Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Castro Alves


Roberto Pompeu de Toledo 



À Sombra da Escravidão

 

O Brasil é um país fundado sobre o trabalho forçado e o comércio de gente. Como foi isso? E o que tem a ver conosco, hoje?
Eles estavam por toda parte. Na lavoura, nas cidades. Dentro de casa, nas senzalas, fugidos no mato. Prestando serviços nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e Salvador: vendendo água, comida, panelas, miçangas, badulaques. Exercendo ofícios especializados, como conta um observador da vida brasileira do século passado, o francês Jean-Baptiste Debret: "... o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre um negro ou pelo menos escravo. Esse contraste, chocante para o europeu, não impede ao habitante do Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas."

Eles eram carregadores, também. "Carregavam tudo nesse Brasil, onde homens de qualidade se recusavam a levar o mais ínfimo pacote", escreve a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no livro Negros, Estrangeiros. Carregavam as cadeirinhas onde os brancos iam sentados, baús, caixas, caixões, caixotes, sacas de café, os barris com os dejetos produzidos nas casas, que logo cedo, às 6 da manhã, no Rio de Janeiro, procissões de negros iam jogar ao mar. Este foi um país de escravos. O maior país de escravos dos tempos modernos, talvez. Ou, pelo menos, o país moderno mais dependente de escravos. Ou, pelo menos, o maior e mais dependente de escravos do continente americano. Havia
diversos tipos de escravo. De propriedade do senhor ou alugados. Empregados no eito ou no serviço doméstico. E havia os escravos "ao ganho" - aqueles que o senhor punha a realizar determinado serviço para fazer algum dinheiro. Os que trabalhavam nas cidades, exercendo diversos ofícios, podiam ser libertos, mas podiam ser também escravos "ao ganho". Ou escravas, que tanto podiam vender quitutes como prostituir-se, para proveito de seu senhor ou senhora.

Este foi um grande país de escravos, e quem se lembra disso? Nesta segunda-feira, 13 de maio, comemora-se a abolição da escravidão. Faz 108 anos que a princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea. Nessa data, fazendo uma exceção, no geral processo de esquecimento nacional, talvez se lembre um pouco a escravidão, nas escolas e nos jornais, se bem que cada vez menos: o 13 de maio foi colocado em desgraça pelo Movimento Negro, considerado uma data "branca", comemorativa de um gesto de suposta "benevolência". Prefere-se hoje comemorar o dia da morte de Zumbi, o herói do Quilombo dos Palmares, 20 de novembro.

Trocou-se um mito pelo outro, o da senhora bondosa, que gentilmente concede a liberdade aos súditos negros, pelo do negro rebelde e audaz, herói do inconformismo. Entre ambos fica a realidade dura, cotidiana, suarenta, diversa, complexa - e, fora do círculo dos especialistas, ignorada. O Brasil teve três séculos e meio de regime escravocrata, contra apenas um de trabalho livre. Três e meio para um! Ao longo desses três séculos e meio, importou 4 milhões de negros africanos, 40% das importações totais das Américas, numa das mais volumosas operações de transferência forçada de pessoas havidas na História. Este é um país formado na concepção de que trabalho é algo que se obriga outro a fazer e pessoas humanas são mercadorias.

O Hino à República, aquele que pede à liberdade para que "abra as asas sobre nós", diz a certa altura:

 

Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...
 

 

São versos espantosos. "Outrora" houve escravos. O hino é de 1890. fazia dois anos, portanto, ainda havia escravos, talvez dentro da casa, ou pelo menos na porta do autor da letra, o poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque. Como "outrora"? Dois anos é outrora? E a letra diz que nós "nem cremos" que tenha havido escravo. Como não cremos? Era só olhar em volta, ou um pouquinho para trás. Já tinha começado o processo de esquecimento que dura até hoje.

Havia escravos boçais e escravos ladinos. Boçais eram os que, mal chegados da África, não conheciam a língua nem o costume da terra. Ladinos eram os já afeiçoados à língua e truques locais. Um escravo podia ser objeto de compra, venda, empréstimo, doação, penhor, seqüestro, transmissão por herança, embargo, depósito, arremate e adjudicação, como qualquer mercadoria. Mas era uma mercadoria especial. Quando cometia um crime, era punido com os rigores do Código Penal. Por isso, o historiador Jacob Gorender escreveu: "0 primeiro ato humano do escravo é o crime". Então ele virava gente, de pleno direito.

O historiador Luiz Felipe Alencastro, que última um aguardado livro sobre o assunto, O Trato dos Viventes, afirma: "A escravidão não dizia respeito apenas ao escravo e ao senhor. Ela gangrenava a sociedade toda, e criou um padrão de relações sociais e de trato político que deixou conseqüências graves". Para insistir em algo que nunca é demais repetir, o Brasil é um país criado na concepção de que trabalho é escravidão. Portanto, liberdade é não-trabalho. A historiadora Hebe Maria Mattos de Castro, da Universidade Federal Fluminense, observou que a atividade exercida pelas pessoas era qualificada diferentemente, nos documentos, segundo a pessoa fosse escrava ou livre. Escreve ela, no livro Das Cores do Silêncio: "Enquanto os escravos estavam associados a algum tipo de serviço (serviço de roça, serviço de carpinteiro), os homens livres viviam de alguma coisa. Em geral, de seus bens e lavouras, mas também de seu jornal, de seu ofício de carpinteiro ou simplesmente de agências".

Gente pobre também tinha escravo, uma mercadoria barata, exceto nas poucas fases de escassez de oferta. Mesmo ex-escravos tinham escravos, e até houve casos de escravos que tinham escravos. Tinha-se escravo porque era uma mercadoria barata, mas também por outra razão, no caso dos ex-escravos, de pele escura: para mostrar à sociedade que não eram escravos. Ou, como escreve Hebe Maria Mattos de Castro, a condição de proprietário de escravos, nem que fosse um escravo só - e geralmente era um só mesmo -, servia para "negar de maneira global a situação anterior".
Em 1798, o Brasil tinha 3,2 milhões de habitantes e 1,6 milhão de escravos, a metade da população. Em 1816-1817, vésperas da Independência, a população total era de 3,6 milhões de habitantes e os escravos 1,9 milhão. Entre os escravos havia os africanos, nascidos na África, e os crioulos, nascidos no Brasil. Os africanos quase sempre foram maioria, dada a intensidade do tráfico, que os despejava aos milhares, a cada ano, nos portos de Salvador ou do Rio. Em Salvador, em 1835, os africanos eram 63% dos escravos e 33% da população de 65.500 habitantes. Foi quando ocorreu a famosa Revolta dos Malês, uma das maiores insurreições de escravos do Brasil, liderada por negros muçulmanos, conhecidos como "malês". Os traficantes baianos abasteciam-se na África Ocidental, aquela parte saliente do continente africano, mais ao norte, onde fica o Golfo de Benin, de secular ligação com a Bahia, e os cariocas na África do centro-sul, a região do Congo e Angola. Secundariamente, os cariocas poderiam ir buscar escravos também em Moçambique, na costa oriental africana.

Entre 1790 e 1830, só pelo Porto do Rio de Janeiro entraram 700.000 escravos. Eles abasteciam não só a cidade e a província do Rio, mas também as regiões Sudeste e Sul. A massa de recém-chegados estava em constante renovação, o que equivale a dizer: o Brasil não era apenas um país de escravos, era um país de estrangeiros. A escravaria, escrevem os historiadores Manolo Florentino e José Roberto Góes, num trabalho inédito, A Paz das Senzalas, era "um conjunto marcado por altos graus de desarraigo social, mediante a incessante introdução de forasteiros". Os mesmos autores acrescentam: "0 cativeiro assentava-se na contínua produção social do estrangeiro".

