Zenir Campos Reis
Rua João Millan, 40
Jardim Ester
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O poeta do Eu está mudando de público
A um só tempo difícil e popular, o paraibano Augusto
dos Anjos vem merecendo ultimamente edições bem- cuidadas dirigidas
a leitores universitários, analisadas aqui pelo organizador de uma
delas, saída em 1977
Com a republicação nos últimos dias de 1995, pela
Editora Paz e Terra, de Toda a Poesia, dispomos, nas livrarias, de
três edições da obra de Augusto dos Anjos. No ano anterior, junho de
1994, Antonio Arnoni Prado havia preparado, para a Martins Fontes,
Eu e Outras Poesias. Alguns meses depois, Alexei Bueno se
encarregaria de organizar, para a Nova Aguilar, a Obra Completa do
poeta paraibano.
Esses três títulos recentes confirmam a mudança de
público, a meu ver intencional, buscada pelos sucessivos
organizadores dos poemas, desde 1965. Naquele ano saiu, com três
anos de atraso, a edição comemorativa do cinqüentenário do único
livro publicado por Augusto dos Anjos, Eu. Na primeira edição, a
capa branca exibia o título com grandes e vermelhas maiúsculas
impressas no centro. No alto, as letras pretas com o nome do autor
e, em baixo, cidade, Rio de Janeiro, e data, 1912.
Falecido o poeta, aos 30 anos, em Leopoldina, MG
(1914), Órris Soares reuniu à coletânea original a produção recente
do conterrâneo, incluindo mesmo um poema inacabado, A Meretriz. A
Imprensa Oficial do Estado da Paraíba edita, em 1920, Eu e Outras
Poesias, prefaciado pelo organizador. Até a 28ª edição, de 1961, são
esses os poemas conhecidos de Augusto dos Anjos, e com esse título
foram popularizados. A editora Bedeschi, com um catálogo de obras
populares e popularescas, divulgou-o, com grande sucesso, desde a 7ª
edição (1936). Em papel jornal e a preço acessível.
Nos últimos 30 anos o público e a crítica
universitários vêm-se ocupando do livro. A mudança mais evidente é a
consagração das 872 páginas, papel bíblia, da editora Nova Aguilar,
nosso equivalente da prestigiosa coleção Pléiade da Gallimard na
França.
Seu novo público dispensa a identificação do título:
o nome do poeta basta como referência; compreende e admite a
inclusão dos versos excluídos pela autocrítica do autor, versos de
iniciante, versos que vêm de 1900, quando o poeta contava apenas 16
anos; recebe com interesse a prosa estranha e os documentos de
interesse biográfico; finalmente, saúda os novos estudiosos, que vêm
trabalhando por uma apresentação mais fiel dos textos e pela
compreensão dos poemas. Mas, a depender exclusivamente dessas
edições, o poeta parece cada vez mais distante do grande público que
conquistou.
Tive ocasião de, recentemente, visitar a Usina Santa
Helena, em Cruz do Espírito Santo, a 40 quilômetros de João Pessoa,
Paraíba, sucessora dos engenhos Pau-d'Arco e Coité, que pertenceram
à família de Augusto dos Anjos.
Foi difícil a localização: tínhamos esquecido, meus
amigos e eu, o nome atual da usina e tentamos informar-nos na
cidade. Depois de algumas tentativas falhadas, indicaram-nos uma
senhora idosa, que talvez conhecesse a propriedade onde nascera o
poeta. "Antônio Augusto é o nome do meu filho; Augusto dos Anjos?
Conheço não." Depois, veio a dúvida: quando indagamos pelo "poeta",
que imagem evocamos? O mais provável é que nossa interlocutora, na
várzea paraibana, tenha pensado num cantador de viola, talvez
repentista. Nenhum, com esse nome, lhe veio à memória. Um fotógrafo,
que ouviu a conversa, foi quem nos orientou.
No local, tratamos de confirmar, com duas senhoras
que por ali passavam. Obtivemos mais que a confirmação: "Aqui é o
lugar de minha saudade", disse a mais idosa. "Aqui tive meus filhos
e aqui os criei."
