A poesia se converteu no alimento dos
dissidentes e desterrados do mundo burguês. De um
lado, uma profunda afirmação de valores mágicos; de
outra, uma vocação revolucionária... as duas
direções expressam, desse modo, a rebelião do homem
contra a sua própria condição.
Essas referências do poeta mexicano Otávio Paz,
Prêmio Nobel de literatura podem servir de epígrafe,
cabível na interpretação da escritura poética de
Bernadete Bezerra. Em 2003 a conheci no lançamento
da primeira coletânea Poemas do Intervalo, da qual
participamos como professores poetas da U.F.C..
Inscrita neste título, havia uma alusão aos
ocasionais e diletantes poetas bissextos, denotada
na palavra intervalo. Essa sintaxe e essa semântica
nos adjetivavam para o que, contrariamente em mim e
em Bernadete, não é adjunto, complemento, mas nossa
própria condição substantiva, existencial. Isso me
fez relembrar um querido porém incauto amigo, que,
por ocasião do lançamento de meu último livro de
poemas, Lavraturas do Corpo, me perguntou se
costumava preencher minhas horas vagas, escrevendo
diletantemente poesias.
Em nossa multifacetada conjuração de vocações, em
nossa ubíqua existência como poetas, carregamos o
fardo e o bálsamo de Orfeu. Deles só nos libertamos,
só nos untamos, tão-somente em horas plenas,
arrebentadas pelo poema, em que, procurando
equilíbrio, transbordamos. Tantas vezes nos
dilaceramos em lancinantes mergulhos envoltos em
dilemas e desafios para com o inventividade órfica,
numa postura confessional. Enquanto profissão de fé,
afirmamos, assim, uma vocação de vida, tanto
transgressora da ordem contemporânea, burocrática,
como prometeica desacorrentadora do homem
unidimensional, criticamente analisado por Marcuse.
A natureza do poético
Por ser a poesia insubmissão aos aspectos mortíferos
da automação e da tecnificação desencantadoras do
quotidiano, ela, no entanto, aí mesmo pode
inscrever-se, posto que a vida diária suscita não só
acomodações, mas explosões. Essa reflexão baseada em
Maffesoli sugere que a vocação revolucionária da
poesia não significa um descolamento do dia-a-dia,
mas seu desdobramento em novos códigos, em outras
palavras, nele mesmo bebidos. Por isso a poesia de
Bernadete é caudatária da trajetória da velha
revolução modernista de 1922 que, parafraseando
Ítalo Moriconi, transformou a relíquia do lirismo
passadista, comedido e convencional, tão criticado
por Bandeira, em lirismo passional de bêbados,
loucos e clowns.
Pelicana de nós mesmos, a poesia é que nos refaz,
nos sangra e nos nutre. Por isso em sua oficina,
carpintejamos o poema, ao carpirmos e repintarmos a
vida, com suas dores, odores, cores e amores,
materiais com os quais tecemos tantos signos e
ritos, como Bandeira em seu ritmo dissoluto. Assim
como este poeta, Bernadete vai poetizando por sua
transfiguração significantes aparentemente non-sense.
O que a engravida passa ao largo de qualquer
tradição parnasiana, pela qual infelizmente muito do
senso comum ainda nos reconhece. Ao contrário, sua
poesia segue quotidianamente de ´mãos dadas´, como
reflete Drummond sobre seu solidário estradar. Por
isso, Bernadete, mesmo rastreando seu ´vôo pelo
mundo com as borboletas´, não se afasta da vida,
pois, parafraseando Ítalo Moriconi, também seu ´real
vence o ideal na disputa pelo poético´. Por isso ela
rompe, então, com uma ideologia segundo a qual
alguns materiais encerrariam temáticas poetizáveis.
Porém, como não existem portadores apriorísticos de
fecundação poética, estes seriam, portanto, fugazes
ejaculações verborrágicas.
A metamorfose
Aquela transfiguração opera-se em Bernadete, quando
a água que ela poupa, ´com preguiça de escovar os
dentes´, depois transborda, sublimada e cristalina,
num vaso de poemas. Aí ela se reencontra, para
recolher esse alagamento, vertido em messe cultivada
por irrigadores mágicos, dores irrigadas de poesia.
Talvez pela faculdade de que ´cegos podem ver na
escuridão´, como cantam Chico e Edu, é que eu também
divisei, naquela noite de lançamento de Poemas do
Intervalo, a mais lídima poesia, na incandescência
do verso, pelo qual a poesia ´tecedora das
impossibilidades / nos dá o que a história nos tira´,
segundo o metapoema ´A luz da poesia´.
Porém a luz que focou nosso encontro não veio da
condição secular de professores, mas de nossa
litúrgica essência existencial de poetas,
arquetípica de uma convergência iniciática entre
sacerdotes ritualizando valores mágicos. Naquela
noite tecemos sendas airosas de um encontro
abrigador de incontensões e rebeldias, depois
reafirmador de tensões por tantas e tantas
sintonias. Foi, portanto, apenas a contingência
espacial que me permitiu valsar numa imanência
atemporal, ´chegando assim mil anos antes de te
conhecer´, Bernadete.