A massa dos escravos, que o senso comum costuma imaginar homogênea e até, nas visões mais românticas, solidária, era diversa e abrigava conflitos em seu seio. Em muitos episódios, emergiu o conflito entre crioulos e africanos. Em 1789 houve um levante de escravos na Fazenda Santana, em Ilhéus, Bahia, notável porque os negros amotinados deixaram um documento contendo suas reivindicações ao proprietário, Manuel da Silva Ferreira. "Meu senhor, nós queremos paz, e não queremos guerra", começa o documento. Em seguida os revoltosos, que durante dois anos conseguiram manter-se escondidos no mato, pedem desde a permissão para trabalhar em suas próprias roças, nas sextas-feiras e nos sábados, até a liberdade de "brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença." Mas eles também não querem "fazer camboas e mariscar", e dizem ao senhor: "Quando quiser fazer camboas e mariscar, mandes os seus pretos Minas". Tratava-se de uma rebelião de crioulos, e eles estavam pouco se importando com a sorte dos "pretos Minas", nome genérico dos africanos caçados na Costa da Mina, na África Ocidental.
Inversamente, a Revolta dos Malês foi um movimento de africanos. Quase todas as revoltas de escravos em Salvador e no Recôncavo Baiano, e elas foram muitas, eram de africanos, e os crioulos ou ficavam neutros ou contra. Escrevem os historiadores João José Reis e Eduardo Silva, falando da Bahia, no livro Negociação e Conflito: "Tudo indica que a presença de muitos africanos inibia politicamente os crioulos, e os persuadia a comprometer-se com as classes livres ou senhoriais".

Os próprios africanos eram diferentes entre si - vinham de regiões diferentes, de diferentes etnias, línguas e costumes. Negros de origens diversas conviviam no mesmo plantel, e interessava ao fazendeiro que fosse assim. Robert Walsh, um inglês que viajou pelo Brasil no início do século passado, escreveu que a população negra era composta de "oito ou nove castas diferentes", que entre si se empenhavam "em lutas e batalhas", e acrescentou: "Os brancos incentivam essa animosidade, procurando mantê-la viva, por acharem que ela está intimamente associada à sua própria segurança".

Nos últimos anos aumentou o conhecimento do que foi a escravidão no Brasil. A busca paciente nos arquivos, o levantamento de números e o emprego de métodos estatísticos estão na raiz desse avanço, bem como o surgimento de uma geração de historiadores votada ao trabalho miúdo, constante e aplicado. O uso dos recursos da antropologia e da economia e as pesquisas no exterior, especialmente sobre a África, também contribuíram. Pena que o resultado desse trabalho fique restrito ao mundo acadêmico, mesmo porque dá origem a estudos acadêmicos, em linguagem acadêmica, de difícil acesso ao leitor comum.

Vão-se apresentar a seguir duas amostras do que a historiografia atual tem produzido. A primeira versa sobre a crucial questão do tráfico de escravos. A outra conta a história de uma fuga de escravos ocorrida no município de Vassouras, Estado do Rio. O tráfico é o tema do livro Em Costas Negras, de Manolo Garcia Florentino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual se apresentará um resumo. A fuga de Vassouras será contada a partir de um dos capítulos do livro Histórias de Quilombolas, de Flávio dos Santos Gomes, professor da Universidade Federal do Pará. Os livros têm em comum o fato de resultarem de trabalhos premiados pelo Arquivo Nacional, sob cujos auspícios foram publicados, em edições modestas e de pequena tiragem, no fim do ano
passado.


SUA EXCELÊNCIA, O TRAFICANTE

 

Quem era ele, como era o seu negócio,
o itinerário que comandava, entre dois
continentes, e sua posição na sociedade.

 

No dia 14 de novembro de 1827, o navio Arsênia zarpava do Porto do Rio de Janeiro. Destino: os portos de Molembo e Cabinda, na costa congo-angolana. O Arsênia levava a bordo oito sacos de feijão, treze de arroz, 110 de farinha, 130 arrobas de carne-seca, oito pipas de aguardente e 160 alqueires de sal. E ainda onze fardos e oito caixas de fazendas, catorze caixas de armas de fogo, uma caixa com navalhas, espelhos, corais e facas, e 300 barras de ferro. A viagem era para comprar escravos. Empresariava-a o traficante Antônio José Meireles. O primeiro grupo de mercadorias era para a manutenção da tripulação e da escravaria. O segundo, para fazer o escambo, na África. Esse era um comércio em que não entrava dinheiro. Entrava mercadoria - no caso do Arsênia, principalmente fazendas e armas.

A missão foi coroada de êxito. No dia 23 de abril de 1828, pouco mais de cinco meses depois, o navio estava de volta. Dos 292 escravos que comprara na África, 289 desembarcaram no Rio, o que representava perda de apenas três na travessia, irrisória. O caso do Arsênia, citado por Manolo Garcia Florentino em seu livro, mostra o que se levava para alimentar os escravos, no começo do século passado, e o tipo de mercadoria que servia para o escambo. Outras vezes, muitas, o escambo era pesadamente baseado na aguardente, a boa e velha cachaça brasileira, também chamada de giribita. O navio Boa Viagem, que zarpou para Angola no dia 16 de outubro daquele mesmo ano de 1827, levava oito barris de aguardente para o escambo, além de 58 rolos de fumo.

Mas o item que mais pesava nas despesas do traficante, entre as compras para o escambo, segundo Florentino eram os tecidos. Tratava-se de produtos importados, em geral de Goa, na índia. Havia também produtos europeus, como as armas de fogo, muito valorizadas pelos vendedores africanos de escravos. Isso revela que o traficante era ao mesmo tempo um importador e um reexportador desses produtos, o que faz Florentino escrever: "Estamos frente a um agente constantemente ligado ao comércio internacional e a outras áreas do império português (como a índia), para onde transferia parcela expressiva dos rendimentos auferidos com a compra e a venda de africanos".

Eis uma primeira noção a reter: o negócio do tráfico não era para qualquer um. Exigia grandes investimentos, que começavam na compra ou aluguel do navio, passavam pela aquisição dos artigos para o escambo, e terminavam nas despesas de seguro, fundamentais num empreendimento de risco como esse, sujeito a naufrágios e à ação dos piratas, para não falar na natureza perecível - e como! - da mercadoria de sua especialidade. Era negócio para homens experientes no comércio, de múltiplas relações e grossos cabedais.

O livro de Florentino detém-se num período e num lugar determinado - o período é 1790-1830, e o lugar é a praça do Rio de Janeiro. O autor vale-se de fontes documentais como escrituras públicas, inventários post-mortem e, principalmente, listagens de entrada de navios negreiros no Porto do Rio, elaboradas pelos funcionários da capitania dos portos, com razoável precisão, nas quais constava o nome do capitão e do traficante, o número de escravos embarcados na África e o efetivamente desembarcados no Brasil.

Que era a praça do Rio de Janeiro, no período estudado? Não era apenas a mais importante do Brasil. O fluxo de escravos que ela comandava no Atlântico Sul, era o mais importante do mundo. O ouro das Minas Gerais transformara o Rio no principal porto da colônia. Agora, nesse período que fecha a era colonial e inicia a fase independente do Brasil, o Rio comanda o pólo mais dinâmico da economia brasileira. Na primeira década do século XIX, seu porto detém 38,1% das importações e 34,2% das exportações brasileiras, contra respectivamente 27,1% e 26,4% do segundo colocado, a Bahia. Além de capital do país, a cidade é o centro de convergência de sua província nº 1, a do Rio de Janeiro, fortemente voltada para a agroexportação, tanto ao norte, em Campos, região de engenhos de cana-de-açúcar, quanto ao sul, no Vale do Paraíba, onde o café começa sua vertiginosa ascensão.

O Rio estava sedento de braços, tanto a província como a cidade. A cidade, onde a partir de 1808 se instala a Corte portuguesa, conheceu crescimento populacional de 160% entre 1799 e 1821. Isso requeria mais serviços e mais trabalho, vale dizer, mais escravos. A província como um todo pulou de 169.000 habitantes, em 1789, para 591.000, em 1830. Em 1830, os escravos eram 40% da população da província. Em 1837, eram 57% da população da Corte, ou seja, a cidade do Rio de Janeiro. Leve-se em consideração, ainda, que o porto carioca também abastecia de escravos a província de Minas Gerais e, subsidiariamente, São Paulo e as províncias do sul, e o quadro de uma forte demanda pelo braço escravo se completa.

Entre 1796 e 1830, 1.576 navios negreiros entraram no Porto do Rio. O tráfico apresenta nesse período crescimento de 5,1% ao ano. Um fato capital ocorre na segunda metade da década de 1820. A Inglaterra, que abolira seu próprio tráfico para as colônias em 1807, e desde então passara a pressionar os demais países a fazer o mesmo, inclui no pacote de exigências para o reconhecimento da Independência do Brasil o fim do comércio de escravos. O Brasil acaba cedendo, e em 1827 assina um acordo comprometendo-se a fazê-lo a partir de 1830. Esse compromisso não seria cumprido, e o tráfico brasileiro se prolongaria por mais vinte anos. Mas a perspectiva era de que estava por terminar, e então os traficantes brasileiros se dão a uma desesperada cartada de fim de festa. Demonstrando "grande capacidade de mobilização de recursos", escreve Florentino, a elite escravocrata passa a recepcionar a média de 95 navios negreiros por ano, entre 1826 e 1830 - quase dois por semana. Era o dobro da média até então.