Indicou-nos uma casa em ruínas, que seria a casa onde
nasceu Augusto dos Anjos. Depois, guiados pelo sr. José Maria,
trabalhador na usina desde 1942, fomos, já anoitecendo, conhecer o
tamarindo debaixo do qual costumava o jovem poeta estudar:
"No tempo de meu pai, sob estes galhos, Como uma vela
fúnebre de cera, Chorei bilhões de vezes com a canseira De
inexorabilíssimos trabalhos! Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira, O passado da Flora Brasileira E a
paleontologia dos Carvalhos! Quando pararem todos os relógios De
minha vida, e a voz dos necrológios Gritar nos noticiários que eu
morri, Voltando à pátria da homogeneidade, Abraçada com a própria
Eternidade A minha sombra há de ficar aqui!" (Debaixo do Tamarindo)
Ouvimos de nosso guia precisões na localização de fatos da biografia
do conterrâneo famoso, da sua família, da ama de leite, Guilhermina.
Contrapunha suas informações às dos "sabidos", certamente os que
escrevemos livros, sem conhecer diretamente os lugares com que se
familiarizou em mais de meio século de trabalho, em contato com a
tradição oral popular.
Dispomos, está visto, de duas tradições: a popular é
mais dispersa e descontínua, porque não se apóia em documentos
fixados em suportes permanentes, que são, por exemplo, os livros.
Vive a vida precária do testemunho pessoal, frágil, que tem a
duração variável da vida humana e a precisão do ouvido instavelmente
atento. Ouvido na verdade seletivo para o que, na cultura, mais
estritamente, serve à compreensão do mundo e à autocompreensão.
A tradição universitária, erudita, escrita,
beneficia-se da estabilidade garantida pelo livro impresso. Com tal
ponto de apoio, pode ser mais contínua e mais consciente. É a
aspiração, ao menos, talvez inatingível, da crítica especializada. O
livro permitiu, também, que os poemas de Augusto dos Anjos
convivessem com textos críticos que lhe parasitaram, às vezes
amorosamente, as edições: prefácios, posfácios, notas.
Para as exigências da crítica universitária, das três
edições recentes, a mais satisfatória é a preparada por Alexei
Bueno. Com gosto de bibliófilo, revisita as publicações originais
para esclarecer dúvidas. Falta, talvez, indicar com mais clareza seu
itinerário de fixação de texto da produção de Augusto dos Anjos.
Sente-se carência semelhante no que respeita à fortuna crítica,
derivada quase toda do volume crítico organizado por Afrânio
Coutinho e Sônia Brayner. Para ser completa, a obra poderia
aproveitar os textos de provas escolares do poeta, transcritas nos
livros de Demócrito de Castro e Silva, citados na bibliografia. Os
originais destas provas perderam- se, segundo fui informado, num
incêndio do arquivo da Faculdade de Direito do Recife.
O melhor estudo crítico entre os agora editados,
parece-me, é o de Ferreira Gullar, que acompanha Toda a Poesia, da
Paz e Terra, desde 1977. Ele próprio poeta e grande leitor, esmiúça
pormenores de fatura, assinala continuidades com a tradição
literária brasileira, bem como descontinuidades em relação a ela.
Mas, de fato, não está ali a totalidade da produção de Augusto dos
Anjos. Não conserva também a organização do núcleo tradicional de
seus poemas. Do ponto de vista da crítica textual é a coletânea mais
precária. Na mesma edição, bem-vinda novidade, transformou-se em
prefácio a orelha assinada por Otto Maria Carpeaux, outro grande
leitor do poeta.
O poeta difícil e, paradoxalmente, popular, teve a
sorte de encontrar intérpretes sensíveis e competentes. Não faltam
porém, universitários ou não, os que tropeçam nas palavras, às vezes
ignorando desconhecer o sentido delas, outras vezes emaranhando a
sintaxe. Quando se escreve que os versos apresentam "rima e métrica
indefectíveis" pensou-se provavelmente "impecáveis", mas que
significará um "inegável soneto"?
Fico aqui desejando que as duas tradições, a popular
e a universitária, se encontrem. Mas, dou-me conta, a satisfação
deste desejo supõe a realização de outro: que a sociedade se
transforme, que se elimine o fosso que separa a maioria carente da
minoria afortunada em diferentes níveis.
Só então vamos poder compreender plenamente a
múltipla atribuição de sentido: é, sim, a casa de Augusto dos Anjos,
mas também "o lugar de minha saudade".
( Zenir Campos Reis é professor de Literatura Brasileira na
FFLCH-USP e organizador do volume "Augusto dos Anjos: Poesia e
Prosa", Editora Ática)
(in O Estado de São Paulo, caderno 2)
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