Castro Alves
Edivaldo M. Boaventura
Castro Alves - Trajetória dos seus 150 anos (1847-1997)
in Jornal A Tarde, 15/03/97
O Parque Histórico Castro Alves, nas margens do
fabuloso Paraguaçu, centraliza todas as atenções. Centraliza e atrai
parentes, poetas, violeiros, políticos e visitantes. Cabaceiras é,
assim, um ponto de referência territorial do poeta, síntese
representativa de sua vida e obra.
Todo 14 de março é de festa no parque! Dia de
obrigação e de romaria, com todo o calor da mistura baiana. Mas de
romaria religiosa, cívica, popular e sentimental. De romaria em
romaria, tudo vai regressando para recompor os cenários da
natalidade e da infância. Para tanto, juntam-se pedras, placas,
marcos, palavras, livros, pinturas e lembranças.
Formação no Recife
Chega ao Recife, em 1862, e lá permanece até 1867. É
a fase hugoana com influência de Lamartine e Musset, como bem
mostrou Cláudio Veiga estudando “A presença francesa em Castro
Alves”. São seus companheiros Luiz Cornélio dos Santos, talvez o
maior dos amigos e quem melhor, fisicamente, o descreveu, Vitoriano
Palhares, Alves Carvalhal, Ruy Barbosa, Regueira Costa, Maciel
Pinheiro, o “peregrino audaz”, Augusto Álvares Guimarães, Aristides
Milton e Alfredo de Carvalho, que o recordaria mais tarde em Estudos
Pernambucanos.No início, mora com a misteriosa Idalina, na Rua do
Lima.
Em Recife, Castro Alves pôde sentir ainda as
conseqüências da Revolução de 1848. Distavam apenas 14 anos.
Tanto Xavier Marques, autor de uma das melhores
biografias, como Waldemar de Oliveira comentaram a diferença de
clima, social e literário, entre Salvador e Recife. Para o primeiro,
Pernambuco favorecia-lhe mais que a Bahia, onde “a evolução
literária se operava entre homens feitos, de classes e profissões
diversas, sob a presidência de um glorioso veterano das musas –
Moniz Barreto (...) prezava sobretudo as qualidades clássicas de
reflexão, bom senso, clareza e sobriedade”. Afirmou
peremptoriamente: “A Bahia era, como sempre, tributária das
tradições”.
Além das diferenças no movimento literário, Recife
ressoava ainda a sua última revolução, a Praieira, de 1848, da qual
Pedro Ivo fora um dos heróis. Sem esquecer a Revolução de 1817 e a
Confederação do Equador, em 1824.”
Passa pela Corte em 1868. Encontra-se com Alencar e
Machado. Daí as cartas famosas sobre o vate baiano. O momento
histórico era beligerante, com a Guerra do Paraguai, que lhe inspira
“Pesadelo em Humaitá”.
São Paulo consagrador
O ano de 1868 ser-lhe-ia definitivamente consagrador,
em São Paulo.Obteve os maiores sucessos com “O navio negreiro”,
“Vozes d’África”, “A mãe do cativo”, “Lúcia”, “O vidente”, “Canção
do boêmio”, “Ode ao Dois de Julho”, “O laço de fita”, “Boa noite”.
Nas Arcadas, é colega de Ruy, Nabuco, Rodrigues Alves, Afonso Pena,
Sancho Barros Pimentel, Ramos da Costa e amigo dos professores,
principalmente de José Bonifácio, o moço: “Estou na Academia,
ouvindo o grande José Bonifácio!”
Devendo a São Paulo a inspiração do conjunto poético
dos escravos, embora já houvesse antes começado a empresa, produz
dentro de um clima absoluto de exaltação social, de vibrante e
alucinante berro de injustiça, de clamor desesperado e
descontrolado, de prece cristã angustiante e incessante. São as
“Vozes d’África”: Deus! Ó Deus, onde estás que não respondes?
Paremos, aqui, para assinalar as datas desses três
poemas paulistas: “O navio negreiro”, 18 de abril; “Lúcia”, 30 de
abril; “Vozes d’África”, 11 de junho. Todos juntos em Os escravos.
Passemos do épico social para o épico patriótico.
Castro Alves produz em São Paulo o mais bonito dos seis poemas ao
Dois de Julho. Longe da nação baiana, aproxima-se a data máxima da
confirmação da Independência do Brasil. A independência que se
efetivou em etapas. Do Ipiranga a Cabrito são duas balizas. Ele
mesmo faz o cotejo, na epígrafe:
O Ipiranga conhece o Paraguaçu. O 7 de Setembro é
irmão do 2 de Julho. Não há glória de uma província. Há glória de um
povo. É sempre o Brasil o herdeiro augusto dos heróis – esses
pródigos sublimes.
Observa Eugênio Gomes que essas palavras precederam o
recitativo, suprimidas em livro. Há muito de hereditário, de
sangüíneo, de baianidade nesses poemas ao Dois de Julho. Mas, em
substância, eles tratam mesmo é da liberdade.
Eras tu – Liberdade peregrina!
Esposa do porvir – noiva do sol.
