anjos retornou ao Recife, a
fim de prestar os exames do segundo ano de Direito, ao chegar ali
encontro a tradicional Academia abalada com a morte, no ano
anterior, de José Izidoro Marins Júnior, o teórico da poesia
científica, como antes enfatizei. E ressalta R. Magalhães Júnior:
"Todo o barulho em torno de Martins Júnior - decerto excessivo fruto
do entusiasmo generoso e pouco crítico da mocidade estudiosa - deve
ter levado Augusto dos Anjos a dar especial atenção a seus versos e
às teorias do poeta desaparecido, que influiu também sobre Cruz e
Sousa, com quem se relacionou à passagem deste pela capital
pernambucana em 1884, como "ponto" da Companhia Julieta dos
Santos".(17)
Antes, a imprensa recifense já dera guarida a poesias
de tom marcadamente filosófico-cientificista, inspiradas, sem
dúvida, no epígono maior - até então - daquele gênero, ou seja,
Martins Júnior. O jornal do Recife, por exemplo, publicara em 8 de
abril de 1903, um poema de Uldarico Cavalcanti, intitulado Ao verme
que primeiro tripudiar sobre o meu cadáver:
Podes tudo roer, verme putrido e imundo!
Esta é a tua missão: devastar a matéria.
Tu primeiro virás, depois virás segundo.
E milhões virão mais tripudiar, no fundo da cova onde
atirar-se a peste ou a miséria!
Podes tudo roer! Nada, nada te impeça
Na tua faina! Roe a mortalha, o caixão
Depois roe-me também: tronco, membros, cabeça
Tudo, enfim, verme, o que à tua gula apeteça
Mas não toques, maldito, o pobre coração.
Se tanto não saciar tua voracidade
Não toque o coração tua boca voraz,
Com o ciúme, as paixões, a tortura e a saudade
Que lá estão devastando a minha mocidade,
Tu te envenenarás! Tu te envenenarás!
E na edição de 24 de setembro de 1904, de autoria de José Gomes de
Matos, o Diário de Pernambuco publicava o seguinte poema:
Onto Sentimental
(Ao filósofo e mestre Laurindo Leão)
Quando te vejo, a tábida caveira
Dos meus olhos febris transfigurada
Pelos teus olhos rútilos... Na estrada
Repleta de urzes, cardos e poeira.
Quando te vejo, esvai-se a derrocada
Das leis morais em rápida canseira;
E lá, da treva ao clarão, do fogo à geada,
Vida nova melhor do que a primeira.
Como alguém, pela lei do transformismo,
Fez os seres nascidos das moneras,
Fez da monera um ser todo espontâneo
Tal dos teus olhos, flor do misticismo,
Faço nascido, ao som de mil quimeras,
O amor que vibra do meu crânio!
Como se vê, a poesia científica preconizada por Martins Júnior
angariava adeptos e arrebanhava seguidores, mas só alcançaria a
culminância com o gênio inigualável de Augusto dos Anjos.
As Idéias da Escola na Poesia de Augusto
Foi Eudes Barros que afirmou ter Augusto dos Anjos tentado versar em
um livro de poemas todo o monismo e o evolucionismo de Haeckel e de
Spencer. Retirado o que a afirmativa tem de exagero, nós vamos
encontrar, efetivamente, na obra de Augusto sinais visíveis e
evidente dessa influência, pelo uso de termos e expressões próprios
de algumas correntes filosóficas veiculadas no âmbito da Escola,
pela referência nominal a alguns pensadores alemães nela acatados,
pela adesão irrefutável à poesia filosófico-científica, capitaneada
por Martins Júnior.
Termos como monera, substância, mônada, transformismo,
homogeneidade, nous, pneuma, noumenalidade, expressões como
teleológica matéria, energia intracósmica, energia monística,
metafísico mistério, vida fenomênica, energia intratômica, motor
teleológico, matéria dissolvida, referências expressas ou simples
alusões a Haeckel, Spencer, Hoffimann, tudo isso, além das
circunstâncias outras repassadas ao longo destas minhas palavras,
reafirmam o óbvio, ou seja, a influência recebida por Augusto da
Escola do Recife.
Estão no "Monólogo das Sombras" estes versos:
"Sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
Os dois tercetos a seguir são de "Agonia de um Filósofo", de 1912:
No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro, como um gênio,
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
O célebre poema "Debaixo do Tamarindo", de 1909,
contém esses dois tercetos:
Quando pararem todos os relógios
De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiário que eu morri,
Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!
Está em "As cismas do destino", de 1908
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo.
Vamos encontrar em "Noite de um visionário", de 1910, estes versos:
Depois de dezesseis anos de estudos
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.
.............................
O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.
Está em "Os doentes", de 1912:
Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer nem Haeckel compreenderam...
Em "Psicologia de um vencido", de 1909, Augusto proclama-se,
materialisticamente,
"...filho do carbono e do amoníaco,"
e em um de seus sonetos, de 1911, considera o filho morto um
"Agregado
infeliz de sangue e cal".
No "Último Credo", de 1908, o poeta diz:
Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um,
Que matou Cristo e que matou Tibério.
Creio como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolue...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!
Diversas outras passagens poderiam ser indicadas, se não fosse a
premência do tempo com que eu preparei estas considerações, o que,
afinal, resultou em proveito da paciência dos que aqui se encontram.
Notas:
(1) Poetas e prosadores do Brasil, Rio de Janeiro, Conquista, 1968,
págs. 70/78.
(2) Toda a poesia de Augusto dos Anjos, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
págs.14/18.
(3) Introdução a As Flores do mal, São Paulo, Abril Cultural, 1984.
(4) História da Faculdade de Direito do Recife, recife, UFPe, Ed.
Universitária, 1980, I, pág. 27.
(5) id., pág. 22.
(6) História da Faculdade de Direito do Recife, INL, Brasília, 1977,
pág. 350.
(7) Clóvis Beviláqua, ob. cit., pág. 350.
(8) Pinto Ferreira, ob. cit. Tomo 2, pág. 83.
(9) Pinto Ferreira, ob. cit. Tomo 2, pág. 46.
(10) Prefácio de A poesia científica, Imp. Industrial, Recife, 1914,
2a. Edição.
(11) Ob. cit., Tomo I, pág. 24.
(12) Apud Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, Mestre Jou, S.
Paulo, 1970, verbete "Evolucionismo".
(13) id., ib.
(14) Apud R. Magalhães Jr., Poesia e vida de Augusto dos Anjos, Civ.
Brasileira, Rio de Janeiro, 1977, págs. 110/111.
(15) Notas Bibliográficas apensas ao EU, Liv. São José, Rio de
Janeiro, 1965, 30a. Ed.
(16) id. Ib.
(17) R. Magalhães Jr., ob. cit., pág. 109.
(18) Zenir Campos Reis, Augusto dos Anjos: Poesia e Prosa, São
Paulo, Editora Ática, 1977, pág. 25.
(19) id. ib.
(*) Palestra proferida no Conselho Estadual de Cultura do Estado da
Paraíba, por ocasião das comemorações do Centenário de nascimento de
Augusto dos Anjos, em 1984. |