Quantos escravos viajavam em cada navio? Isso dependia do tipo de navio, fosse bergantim, chalupa ou galera. Analisando as décadas de 1810 e 1820, Florentino chega a uma média de 442 escravos embarcados na África por navio. Florentino, um missionário dos números, que quando não os encontra, precisos, cerca-os por meio de laboriosas aproximações, fecha suas contas relativas ao total do período estudado concluindo que desembarcaram no Porto do Rio, entre 1790 e 1830, 706.870 escravos.

Para que tantos braços importados? Porque o crescimento da economia o requeria, por um lado. Por outro, porque a escravaria já estabelecida no Brasil não se reproduzia de maneira a suprir as necessidades de reposição ou de aumento da mão-de-obra. Pelo contrário, tomada em si mesma, isto é, sem a injeção do tráfico, a população escrava tendia a diminuir. Por quê? Em primeiro lugar, porque havia em seu interior um acentuado desequilíbrio entre os sexos. Importavam-se sobretudo homens. Homens era do que precisava a lavoura. No campo fluminense, havia de seis a sete homens em cada dez escravos. No meio urbano, em 1815-1817, havia 3,1 homens para cada mulher. Segundo outro autor, Jacob Gorender, citado por Florentino, o fazendeiro não se preocuparia em propiciar condições para a reprodução natural da escravaria porque isso custaria mais caro do que se abastecer no tráfico.

O escravo era mercadoria barata, eis outra noção a reter. Houve períodos em que encareceu, devido à pouca oferta, mas em geral era barata, tanto assim que mesmo os pobres os tinham. Era barata porque em geral havia abundante oferta por parte dos traficantes. E por que a oferta era tão abundante'? Uma razão importante é quase um segredo, tanto tem sido escondida: porque os próprios africanos colaboravam na captura dos escravos, o que contribuía sobremaneira para abater os custos da operação.
Imaginar expedições de brancos a embrenhar-se nos matos africanos e armar emboscadas para capturar escravos é algo tão comum quanto, geralmente, falso. Houve expedições dessas, principalmente no começo da escravização dos africanos pelos europeus, nos séculos XVI e XVII. Mas com o tempo consolidou-se o padrão pelo qual os africanos se seqüestravam eles próprios, e vendiam os seqüestrados como escravos aos comerciantes brancos. A escravização já era conhecida, na África, inclusive para uso interno. No Reino do Congo, por exemplo, usavam-se escravos. Faziam-se os escravos, em geral, entre os povos inimigos, ao cabo de uma guerra vitoriosa. Nesse caso, o escravo era um ganho suplementar, um subproduto do ganho territorial ou de outra espécie advindo da guerra. Mas houve também o caso de guerras que eram feitas com a finalidade precípua de fazer escravos. Tratava-se de mercadoria que os europeus tinham tornado preciosa, pois podia ser trocada por cobiçados bens estrangeiros.

O comerciante branco não precisava embrenhar-se na mata. Ficava esperando no litoral que lhe trouxessem a encomenda. Escreve Florentino: " ... os grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento através do qual podiam fortalecer seu poder, incorporando povos tributários e escravos. A venda destes últimos no litoral lhes permitia o acesso a diversos tipos de mercadorias e material bélico. Desse modo, aumentava sua capacidade de produzir mais escravos e, por conseguinte, de controlar os bens envolvidos no escambo". O escambo dava aos chefes africanos acesso a mercadorias como cavalos, pólvora e armas de fogo. A conclusão de Florentino, neste ponto, é que o tráfico teve um papel estrutural não só na economia brasileira, mas também na africana. Isso explicaria por que durou tantos séculos, acumulando um poder que lhe permitiu até driblar as pressões exercidas pela Inglaterra, a grande potência do período, detentora de uma Marinha onipresente no planeta.

Observe-se o itinerário de um escravo capturado. O seqüestro se dava no interior da África, às vezes tão longe quanto na região dos lagos, lá onde o hoje Zaire (ex-Congo) confina com os atuais Tanzânia, Uganda e Quênia. Ali ele era comprado de um soba africano por um "sertanejo", um agente do comerciante litorâneo, e levado para o litoral - em geral a Luanda, o principal porto de embarque de escravos ao sul do Equador. Florentino descreve o comerciante de escravos de Luanda: não seriam mais de uma dúzia, descendentes de portugueses, cercados de luxo, vivendo em amplos sobrados, servidos por multidões de escravos. Em Luanda na época não havia mais que 400 brancos, para uma população total de 4.000 habitantes. Esse comerciante de escravos de Luanda podia ser um mero agente, ou comissário, do traficante carioca, ou um negociante de "efeitos próprios". Mesmo nesse último caso, porém, mantinha uma relação de subordinação para com o comerciante do Rio.

Em Luanda (ou Cabinda, ou Benguela) o comerciante local entregava o lote de escravos pretendido ao capitão do navio a serviço do traficante carioca. Seguia-se a travessia marítima. Uma vez no Rio, e uma vez pagos os direitos alfandegários, o escravo era exposto em armazéns da Rua do Valongo, onde funcionava o mercado dos "escravos novos". Os compradores urbanos se abasteciam ali. Ou então em sua própria casa, segundo o testemunho de viajantes que viram escravos ser oferecidos de porta em porta, acorrentados. Mas a maioria dos negros recém-chegados destinava-se às fazendas do interior. A eles estava reservada uma última etapa da viagem, Brasil adentro, capitaneada por tropeiros que ou estavam a serviço do próprio traficante ou, o que era mais comum, se encarregavam eles próprios do empreendimento.
Longa era a via-crúcis do escravo, da savana africana onde se dava a captura até o destino final. A travessia marítima durava de 33 a 43 dias, quando se tratava do trajeto Congo-Angola ao Rio. Quando o navio ia se abastecer em Moçambique, o que às vezes era vantajoso, pois lá o escravo era mais barato, a viagem durava o dobro. A isso se deve acrescentar o longo período durante o qual os navios permaneciam estacionados em portos africanos, esperando que a encomenda chegasse do interior - podia estender-se a até 165 dias. Segundo Joseph Miller, um autor citado por Florentino, 40% dos negros capturados em Angola morriam durante o deslocamento até o litoral e outros 10% ou 20% nos armazéns onde ficavam alojados no porto, antes do embarque. Mais da metade, assim, morreria na própria África. Quanto à travessia marítima, Florentino achou taxas médias de mortandade que variam de 8,9%, no período entre 1796 e 1811, a 5,6%. na década de 1820. Isso quanto à travessia a partir da área congo-angolana. Nas viagens a partir de Moçambique, a mortandade dobrava.

As causas das mortes eram maus-tratos, má alimentação a bordo, superlotação, doenças. Houve casos extremos. A galera São José Indiano, no caminho entre Cabinda e o Rio, perdeu, em 1811, 121 dos 667 escravos que transportava. E a mortandade podia continuar em solo brasileiro, onde os escravos chegavam exauridos e expostos a doenças para as quais seu sistema imunológico estava despreparado. O traficante Manuel Gonçalves de Carvalho, numa carta a seu correspondente em Angola, queixa-se de que, de uma remessa de quinze, apenas onze escravos lhe tinham chegado vivos, dos quais "mandei dois no mesmo dia ao cemitério". Estes dois tinham morrido já no Brasil.

De tudo o que foi dito até agora se depreende algo que é uma das conclusões fundamentais do livro de Florentino: o traficante era um carioca. Ou, ao menos, um comerciante estabelecido no Rio. Não era um agente da metrópole. Não era um representante dos interesses portugueses. Isso faz repensar não só o tráfico, mas o conjunto da economia colonial brasileira, que em geral se imagina estritamente dependente da metrópole. Escravos foram as maiores importações brasileiras. E Portugal não tinha capitais para bancar esse negócio. Eis o que explica, segundo Florentino, a brecha aberta no sistema colonial. O comércio Sul-Sul, entre a África e o Brasil, por causa do tráfico, era tão importante quanto o comércio com a Europa.