A famosa “Ode ao Dois de Julho” foi declamada no
Teatro de São José, em São Paulo, em julho de 1868.No retorno ao
Rio, ficou “...com menos matéria que o resto da humanidade”. “A
volta da Primavera” marca o seu restabelecimento.
Regressa definitiva e silenciosamente com a esperança
de repousar em sua pátria, em novembro de 1869, e segue para
Curralinho, adentra-se mais para o sertão até o Rosário do Orobó. É
o reencontro com a terra, com o rio e com o amor, Leonídia Fraga.
Desse amor com a infeliz serrana é a importante
produção lírica dos últimos tempos de vida, com “Aves de arribação”,
“O hóspede”, “Fé” “Esperança e Caridade”, “Os Perfumes...”,
invólucro invisível...
Vem à estampa o único livro publicado em vida,
Espumas Flutuantes. Desaparece em 6 de julho de 1871...
A publicação da obra
Deixando apenas um livro publicado, o trabalho de sua
irmã predileta, Adelaide, juntamente com o marido, Augusto Álvares
Guimarães, jornalista e político eminente, amigo do poeta e um dos
seus primeiros biógrafos, foi o de recolher os inéditos e dispersos
para editar a obra. Gonzaga ou a Revolução de Minas sai em 1875; A
Cachoeira de Paulo Afonso, em 1876; Vozes d’África, em 1880; Os
escravos, em 1883.
Destacada é a contribuição de Múcio Teixeira para o
conhecimento da obra. Já na edição de Os escravos apresenta um
esboço biográfico. Em 1896, publica Vida e obra de Castro Alves,
considerada como a primeira biografia de fôlego. E a primeira
tentativa de reunião das poesias aparece em 1898, pelo gramático M.
Said Ali, pela Casa Laemmert.
Com a fundação da Academia Brasileira de Letras, em
1896, Valentin Magalhães o escolhe para patrono da cadeira número 7.
Sistematizam-se os estudos sobre sua obra e seu enquadramento na
última fase do romantismo brasileiro em trabalhos de história ou de
interpretação da literatura, como em Sílvio Romero e José Veríssimo,
ou em conferências e artigos como a palestra de Euclides da Cunha.
Todavia, o empreendimento mais notável é o de Afrânio Peixoto, que
desde 1914, pelo menos, enceta os seus estudos castroalvinos.
Observa Fernando Salles, no prefácio da quinta edição de Castro
Alves, o poeta e o poema, que o autor de Bugrinha repararia a falta
cometida com o patrono de sua cadeira no discurso de posse da
Academia, pois dirigiu-se a Cecéu uma única vez e ocupou-se quase
exclusivamente de Euclides da Cunha. O certo é que, a partir de
então, o poeta passa a ocupar um lugar de destaque na bibliografia
afraniana. São mais de 30 trabalhos e edições. Nas comemorações do
cinqüentenário, em 1921, saem, enfim, as Obras completas de Castro
Alves, pela Francisco Alves.
O centenário
As comemorações do centenário de nascimento vão
estimular novos estudos e edições, como a biografia em três volumes
de Lopes Rodrigues, Alexandre Passos, Arquimino Ornelas, Fernando
Segismundo, Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro Neto, Waldemar Matos,
Agripino Grieco e Jamil Almansur Haddad, que trabalha numa série de
publicações com revisões e seleções de poemas, como a apreciável
edição dos Poemas de amor, anterior ao centenário.
Além das edições relacionadas, há toda uma corte
composta, dentre muitos, por Xavier Marques, que certamente escreveu
uma das melhores biografias, Guilherme de Almeida, José Oiticica,
Mercedes Dantas, Jorge Amado, com o seu cancioneiro popular de
louvação, o A.B.C. de Castro Alves e Amor do Soldado, Edson
Carneiro, Hans Jürgens W. Horch, com a sua bibliografia e tese,
Heitor Ferreira Lima, Fausto Cunha. Destaca-se a contribuição de
Eugênio Gomes, especialmente para a edição da Aguilar, pelo que
representa a fidedignidade para consulta, exatidão das fontes com as
variantes.
Nas comemorações do centenário de morte em 1971,
surgiram novas publicações: as Dimensões, de D. Martins de Oliveira,
os aspectos estilísticos de Antônio de Pádua.
Retornando a Cabaceiras, passados os anos, o lugar
deixa ainda perceber as pegadas, os gestos e as palavras para sentir
“o quente arfar das virações marinhas”, com toda a sua beleza,
principalmente “na hora meiga da tarde”. É possível ver o poeta
brincando à toa com Lúcia, “nas laranjeiras que o Natal enflora”.
Sim, ele e Lúcia correndo “na veiga, no pomar, na cachoeira, como um
casal de colibris travessos...”.
Retenho o cenário crepuscular, justamente quando o
sol descamba e o Paraguaçu guarda os últimos clarões que permitem
ver os campos verdejantes na intimidade macia com as suas águas
escuras. Cabaceiras, claro, vale como história, mas vale tanto como
natureza, calma, tranqüila e ondulante. Cenário construído por Deus
para abrigar poetas.
* Edivaldo M. Boaventura é professor da UFBA e
escritor, membro da Academia de Letras da Bahia e autor de Estudos
sobre Castro Alves, entre outros.
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