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Bernadete Bezerra

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Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:

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Fortuna:


 

Uma notícia do poeta: 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

Ireleno Porto Benevides

 


A poesia se converteu no alimento dos dissidentes e desterrados do mundo burguês. De um lado, uma profunda afirmação de valores mágicos; de outra, uma vocação revolucionária... as duas direções expressam, desse modo, a rebelião do homem contra a sua própria condição.

Essas referências do poeta mexicano Otávio Paz, Prêmio Nobel de literatura podem servir de epígrafe, cabível na interpretação da escritura poética de Bernadete Bezerra. Em 2003 a conheci no lançamento da primeira coletânea Poemas do Intervalo, da qual participamos como professores poetas da U.F.C.. Inscrita neste título, havia uma alusão aos ocasionais e diletantes poetas bissextos, denotada na palavra intervalo. Essa sintaxe e essa semântica nos adjetivavam para o que, contrariamente em mim e em Bernadete, não é adjunto, complemento, mas nossa própria condição substantiva, existencial. Isso me fez relembrar um querido porém incauto amigo, que, por ocasião do lançamento de meu último livro de poemas, Lavraturas do Corpo, me perguntou se costumava preencher minhas horas vagas, escrevendo diletantemente poesias.

Em nossa multifacetada conjuração de vocações, em nossa ubíqua existência como poetas, carregamos o fardo e o bálsamo de Orfeu. Deles só nos libertamos, só nos untamos, tão-somente em horas plenas, arrebentadas pelo poema, em que, procurando equilíbrio, transbordamos. Tantas vezes nos dilaceramos em lancinantes mergulhos envoltos em dilemas e desafios para com o inventividade órfica, numa postura confessional. Enquanto profissão de fé, afirmamos, assim, uma vocação de vida, tanto transgressora da ordem contemporânea, burocrática, como prometeica desacorrentadora do homem unidimensional, criticamente analisado por Marcuse.

A natureza do poético

Por ser a poesia insubmissão aos aspectos mortíferos da automação e da tecnificação desencantadoras do quotidiano, ela, no entanto, aí mesmo pode inscrever-se, posto que a vida diária suscita não só acomodações, mas explosões. Essa reflexão baseada em Maffesoli sugere que a vocação revolucionária da poesia não significa um descolamento do dia-a-dia, mas seu desdobramento em novos códigos, em outras palavras, nele mesmo bebidos. Por isso a poesia de Bernadete é caudatária da trajetória da velha revolução modernista de 1922 que, parafraseando Ítalo Moriconi, transformou a relíquia do lirismo passadista, comedido e convencional, tão criticado por Bandeira, em lirismo passional de bêbados, loucos e clowns.

Pelicana de nós mesmos, a poesia é que nos refaz, nos sangra e nos nutre. Por isso em sua oficina, carpintejamos o poema, ao carpirmos e repintarmos a vida, com suas dores, odores, cores e amores, materiais com os quais tecemos tantos signos e ritos, como Bandeira em seu ritmo dissoluto. Assim como este poeta, Bernadete vai poetizando por sua transfiguração significantes aparentemente non-sense. O que a engravida passa ao largo de qualquer tradição parnasiana, pela qual infelizmente muito do senso comum ainda nos reconhece. Ao contrário, sua poesia segue quotidianamente de ´mãos dadas´, como reflete Drummond sobre seu solidário estradar. Por isso, Bernadete, mesmo rastreando seu ´vôo pelo mundo com as borboletas´, não se afasta da vida, pois, parafraseando Ítalo Moriconi, também seu ´real vence o ideal na disputa pelo poético´. Por isso ela rompe, então, com uma ideologia segundo a qual alguns materiais encerrariam temáticas poetizáveis. Porém, como não existem portadores apriorísticos de fecundação poética, estes seriam, portanto, fugazes ejaculações verborrágicas.

A metamorfose

Aquela transfiguração opera-se em Bernadete, quando a água que ela poupa, ´com preguiça de escovar os dentes´, depois transborda, sublimada e cristalina, num vaso de poemas. Aí ela se reencontra, para recolher esse alagamento, vertido em messe cultivada por irrigadores mágicos, dores irrigadas de poesia.

Talvez pela faculdade de que ´cegos podem ver na escuridão´, como cantam Chico e Edu, é que eu também divisei, naquela noite de lançamento de Poemas do Intervalo, a mais lídima poesia, na incandescência do verso, pelo qual a poesia ´tecedora das impossibilidades / nos dá o que a história nos tira´, segundo o metapoema ´A luz da poesia´.

Porém a luz que focou nosso encontro não veio da condição secular de professores, mas de nossa litúrgica essência existencial de poetas, arquetípica de uma convergência iniciática entre sacerdotes ritualizando valores mágicos. Naquela noite tecemos sendas airosas de um encontro abrigador de incontensões e rebeldias, depois reafirmador de tensões por tantas e tantas sintonias. Foi, portanto, apenas a contingência espacial que me permitiu valsar numa imanência atemporal, ´chegando assim mil anos antes de te conhecer´, Bernadete.