O comerciante do Rio mantinha sob sua dependência, em graus diversos, os diversos elos que compunham o negócio da compra de escravos. "0 capital traficante brasileiro aparecia como detonador e organizador do comércio negreiro", escreve Florentino. E quem era esse comerciante que comandava negócio tão vultoso? A resposta é outra das conclusões fundamentais do livro: não, não se tratava de um negociante marginal, atuando à sorrelfa, fora do eixo principal da economia da Colônia e, depois, do Império. Muito pelo contrário, era alguém bem dentro, mais dentro impossível. Ou, para usar as palavras de Florentino, "ao falar de traficantes, estamos frente à própria elite empresarial" do Rio e, portanto, do Brasil.
Numa lista feita, em 1799, das 36 maiores fortunas da província do Rio de Janeiro, sete são de traficantes. O lucro que eles obtinham em suas operações era em média de 19,2%, muito maior que o dos traficantes ingleses, quando estes atuavam (9,5%), franceses (10%) e holandeses (5%), e maior que o de uma fazenda de café - 15%, nos melhores anos. E suas atividades iam muito além do tráfico. As mesmas pessoas que o comandavam estavam envolvidas também na importação de tecidos, que seria para o escambo mas ainda podia abastecer o mercado interno. E os traficantes mantinham um pé também no setor financeiro, como prova o fato de que das dez companhias de seguro estabelecidas no Rio de Janeiro, em 1829, sete tinham traficantes entre seus diretores.

Os traficantes, segundo mostram os diversos cruzamentos realizados por Florentino entre os registros mercantis cariocas, representavam ainda de 9% a 13% do total de importadores de gêneros alimentícios da praça do Rio de Janeiro. Em termos gerais, conclui o autor, eles eram 10% dos comerciantes cariocas, e dos maiores - homens "cujos investimentos cobrem diversos setores econômicos, principalmente o comércio e o crédito", segundo escreveu, em seus Princípios de Direito Mercantil, José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu.

Claro que, assim sendo, os traficantes eram também íntimos do poder. Muitos se fizeram merecedores da Ordem de Cristo, a comenda que era outorgada pela família real. Um deles, Geraldo Carneiro Belens, recebeu a comenda de dom João VI em virtude de estar sua empresa, a casa Carneiro, Viúva e Filhos, entre as "que mais se têm distinguido". Outro, Elias Antônio Lopes, deu e recebeu favores do Estado fartamente, ao longo da vida. Quando a família real aqui chegou, ele doou-lhe a chácara que possuía em São Cristóvão. Essa propriedade estaria destinada a ser a residência imperial enquanto durou o regime monárquico. Tráfico não era para qualquer um, já se disse. Era para gente fina.

Manuel Congo era o seu nome. Um nome segundo os padrões correntes entre escravos - um prenome luso-brasileiro associado ao de sua "nação", mesmo se não fosse bem nação o que designava, mas uma região. Profissão: ferreiro. Alguns escravos eram treinados em certos ofícios, e por força disso acabavam virando uma elite entre seus pares. Estado civil: casado. Num dia do início de setembro de 1839, o corpo de Manuel Congo balançava na forca montada na freguesia de Pati do Alferes, município de Vassouras, na região do Vale do Paraíba, província do Rio de Janeiro. Era o desfecho de uma história iniciada dez meses antes.

Noite de 5 de novembro de 1838. Cerca de oitenta escravos da fazenda Freguesia, pertencente a Manuel Francisco Xavier, grande proprietário da rica região cafeicultora de Vassouras, aproveitam a cobertura das trevas para fugir. Uma fuga de oitenta, está aí já algo de preocupar, que revela concertação e organização entre os insurretos. Mas ainda havia mais, pois na madrugada seguinte ei-los na outra fazenda do mesmo proprietário, a Maravilha, juntando também a escravaria deste estabelecimento a seu intento criminoso. Na Maravilha, tentaram matar o feitor e arrombaram depósitos, apossando-se de grande quantidade de mantimentos e ferramentas. Colocaram até escadas na janela da cozinha, nos fundos da casa-grande, para facilitar a fuga das escravas do serviço doméstico, que lá dormiam. Rumaram então para uma fazenda vizinha, de propriedade de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, onde se reuniram a mais companheiros. Os fugitivos agora eram centenas. Quantos? Talvez 400.

Estamos agora no livro Histórias de Quilombolas,de Flávio dos Santos Gomes. Que pretendiam os negros fugidos, formar um quilombo? Possivelmente, mas isso nunca ficou claro. Recorramos por um breve instante a outros autores, João José Reis e Eduardo Silva, que, no livro Negociação e Conflito, escrevem: "Os escravos fugiam pelos mais variados motivos: abusos físicos, separação de entes queridos por vendas ou transferências inaceitáveis ou o simples prazer de namoro com a liberdade. Conhecedores das malhas finas do sistema, escapavam muitas vezes já com intenção de voltar depois de pregar um susto no senhor e assim marcar o espaço de negociação no conflito".

Uma fuga em massa como a de Vassouras, de qualquer forma, era algo incomum e assustador. No dia 8 de novembro, o juiz de paz de Pati do Alferes mandava ofício ao coronel-chefe da Guarda Nacional na região, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, pedindo-lhe providências, em prol "da ordem e do sossego público". A resposta veio presta. Em 48 horas Lacerda Verneck tinha mobilizado uma força de algumas centenas de homens. Loquaz e às vezes fanfarrão nos memorandos que ia produzindo, Lacerda Werneck enviou um ao presidente da província, informando-o da mobilização e acrescentando: "Nesta ocasião dirigi a meus camaradas um discurso, cuja leitura enérgica produziu um efeito admirável, fazendo ressoar por alguns momentos entusiasmados vivas". A pátria estava em perigo. Carecia salvá-la.

Uma figuraça esse Lacerda Werneck. Na Independência já tinha a graduação de tenente de cavalaria de milícias. Em 1831 era coronel. Agora, neste ano de 1838, tinha 43 anos, e além de chefe local da Guarda Nacional era um poderoso e influente fazendeiro, que mais tarde se tomaria o barão de Pati do Alferes. Ao morrer, em 1861, era possuidor de sete fazendas e 1.000 escravos. A pátria estava em perigo, mas também seus interesses muito concretos. A Lacerda Werneck, presidente da Sociedade Promotora da Civilização e Indústria da Vila de Vassouras, que zelava pelos interesses comuns dos proprietários, não interessava ver a região transformada em sede de quilombos, pretos alevantados, lugar de desordem e desrespeito.

E lá se embrenhou ele no mato, atrás dos negros fugidos. Tinha uma vantagem: os negros avançavam abrindo picadas. Sua força já encontrava as picadas abertas. O juiz de paz viajava a seu lado. No dia 11 de novembro, às 5 da tarde, narra Lacerda Werneck, num de seus memorandos, "sentimos golpes de machado e falar gente". Tinham localizado um primeiro grupo de escravo. Estes se deram conta da presença dos perseguidores, porém. "Fizeram uma linha", mobilizaram suas armas, "umas de fogo, outras cortantes", e gritaram: "Atira caboclo, atira diabos". Lacerda Werneck prossegue, com seu jeito em que a gramática pode sofrer abalos, mas nunca o entusiasmo: "Este insulto foi seguido de uma descarga que matou dois dos nossos e feriu outros dois. Quão caro lhes custou! Vinte e tantos rolaram pelo morro abaixo à nossa primeira descarga, uns mortos e outros gravemente feridos, então se tornou geral o tiroteio, deram cobardemente costas, largando parte das armas; foram perseguidos e espingardeados em retirada e em completa debandada..."

No dia seguinte. mais fugitivos foram apanhados. Sua luta agora era sem esperança. Seus víveres e armas tinham sido apreendidos. Ficaram alguns grupos vagando pela floresta, de outros não mais se soube, outros ainda voltaram às fazendas, não sem antes lançar mão do recurso do "apadrinhamento" - ia-se a uma fazenda vizinha e pedia-se ao dono que os "apadrinhasse" de volta à fazenda de origem, escoltando-os e pedindo a seus senhores que fossem clementes. Foram presos os líderes da rebelião, inclusive Manuel Congo, acusado de ser o "rei" do eventual futuro quilombo, e Mariana Crioula. a "rainha". Causou espécie, no processo, a participação desta Mariana na rebelião, ela que era "uma crioula de estimação de dona Francisca Xavier", isto é, uma escrava doméstica, considerada das mais dóceis e confiáveis. Lacerda Werneck contou que ela só se entregou "cacete" e gritava: "Morrer sim, entregar não".