Essa minha apresentação não se esquadrinha numa
análise orientada por cânones universitários, mesmo
porque meu curriculum lates não abriga grande espaço
para a literatura. Minha não-notoriedade acadêmica
oficial nessa bourdieuniano campus não tira,
contudo, minha legitimidade, estribando meu ofício
órfico por um referencial weberiano. Por isso minha
autoridade autoral, orientada pela minha condição de
permanente habitante da poesia e carismático
inquilino na busca intermitente de redomá-la, me
patenteia enquanto Lutador, como no metapoema
homônimo de Drummond.
A expressão literária
Este livro de Bernadete, arredio de discursos
fossilizados em surrados temas, posto que prenhe de
originalidade semântica, expressa a capacidade de
transformar diafanamente - a um só tempo coloquial e
profundamente - resíduos poeticamente reciclados do
quotidiano. Muitas vezes eles escorrem também
pulsionalmente como fluxos do inconsciente,
emergindo em fragmentários retratos de vivências,
como no longo poema memorial ´Incursões por um
pretérito imperfeito´.
Suas andanças, transformadas e (des)sublimadas em
poemas, afirmam-se como missão, como vocação, como
compulsão, haja vista que para ela ´a poesia está de
saco cheio / mas não pode tirar férias´. Esse
inexorável chamamento guarda afinidades com o mestre
da poesia Antônio Girão Barroso, que também declarou
esse inarredável cativeiro: ´uma árvore, eu sei,
pode se libertar do fruto / mas como poderei eu me
libertar do poema?´
Dentro da tríade formada por Girão, Paz e Bernadete,
aquele respondeu a esse afirmativamente, pois
cativou a todos pelo testemunho de sua própria vida
- um inédito metapoema. Nossa poeta também não quer
arredar seu pé da poesia, quando proclama que o ´meu
mais presente são as palavras´. Numa eucaristia
pagã, esta autora nos excita com sua volúpia,
desequilibrista das convenções, dos cânones, tão
comuns a bacharéis e burocratas comodamente
convertidos em poetaços. Bernadete está distante de
tudo isso, pois para ela, conforme tão bem ressalta
o grandioso poeta Francisco Carvalho, a poesia ´é
antes de tudo um látego para fustigar almas
paralíticas´.
Enfim, na tessitura de sua poética, Bernadete
reafirma sua capacidade nada recôndita de manter-se,
mesmo na solidão, apunhalável - como numa das
ilustrações de seu livro - pelo ´sonho [que]
escapa pela ponta suja do lápis´. Portanto vive um
sonho que não é fuga, pois marcado de luta por um
desejo de vida que flui nada asséptico por essa
ponta. Por isso segue se equilibrando por trapézios
de uma vida insubmissa em palavras, não subsumida,
entanto, no silêncio.
Rastros estéticos
Contrariamente àqueles que nos desnutrem com toscas
catarses e desabafos, cometendo poemas, há em
Bernadete um rastreamento estético sem ortodoxias,
porém revelador de sua subjetividade refinada, que
se afirma e se imprime num livro pulsante de vida,
valsas e esperança, transpirando também feridas,
salsas e contradanças. Por isso é também um libelo
para a rebelião do homem contra sua própria
condição. Ao não abandonar seu desterro, suscita um
anelo, devido a possibilidade de sua solidão
equilibrar-se em comunhão pela poesia. Afina-se,
assim, com Otávio Paz, para quem ´se o poeta
abandona seu desterro, abandona também a
possibilidade de que esse exílio se transforme em
comunhão´, contudo, não alentada por escapismos
metafísicos. Como ela própria proclama ´é com as
lagartas que divido / o musgo das rochas úmidas / e
outros seres miúdos e insignificantes´.
Estes são seus graúdos acentos solidários, ´pois
para isso fomos feitos: / para a esperança no
milagre / para a participação na poesia´, como nos
concita Vinícius em seu Poema de Natal. Tomemos
outros assentos, forjados na carpintaria das
palavras de Bernadete, reafirmadoras de ´todas as
piruetas prismáticas que fazem´. Celebramos neste
ágape a dionisiaca festa de nossa Babete de Sumeh,
seu telúrico berço.
IRELENO PORTO BENEVIDES*
Colaborador
*Poeta e economista
SAIBA MAIS
ADORNO, T. Lírica e sociedade. In:
Benjamin, W. e Outros. Textos Escolhidos. Trad.
Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural,
1980. pp. 193-208.
BARTHES, R. O rumor da língua. Trad. Mario
Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
DUFRENNE, M. O poético. Trad. Luiz Nunes e Reasylvia
de Souza. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.
FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São
Paulo: Duas Cidades, 1978.
OLSEN, S. A estrutura do entendimento literário.
Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janerio: Zahar
Editores, 1979.
PAZ, O. El arco y la lira. México: Fundo de Cultura
Econômica México, 1986.