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Bráulio Leite Jr.
Sobre a poesia
de Soares Feitosa
O Nogueira, meu com e ilustre amigo, dr.
Luiz Nogueira Barros, trouxe-me de presente o livro Psi, a
Penúltima" - Edições Papel em Branco, do poeta Soares Feitosa. Um
para mim e outro para o nosso amigo Arnoldo Jambo, que tanta fez às
Alagoas durante um périplo de quase 30 anos.
Confesso que não conhecia nada desse
iluminado cearense. Ou melhor, quase nada. Tinha ouvido alguma
referência, sim, do próprio Nogueira, quando me falou que o
conhecera na Internet. Apenas uma menção não fixada, mas que aflorou
tão logo o recebi o livro, senti o perfume das sementes de imburana,
encabulei com o título e li alguns trechos em voz alta, num sábado
de descanso aqui no Sítio Velho. Os presentes aplaudiram, quiseram
saber, comentaram, cheiraram, abriram e reabriram o livro, entre
muitas diversas opiniões. Depois que todos saíram, levei "Psi" para
o meu quarto. Lá pelas tantas, madrugada alta, costume, acordei para
ler. E o livro ali estava como se esperasse por mim.
Comecei a leitura, fui tomar café com ele
debaixo do braço e outra coisa não fiz durante todo o dia. A poesia
de Soares Feitosa me fascina, fazia refluir meu sentimento de menino
nordestino, revivendo paisagens, ruídos e cheiros perdidos nas
andanças de tantos anos... Uma cancela batendo no mourão, o rangir
da rede no terraço da casa de meu pai, o mugir da vaca parida
atraindo o bezerrinho de pernas inseguras, o correr das águas
despencando nas pedras ou vale separando serras e montes, exibindo
touceiras de capim "sempre verde" e de flores do campo. Mulher
vestida de chita nas festas de São João, as advinhas, o dizer e os
anseios do povo da "oropa, frança e bahia", o cheiro gostoso das
frutas maduras e das comidas do interior.... A saudade dorida dos
que foram e dormem profundamente... Lendo, percebia um universo
múltiplo, popular e erudito, versejado e comentado em idioma
próprio, particular e universal, como só os poetas sabem criar e
oferecer. Ao mesmo tempo, vale prevenir, dificilmente alguém não se
surpreenderá com a arte de Soares Feitosa, principalmente um neófito
como eu, se não ler e reler com atenção o que ela contém, "no seu
estuário poético, fragmentário e composto ao mesmo tempo, com suas
vozes numerosas movendo-se entre os horizontes de vários passados e
o espaço experimental de vários presentes", como analisa o nosso
poeta Lêdo Ivo. Ou então, como diz Jorge Amado: "Seu livro é como
uma dessas arcas de antigamente, onde eram recolhidas coisas
diversas, cada uma delas com sua importância e significação."
A verdade é que no outro dia já, manhã
clareando, eu relia Réquiem em Sol da Tarde, surpreendido por Edna,
que me observava, livro nas mãos. faces molhadas, emoção
arrebentando o peito. Pediu-me para e lemos juntos:
Sim,
a porteira do caminho do rio
ainda era a mesma.
A direção do rio também;
presumo não tenham mudado o rio.
O benjamim,
disseram, morrera na Seca do 93;
arrancaram-no pelo tronco.
Não replantaram sombra,
nem pássaro.
O banco de aroeira,
racharam-no em lenha de fogo.
O curral das vacas,
também.
O chiqueiro das ovelhas,
à esquerda da casa
e o dos bodes,
à esquerda do das ovelhas,
sumiram todos.
O batente da porta-da-frente,
e abaixo dele, outro batente,
onde uma pedra,
com um caneco d'água
lavei os pés,
ainda estão lá,
os batentes;
e nos batentes também estavam
meus rastros em riscos de fogo,
que continuam.
Os canários amarelos,
os mofumbos florados,
não os vi;
nem Flor...
que também não vi.
Os armadores da rede,
na sala-da-frente, sim,
estavam no logar,
parecem outra vez prontos para rangir.
E daquelas pessoas,
quando perguntei por elas,
fizeram-me um gesto distante.
Perguntei por mim;
ningúem sabia quem era.
Eu disse:
é um conhecido meu que gostava muito
daqui.
Perguntaram-me quem eu era.
Um amigo, disse,
e fiz um gesto
ao tempo.
Ficaram sentidos por não
saberem
nem de mim, nem do "outro".
Um menino pequeno começou a
gritar,
lá dentro.
A mãe correu
para acudir.
Despedi-me
sem dizer palavra.
É isso aí. Bonito, não acham. (Gazeta de
Alagoas, 14.05.97)
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