Foram indiciados dezesseis fugitivos no processo. Em janeiro de 1839 deu-se o julgamento. Manuel Congo foi condenado à morte, acusado de ser responsável pelas duas mortes ocorridas entre os perseguidores. Oito réus foram absolvidos. Sete foram condenados a "650 açoites a cada um, dados a cinqüenta por dia, na forma da lei", além do que deviam andar "três anos com gonzo de ferro ao pescoço". O susto, para a boa sociedade de Vassouras, tinha passado, mas fora grande. Alarmou a província e ecoou pelo Império. Um destacamento do Exército, com cinqüenta homens, chegou a ser enviado da corte a Vassouras. No comando, quem vinha? Não poderia haver alguém mais qualificado, destinado à glória futura: o tenente-coronel Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias e patrono do Exército brasileiro. O destacamento não precisou atuar, porém. Chegou a 14 de novembro, quando o levante já fora dominado.

A partir desses fatos, Flávio dos Santos Gomes investiga quem seriam os negros rebolados, que circunstâncias os teriam levado ao levante, por que a fuga teria causado tanto pânico, as condições gerais da economia e da sociedade da região e as mentalidades da época. O resultado é um retrato da sociedade escravocrata, naquela rica região, nos primeiros anos de Brasil independente. Talvez valha corno mini-retrato da sociedade escravocrata brasileira.

Vassouras já era uma importante produtora e exportadora de café. Em meados do século, sua população alcançaria 35.000 pessoas.

Na população escrava, segundo dados de 1837-1840, os africanos predominavam fortemente sobre os crioulos: eram três em cada quatro. Também havia forte predominância dos homens (73,7%) sobre as mulheres (26,3%). E os escravos estavam sobretudo na faixa entre 15 e 40 anos, a preferida pelos fazendeiros porque a mais produtiva: 68% nela se situavam.

Uma análise do inventário de Manuel Francisco Xavier, o proprietário em cujas fazendas começou o levante e cujos escravos, ao que tudo indica, eram a grande maioria dos alevantados, acentua ainda mais os traços observados na generalidade da região. Entre os 449 escravos que possuía, ao morrer, em 1840 - dois anos apenas depois do levante -, 85% eram homens e 80% eram africanos.

Entre os dezesseis participantes da fuga indiciados no processo, onze eram africanos e cinco eram crioulos. Sete eram mulheres. E dez eram trabalhadores especializados, por oposição aos trabalhadores na roça: ferreiros, como Manuel Congo, carpinteiros, caldeireiros, ou, no caso das mulheres, lavadeiras, costureiras ou enfermeiras. Escreve Flávio dos Santos Gomes: "É possível supor que a organização deste levante foi ampla, complexa e pode ter envolvido tanto os cativos que trabalhavam no campo quanto aqueles que exerciam ofícios especializados, que por certo tinham mais prestígio entre os demais, além de mobilidade na fazenda, o que garantia melhores condições para contatar seus parceiros, inclusive de outras fazendas, para um plano articulado de insurreição e fuga".
Manuel Francisco Xavier tinha má fama entre os colegas fazendeiros. "Há muito tempo que se receava o que hoje acontece, por fatos que se têm observado entre esta escravatura", escreveu Lacerda Werneck, num dos memorandos produzidos no calor da batalha.

Homens brancos, feitores e capatazes, teriam sido espancados e até assassinados pelos escravos, nas fazendas de Xavier.

Escravos seriam castigados até morrer. Haveria iniqüidades. falta de ordem e falta de pulso. Ou, como escreve Flávio dos Santos Gomes, teriam sido desrespeitados, nas fazendas em questão, os limites da "economia moral" vigente. Lacerda Werneck era o porta-voz do temor geral de que essa situação contaminasse outras fazendas e se alastrasse pela região.

Lacerda Werneck produzirá na década de 1840, com o intuito de orientar o filho, estudante de direito canônico na Europa, um opúsculo que se tornaria um clássico da ideologia do senhor de escravos. Escreveu ele: "Não se dirá que o preto é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos, ou demasiada severidade, ou frouxidão excessiva, porque esta torna-os irascíveis ao mais pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela toca-os à desesperação". Lacerda Wemeck não está satisfeito com o sistema, "um cancro roedor", formado por escravos "cujo preço atual não está em harmonia com a renda que dele se pode tirar, ainda de mais acresce a imensa mortandade a que estão sujeitos". Mas, como é preciso continuar, dá seus conselhos ao filho.

Deve-se introduzir os cativos "na doutrina cristã", ensina ele, fazendo-os confessar e respeitar os domingos e dias santos. Deve-se induzí-los à "troca de roupa semanal, para que não vestissem roupas molhadas". Os que se adoentam devem ser tratados "com todo o cuidado e humanidade". Mas deve-se "proibir severamente a embriaguez, pondo-os de tronco até passar a bebedeira, castigando-os depois com vinte até cinqüenta açoites". O fazendeiro deve ainda "reservar um bocado de terra onde os pretos façam as suas roças, plantem o seu café, o seu milho, feijão, banana, batata, cará, aipim, cana, etc". Acreditava Lacerda Werneck que "com esse pequeno direito de propriedade" os escravos adquiririam "certo amor ao país" e ficariam menos inclinados às insurreições.

Em 1835, tinha ocorrido na Bahia a Revolta dos Malês, envolvendo talvez até 1.500 negros e ensangüentando as ruas de Salvador. Uma onda de choque espalhou-se pelo Império. "A incidência de denúncias e rumores relativos a prováveis planos de sublevações escravas alimentava a cada dia", escreve Flávio dos Santos Gomes. O medo já estava no ar, quando se deu a fuga em Vassouras. Temiam-se sobretudo os "pretos minas" - os da costas ocidental da África, que eram os negros da Bahia. O medo se multiplicava quando se encontravam "escritos árabes" entre os cativos - indício da presença de muçulmanos, os responsáveis pelo levante de Salvador.

Em 1854, dezesseis anos depois da grande fuga das fazendas de Manuel Francisco Xavier, e dezenove depois da Revolta dos Malês, ainda havia medo em Vassouras. Formou-se nesse ano no município uma "comissão permanente" com o objetivo de conclamar os fazendeiros a uma política e uma ação conjunta, diante do perigo das insurreições de escravos. Dizia o texto de constituição da comissão, fundada por quatro fazendeiros: "Se o receio de uma insurreição geral é talvez ainda remoto, contudo o das insurreições parciais é sempre iminente, com particularidade hoje que as fazendas estão se abastecendo com escravos vindos do Norte, que em todo tempo gozaram de triste celebridade". Explica-se: o tráfico oceânico havia finalmente se encerrado, em 1850. Restava aos fazendeiros um comércio inter-regional e inter-provincial no qual o maior fluxo era de escravos do Nordeste para o Sudeste.

A comissão recomendava aos fazendeiros que se armassem, mantivessem uma polícia vigilante, fizessem os escravos dormir em lugar fechado, impedissem a comunicação entre as fazendas. Por outro lado, deviam permitir a diversão entre os escravos: "Quem se diverte não conspira". E deviam insistir na observância, pelos escravos, dos preceitos cristãos: "A religião é um freio e ensina a resignação". Enfim, a "comissão permanente" recomendava que os fazendeiros introduzissem colonos europeus em suas fazendas, e até estipulava as proporções em que isso devia ser feito: um para cada doze escravos, dois para cada 25, cinco para cada cinqüenta, sete por 100... "0 escravo é o inimigo inconciliável", advertia a comissão. Em contrapartida, o trabalhador branco seria "um braço amigo, um companheiro de armas, com cuja lealdade se pode contar na ocasião da luta: os interesses são comuns".

A pesquisa de Flávio dos Santos Gomes não apenas nos revela um episódio.

Principalmente, nos introduz num clima. De truculência e tensão, e de medo, medo de que de uma hora para outra aquilo tudo poderia acabar muito mal.

 

2 - O MEDO DE ONTEM E O DE HOJE


O legado da escravidão. Ou:
que significaria para o Brasil,
hoje, ter tido um passado
de sociedade escravocrata?