Essa minha apresentação não se esquadrinha numa análise orientada por cânones universitários, mesmo porque meu curriculum lates não abriga grande espaço para a literatura. Minha não-notoriedade acadêmica oficial nessa bourdieuniano campus não tira, contudo, minha legitimidade, estribando meu ofício órfico por um referencial weberiano. Por isso minha autoridade autoral, orientada pela minha condição de permanente habitante da poesia e carismático inquilino na busca intermitente de redomá-la, me patenteia enquanto Lutador, como no metapoema homônimo de Drummond.

A expressão literária

Este livro de Bernadete, arredio de discursos fossilizados em surrados temas, posto que prenhe de originalidade semântica, expressa a capacidade de transformar diafanamente - a um só tempo coloquial e profundamente - resíduos poeticamente reciclados do quotidiano. Muitas vezes eles escorrem também pulsionalmente como fluxos do inconsciente, emergindo em fragmentários retratos de vivências, como no longo poema memorial ´Incursões por um pretérito imperfeito´.

Suas andanças, transformadas e (des)sublimadas em poemas, afirmam-se como missão, como vocação, como compulsão, haja vista que para ela ´a poesia está de saco cheio / mas não pode tirar férias´. Esse inexorável chamamento guarda afinidades com o mestre da poesia Antônio Girão Barroso, que também declarou esse inarredável cativeiro: ´uma árvore, eu sei, pode se libertar do fruto / mas como poderei eu me libertar do poema?´

Dentro da tríade formada por Girão, Paz e Bernadete, aquele respondeu a esse afirmativamente, pois cativou a todos pelo testemunho de sua própria vida - um inédito metapoema. Nossa poeta também não quer arredar seu pé da poesia, quando proclama que o ´meu mais presente são as palavras´. Numa eucaristia pagã, esta autora nos excita com sua volúpia, desequilibrista das convenções, dos cânones, tão comuns a bacharéis e burocratas comodamente convertidos em poetaços. Bernadete está distante de tudo isso, pois para ela, conforme tão bem ressalta o grandioso poeta Francisco Carvalho, a poesia ´é antes de tudo um látego para fustigar almas paralíticas´.

Enfim, na tessitura de sua poética, Bernadete reafirma sua capacidade nada recôndita de manter-se, mesmo na solidão, apunhalável - como numa das ilustrações de seu livro - pelo ´sonho [que] escapa pela ponta suja do lápis´. Portanto vive um sonho que não é fuga, pois marcado de luta por um desejo de vida que flui nada asséptico por essa ponta. Por isso segue se equilibrando por trapézios de uma vida insubmissa em palavras, não subsumida, entanto, no silêncio.

Rastros estéticos

Contrariamente àqueles que nos desnutrem com toscas catarses e desabafos, cometendo poemas, há em Bernadete um rastreamento estético sem ortodoxias, porém revelador de sua subjetividade refinada, que se afirma e se imprime num livro pulsante de vida, valsas e esperança, transpirando também feridas, salsas e contradanças. Por isso é também um libelo para a rebelião do homem contra sua própria condição. Ao não abandonar seu desterro, suscita um anelo, devido a possibilidade de sua solidão equilibrar-se em comunhão pela poesia. Afina-se, assim, com Otávio Paz, para quem ´se o poeta abandona seu desterro, abandona também a possibilidade de que esse exílio se transforme em comunhão´, contudo, não alentada por escapismos metafísicos. Como ela própria proclama ´é com as lagartas que divido / o musgo das rochas úmidas / e outros seres miúdos e insignificantes´.

Estes são seus graúdos acentos solidários, ´pois para isso fomos feitos: / para a esperança no milagre / para a participação na poesia´, como nos concita Vinícius em seu Poema de Natal. Tomemos outros assentos, forjados na carpintaria das palavras de Bernadete, reafirmadoras de ´todas as piruetas prismáticas que fazem´. Celebramos neste ágape a dionisiaca festa de nossa Babete de Sumeh, seu telúrico berço.

IRELENO PORTO BENEVIDES*
Colaborador
*Poeta e economista

SAIBA MAIS
ADORNO, T. Lírica e sociedade. In: Benjamin, W. e Outros. Textos Escolhidos. Trad. Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980. pp. 193-208.

BARTHES, R. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.

DUFRENNE, M. O poético. Trad. Luiz Nunes e Reasylvia de Souza. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.
FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

OLSEN, S. A estrutura do entendimento literário. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janerio: Zahar Editores, 1979.
PAZ, O. El arco y la lira. México: Fundo de Cultura Econômica México, 1986.