 

O ato de comprar gente tinha suas manhas. Havia a prova do suor, por exemplo. O comprador passava o dedo no escravo exposto no mercado e lambia para ver se o suor era verdadeiro ou efeito de algum óleo para que a pele parecesse brilhante e viçosa. Examinavam-se os dentes do escravo. Apertava-se a barriga para verificar se ele não tinha dor, escutava-se o peito, pedia-se para ele correr e pular.

Que significa para o Brasil, hoje, ter tido escravos?

O historiador baiano João José Reis responde: "Não acho que todos os problemas brasileiros, inclusive de relações entre as classes, tenham a ver com a escravidão. Mas o fato é que tivemos quase 400 anos de História em que os mais afortunados se acostumaram à noção de que os outros podem ser torturados. Isso pesa".

O historiador Manolo Garcia Florentino responde: "A escravidão foi a base a partir da qual se fundou uma civilização, para retomar Sérgio Buarque de Holanda, para quem o Brasil, por sua complexidade e diversidade, era uma civilização. Ela fundou a civilização brasileira. E ao fazê-lo viabilizou um projeto excludente, em que o objetivo das elites é manter a diferença com relação ao restante da população".

O historiador Flávio dos Santos Gomes: "É problemático pensar em continuidades. Se há no Brasil um sistema racial opressivo, não é necessariamente porque aqui houve escravidão. A explicação do racismo também se encontra no que ocorreu depois da abolição. É comum ouvir falar hoje em relações escravistas ou semi-escravistas no campo. Quando se diz isso, pensa-se num modelo que não é generalizante. Houve vários tipos de relação com escravos no Brasil.
Houve, por exemplo, escravos a quem era permitido manter pequenas roças, fazer um pequeno comércio ou receber por dia. Ora, relações que hoje são tachadas de escravistas podem na verdade ser piores do que certos modelos que vigoraram na escravidão".

O historiador Luiz Felipe Alencastro: "A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada, a saúde".

Hoje, a maioria não se lembra da escravidão no Brasil senão esporadicamente, vagamente. E em termos esquemáticos: Zumbi, o herói, ou o negro acomodado, o senhor desalmado ou a sinhazinha boazinha com o pessoal da senzala. A realidade foi mais complexa. Os historiadores, hoje, revelam um escravo que podia reunir na mesma pessoa o acomodado e o insubmisso. E um senhor que, embora na condução de um projeto arcaico e arcaizante, soube levá-lo avante. Manolo Florentino lembra que a escravidão foi o modelo de relações econômicas e sociais mais estável que o Brasil já teve.

Não é uma originalidade brasileira esquecer a História. Outros povos também a esquecem, especialmente seus pedaços ruins. A França não gosta de lembrar-se que boa parte da sua população colaborou com o nazismo. Os povos africanos não gostam de lembrar-se que também escravizaram, para uso próprio e para exportação. Para os Estados Unidos, a escravidão é um espinho encravado na garganta.

A revista The New Yorker reduto do melhor pensamento americano, dedicou seu último número aos negros dos Estados Unidos. No artigo de apresentação, os editores recordam que dentro do "mito" americano, aquele de que o país foi construído sob o signo da Justiça e da Igualdade, paladino da Liberdade, refúgio de oprimidos de todas as partes, dentro daquilo que conforma o "sonho" americano, enfim, estava embutido um pesadelo.

"O mito ignora a dimensão trágica da condição americana", afirma a revista. "Nem todos os ancestrais dos americanos vieram para cá para escapar à tirania; muitos foram trazidos para ser tiranizados. Nem todos cruzaram o oceano para melhorar suas próprias condições e de suas famílias; muitos foram trazidos à força - suas famílias divididas, suas estruturas sociais esmagadas, suas línguas suprimidas - para trabalhar, sem recompensa, em benefício de seus opressores."

Os negros dos Estados Unidos vivem pior do que os brancos. No entanto, estão na terra há mais tempo. O artigo da The New Yorker lembra que a vasta maioria deles chegou ao país antes da Independência, em 1776. "Excetuados os índios", acrescenta a revista, "uma declinante minoria de outros americanos pode dizer o mesmo."

Ao Brasil, os últimos negros chegaram em 1850, ano em que terminou o tráfico. O historiador Flávio dos Santos Gomes, autor de Histórias dos Quilombolas, em que conta o episódio de Vassouras, é negro, e conseguiu retraçar a trilha de seus ancestrais até 1743. Quantas famílias brasileiras brancas são tão antigas? Se antiguidade é credencial para pretensões de nobreza e propriedade, aos negros brasileiros, que somados àqueles que o IBGE chama de "pardos" são muito mais numerosos que os americanos, e chegam quase à metade da população (44,2%, segundo o censo de 1990), deveria caber mais do que lhes tem cabido, na sociedade brasileira.

Esquecer o passado, antes que uma anormalidade, é a regra, entre os povos, mas traz um problema: faz com que nos conheçamos menos. A pesquisa histórica, hoje, no Brasil, é fortemente voltada para o século XX. Igualmente, a curiosidade eventual que a mídia, as escolas e o público em geral tenham pelo passado. Getúlio Vargas, tenentismo, Luís Carlos Prestes, 1964: eis o que se estuda, preferencialmente. "Há um presentismo que chega a ser trágico", diz Manolo Florentino. Procura-se desvendar o país esquadrinhando seus sucessos e percalços neste século, mas as explicações mais profundas talvez se situem em períodos anteriores.
Luiz Felipe Alencastro, na mesma ordem de idéias, acha que "há um mal-entendido em insistir tanto no século XX". Encare-se a escravidão e a maneira como ela contaminava a sociedade brasileira como um todo, não só a relação senhor-escravo. Um retrato do Brasil pode começar a emergir.

Falar de legado da escravidão, hoje, no Brasil, é falar da pobreza. Da miséria. Ou, para usar uma palavra mais atual - e apropriada -, da exclusão. Nem tudo tem a ver com a escravidão. Isso é simplismo. Também não somos iguaizinhos ao que éramos na época da Colônia e do Império. Isso é mais simplismo ainda. Mas pode ser útil, para entender o Brasil do presente, acompanhar o raciocínio de Manolo Florentino, quando faz a seguinte afirmação: "0 tráfico foi o maior negócio de importação brasileiro até 1850. Comprar pessoas para estabelecer diferenças foi o principal empreendimento deste país".

O sonho americano, como lembrou a revista The New Yorker era uma sociedade democrática e igual. Já o projeto brasileiro, segundo Florentino, era (e é?) uma sociedade de diferentes. Os poderosos precisavam (precisam?) ter quem se situe embaixo para se sentir mais poderosos e livres. O sonho democrático americano é embaralhado e atazanado pela existência dos escravos. Já o projeto brasileiro é por eles completado e viabilizado. O projeto brasileiro é arcaico e arcaizante, nota Florentino, mas atenção: é exitoso.
Só que o êxito tem um preço. Uma parte desse preço aquele medo que se apossou de Vassouras, depois da fuga, da escravaria da Fazenda Freguesia, ou de Salvador e um pouco por toda parte no Império, depois da Revolta dos Malês, e que foi num crescendo, e que às vésperas da abolição era um sentimento generalizado. É simplismo pensar que somos iguais ao que fomos, mas, sem esquerdismos nem populismos, talvez não seja absurdo pensar que o medo é feito do mesmo material do que aquele que ocorre ao percorrer hoje uma rua do Rio de Janeiro, à noite.


(in Revista VEJA, ed. Abril, ed. 1.444, de 15.05.1996)
 
Nota do Jornal de Poesia:
 

De toda a minha desejada e nunca possuída (viagens) coleção da revista Veja, desde o primeiro exemplar, leitura que jamais perdi uma semana sequer, alias, desde a antiga Realidade, se intimado a ficar com apenas três exemplares, por certo, de minha parte, o primeiro seria o que contém, edição de 15.05.96, o ensaio do jornalista - e não esqueçamos que os Sertões, de Euclydes da Cunha, foi escrito para um jornal, o Estado de São Paulo - RobertoPompeu de Toledo sobre a Escravidão.
Vacilaria sobre os outros dois exemplares dessa virtual coleção de salvados: a reportagem sobre Baumgartten, que desmantelou o "sistema", o SNI e correlatos, apressando o retorno da cidadania; o terceiro seria a entrevista de Pedro Collor, sobre o outro Collor.
O Jornal de Poesia tem o prazer de trazer aos leitores jovens, em especial àqueles que sabem-se encantar com O Navio Negreiro, o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo. Só através da pena dos poetas e dos escritores maiores - e botem nessa lista dos maiores Gilberto Freyre, Machado de Assis, José Lins do Rego, e agora Roberto Pompeu de Toledo - é que é possível "saber" sobre a alma de um povo. Ler o Navio Negreiro sem aperceber do real significado da mancha da escravidão, impossível; ler sobre a escravidão sem se contaminar do entusiasmo do Condoreiro, glória maior entre as maiores, das letras universais, é algo também muito incompleto.
Leiam o ensaio de Toledo; releiam o Navio, aliás, releiam o livro todo, Vozes d'África, O Bandido Negro - e muito mais - (saibam quem primeiro falou "seara vermelha",- em OS ESCRAVOS, completo no seu Jornal de Poesia. Releiam a ambos. Quanto mais, melhor. O Navio, de Castro Alves, o Ensaio sobre a Escravidão, de Pompeu de Toledo, duas obras que se bastam.

Soares Feitosa, o editor do Jornal de Poesia.
 


Índice do autor

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

Voltar para o índice

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Castro Alves


Cid Seixas
 

Da presença de Eros na lírica romântica

 

Em outros termos, a transferência não é nada de real no sujeito, senão a aparição, num momento de estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes segundo os quais ele constitui seus objetos.
Jacques Lacan

 

O Romantismo, conforme o lugar comum, não é apenas um movimento literário ou artístico — exaurido pelo advento do Realismo — mas um estado de espírito e um projeto de vida que caracterizam a primeira metade do século XIX e, intempestivamente, são flagrados na ideologia do homem que anuncia o ano dois mil. Oriundos das radicais transformações sofridas pelas relações econômicas da sociedade, a prática e o pensamento românticos inauguraram uma nova cultura, contendo traços característicos entre si contraditórios. É neste jogo de contradições que tem lugar a lírica de Castro Alves, onde a energia de Eros triunfa sobre a estagnação depressiva do caráter romântico.

2. No dizer de Karl Mannheim, “o Romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas”,1 lamentando suspiros e rimas a nobreza, que perdeu a hegemonia, e a pequena burguesia, ansiosa pela ascensão econômica e social. Daí, a melancolia saudosista e o quixotismo reivindicante, fortemente marcados pela impotência do espírito contemplativo.

3. A moral sexual dessa cultura, rasgada por contradições e conflitos, se ressente da tensão entre o delírio fantasioso do desejo e a expiação obsessiva de culpas imaginárias. O homem, incendiado pela ânsia de vida e amor se proíbe a plenitude dessa experiência, recusando à mulher a condição de parceira na procura lúdica. Só é considerada merecedora do amor romântico a virgem de pureza passiva, enquanto a mulher que não se deixa vencer pelo bloqueio da libido poderá ser, apenas, objeto de desejo, saciado no fogo infernal do desprezo e da condenação moral romântica.

4. Ao proibir à companheira o desenvolvimento da personalidade, o romântico projeta a interdição sobre si mesmo, pagando tributo à compreensão ascética do desejo como pecado.

5. Ao punir a mulher com a condenação ao bloqueio do desenvolvimento libidinal — substituindo o desejo pela ausência contida no símbolo “pureza” — ele se pune a si mesmo.

6. As experiências e excitações que o ego tenta rejeitar são expulsas e depois são sentidas como estando fora dele. Aquilo que é ofensivo aos princípios do ego, — dizia Fenichel no seu indispensável manual (dispensado pela tropa de choque lacaniana) — “é percebido na outra pessoa e não no próprio ego do indivíduo, de modo que se pode dizer do mecanismo de defesa da projeção o mesmo que da ansiedade e do sentimento de culpa: reações arcaicas que nas fases iniciais do desenvolvimento ocorrem de forma automática vêm a ser, ulteriormente, amansadas pelo ego e usadas para os seus fins defensivos.” 2

7. Compreenda-se portanto que, ao utilizar a expressão “projeta” para designar um movimento também introjetivo, queremos sublinhar a dialética do processo, onde um fato mental é afastado através da projeção, permitindo e dissimulando a posterior introjeção. A ação provocada pelo indivíduo sobre si mesmo vai incidir diretamente sobre a mulher, espelho reflexivo, e indiretamente sobre ele, alvo da ação, através do retorno. Recorremos aqui à imagem de um espelho retroprojetor, do mesmo modo que o romântico recorre à mulher, o que permite o “projetar sobre si mesmo”.

8. Por outro lado, sabe-se que na paranóia a projeção, como mecanismo de defesa, atinge o mais elevado grau. Sabe-se ainda que os sintomas mais comuns da paranóia permeiam as características básicas atribuídas ao romantismo. Compondo o silogismo, digamos: se aceita a tradicional aproximação dos paranóicos com as grandiosas personalidades, sempre perseguidas pelo destino, que são os incompreendidos gênios românticos, o Romantismo terá a projeção incluída entre os seus mecanismos mais destacados.

9. O fato da moral burguesa reservar, quase que exclusivamente, à mulher de categoria social menos elevada o papel de objeto sexual terminou por condicionar a identificação do prazer amoroso com aquilo que é mais desprezível aos olhos do burguês: a decadência na escala econômica ou social. Se a paixão dos sentidos se concretiza em chamas com uma pobre rapariga de subúrbio, o romântico não consegue dissociar as noções de prazer e pobreza aí articuladas. como o não possuir riquezas se configura como o inferno burguês, o ser possuído ou possuída pelo prazer evoca constantemente esta temida situação.

10. A propósito da natureza clivada pela contradição e pela parcialidade românticas, podem ser lembrados os versos de Capinan que dizem:


Todos os santos têm o sexo amputado.
E cansados de suster a própria boca
maldizem ter fome, enquanto comem

 

ou ainda:

 

 

O santo é só um ângulo do homem.3

 

11. O homem romântico, agente e vítima da moral burguesa, guarda com remorsos a face encoberta pelas sombras, comendo com gula e nojo a voracidade da sua culpa.

12. Mas a mulher, como percebeu Dante Moreira Leite, foi o alvo das conseqüências mais anulatórias deste processo, para quem “O matrimônio seria afetivamente insatisfatório, e a permanente frustração encontraria fuga no romance de folhetim, que representava, portanto, uma necessidade no sistema de repressões da época. A situação do homem era, sem dúvida, mais cômoda, pois o ambiente social permitiria a busca de relações afetivas mais satisfatórias, sem que por isso devesse renunciar ao respeito da família e da sociedade. Para ele, o castigo seria de outra ordem: viveria atormentado pela idéia de que sua mulher também pudesse traí-lo. Para o romântico, o pior de todos os castigos.”4

13. Em torno desse quadro, a literatura em geral e a poesia em particular vão estabelecer seu espaço, revelando-se talvez a maior ou menor aptidão para a transgressão artística no modo de fixação da realidade transfigurada. Os espíritos mais comprometidos com o espaço de convenção de uma cultura não conseguem transitar para além das fronteiras demarcadas, nem articular a conquista de um novo espaço que marcará a continuidade do processo histórico como evolução do homem. Nesse particular, a lírica de Castro Alves merece maior atenção no quadro da Literatura Brasileira do século XIX. O mais rápido confronto deste poeta com toda a nossa tradição romântica, no que concerne ao tratamento do amor, põe, sem dúvida, o jovem autor de Espumas flutuantes numa posição menos comprometida com os “males do século”.

14. Conforme demonstra a crítica, Castro Alves ocupa um lugar ímpar na lírica romântica por não ter limitado seu texto à simples expressão da “ânsia de amar”,5 como ocorre, por exemplo, com Álvares de Azevedo que cristaliza o ideal contemplativo da moral sexual romântica. Recorda-se o conhecido e admirado “Lira dos vinte anos”:

 

Oh ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!

 

15. É evidente que, neste caso, o canto substitui a posse do objeto, conforme se poderá depreender do confronto destes versos com outros textos de Álvares de Azevedo, para quem o poema é uma forma de sublimação. Como o amor ideal não pode ter existência e imagem no ato humano de amar, considerado proibido pela consciência romântica, a sublimação através da poesia será a única maneira de resolução do conflito. Uma maneira precária, no caso em foco, que se alterna com a obsessão pela morte — único meio seguro de eliminação dos conflitos burgueses, conforme o testemunho da experiência romântica.

16. Manuel Bandeira, na Apresentação da poesia brasileira, reúne dados bastante significativos para uma análise do caso Álvares de Azevedo, protótipo de uma época, como o trecho da carta que diz: “Sinto no meu coração uma necessidade de amar, de dar a uma criatura este amor que me bate no peito. Mas ainda não encontrei aqui uma mulher — uma só — por quem eu pudesse bater de amores”.6 Álvares de Azevedo, é importante que se diga, vivia em São Paulo, grande centro urbano, onde as possibilidades de relacionamento afetivo eram maiores do que em pequenas cidades. Mas o que chamamos acima de cristalização do ideal contemplativo da moral sexual romântica levou o poeta a se proibir a vida da cidade, tendo inclusive deixado de freqüentar certa casa de família “pois não é das melhores nem muito louváveis, pelo contrário, é bem nodoada a reputação dessas senhoras”.7 Este depoimento é por si mesmo eloqüente, dispensando qualquer adendo, além das observações iniciais deste ensaio que compreende a moral romântica como um sintoma. Não no sentido semiótico do termo, mas no sentido patológico.

17. Voltemos a Castro Alves e a hipótese do seu distanciamento do quadro romântico, no que diz respeito a incorporação de algumas características de uma época marcada pela enfermidade do espírito ou pela interdição do desenvolvimento da personalidade. Não é sem causa que se identifica o espírito romântico com o espírito infantil, onde a natureza exigente e compulsiva, indiferente às necessidades alheias, desemboca na regressão e na destruição.

18. Com argúcia e poder de síntese, Alfredo Bosi observa, com respeito a Castro Alves: “Com ele fluem sem meandros as correntes de uma renovada lírica erótica, tanto mais forte e limpa quanto menos reclusa no labirinto das culpas sem remissão.8

19. Se o romântico em geral não consegue viver em paz com Eros, em decorrência do seu compromisso com a regressão e com Thanatos, em Castro Alves, o culto ao deus do amor é uma vocação.

20. Mas quem são estes deuses responsáveis pela divisão e pelo conflito derradeiro dos homens? Inimigos ou aliados?

21. Nos muros da Cidade da Bahia, uma inscrição de piche unia os dois num casamento verbal:


AMORTEAMO

 

22. Na velha Grécia, Eros era reconhecido como o filho de Afrodite ou, para os mais antigos, como um dos deuses primeiros, que surgiu ao mesmo tempo que a terra. Já Thanatos, o terrível carrasco dos deuses, era irmão de Hipno, o sono, e filho do Caos e das Trevas.

23. Para Freud, Eros é a pulsão da vida, cujo alvo é instituir unidades cada vez maiores, e conservar, enquanto Thanatos tem como alvo dissolver os agregados e destruir as coisas.

24. Platão, no Banquete, antecipa muitas das reflexões de Freud e coloca questões estimulantes para a investigação do inconsciente que, no nosso século, seria assumida não mais pela filosofia ou pela metafísica, mas pela psicanálise. Para o filósofo, o amor é simplesmente um desejo, uma privação: “Portanto, a pessoa, e quem quer que deseje alguma coisa, deseja forçosamente o que não está à sua disposição, o que não possui, o que não tem, o que lhe falta; ora, não são estes justamente os objetos do desejo e do amor?”9

25. Se tomarmos como proposta a discussão de três conceitos: o objeto, a ausência e o símbolo — será evidente que o amor, segundo Platão, terá existência entre a ausência e o símbolo. O objeto será sempre inatingível e estará sempre ausente. Qualquer objeto outro tomado como alvo será apenas visto como símbolo — ou será transformado em símbolo —, assegurando assim a ausência do objeto desejado: aquilo que Thanatos roubou ao homem, deduziríamos do discurso platônico.

26. Opondo-se à crença dos seus contemporâneos segundo a qual Eros é um deus, o filósofo afirma que se trata de um gênio — traduziríamos: de uma força — que preenche o vazio que há entre os deuses e os homens. O objeto do amor seria sempre o desejo da imortalidade, assegura o autor de Banquete: “Não deves pois te espantar de que todos os seres amem o que procriaram, pois é devido ao desejo de imortalidade que amam e se desvelam.”10 Em outro momento ele reafirma que o amor é o desejo de possuir sempre, e nós podemos acrescentar: possuir o que é impossível (“Quero tudo que não tenho / porque nunca o terei.”.11 Irreversivelmente, Thanatos nos roubou o objeto que nos tornaria igual aos deuses: a permanência da vida, a imortalidade. Se Eros é para Platão a força perene da vida, sua grande luta será sempre travada com Thanatos. Mas, irremediavelmente, sua vitória, quando ocorre, é sempre simbólica: a conquista do objeto roubado ao homem por Thanatos será realizada simbolicamente no fruto do amor. O filho é a continuação e a imortalidade do pai, mas é constituído pela ausência do pai, sendo portanto seu símbolo.

27. A busca da imortalidade se opera na alquimia da transmutação da não-existência, seja criando, pela fertilidade do corpo, um outro homem, seja, pela fertilidade do espírito, concebendo obras que assegurem a permanência do criador. E arremata Platão, através da fala de Diotima: “Pois o mesmo se dá com o amor: desejo do bom e da felicidade, em geral, eis no que para todos consiste o grande e astucioso Eros. Mas há muitos modos de dar satisfação ao amor e, dentre eles, o de procurar as riquezas, os esportes, a filosofia — aos quais todavia, não se aplicam corretamente os nomes de amante e amado; apenas a uma determinada espécie de amor e aos seus sequazes é que se dá o nome que de direito pertence ao gênero todo”.12

28. Não só o conceito de sublimação está contido nestas reflexões de Platão como também, se procurarmos examinar o mecanismo da transferência, podemos ver neste diálogo importantes contribuições. Evidentemente, não se encontrará explicitada a forma que a transferência assume na clínica, mas se observará as mesmas operações semióticas, constituídas pelos fatores: objeto, ausência e símbolo. Lacan percebeu os elos da transferência na clínica com a aparição no sujeito “dos modos permanentes segundo os quais ele constitui seus objetos.”13 Isto é: mesmo em termos estritamente psicanalíticos, a afirmativa de Lacan nos autoriza algumas das inferências contidas neste ensaio de crítica literária.

29. Podemos afirmar que segundo Platão todo amor é amor de transferência. Eros ama, através dos homens, ou os homens amam, através de Eros, não aquilo que é tangível para os homens, mas o que ele perdeu para o seu rival Thanatos: o que é amado no objeto simbólico de amor dos homens.

30. Para explicar através de um exemplo, admitamos outra intromissão pessoal:

 

Não quero aquilo que quero:
o objeto é só o querer.
Não amamos quem amamos
mas o amor, modo de ser.14


CASTRO ALVES:
O TRIUNFO DE EROS

 

Em “Mocidade e morte”, poema escrito em 1864, Castro Alves enfrenta o conflito entre os dois poderosos deuses das disposições anímicas: Thanatos, senhor da desagregação, do tédio e do espírito romântico, e Eros, jovem arqueiro de movimentos vitais, que disputa o domínio da natureza para que esta frutifique. É evidente a opção do poeta pelo filho ou aliado de Afrodite:

 

Oh! eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre que embalsama os ares;
Ver minha alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela na amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
— Árabe errante, vou dormir à tarde
Å sombra fresca da palmeira erguida.

 

32. “Mocidade e morte” pode ser tomado como uma profecia, onde o poeta antecipa a sua condenação: sabe-se que em fins de 1868 ele feriu o pé com um tiro, resultando em grave enfermidade que culminou na sua amputação e na morte do poeta. Freqüentador da vida social e boêmia das capitais, o jovem de apenas vinte e um anos se recolhe à fazenda, em Curralinho, onde escreve várias páginas de poesia testemunhando sua luta contra Thanatos, vindo a falecer no dia 6 de julho de 1871. Este poema, escrito quatro anos antes do desencadeamento da tragédia da sua vida, ganha assim especial relevo e significado.

33. Se, por um lado, Thanatos se insinua impassivelmente, por outro, Eros é exaltado: “Oh! eu quero viver, beber perfumes”. Causou estranheza à moral vitoriana quando Freud ligou o exercício da sexualidade com o exercício mesmo da vida, explicitando, em linguagem científica, o que se sugeria em linguagem poética. Aqui, é evidente a identificação dos símbolos mais “inocentes” da vida e da natureza com a condição sexual do animal humano, começando pela sinestesia que, em Castro Alves, bem pode ser lida ainda como metonímia. Lembre-se que em 1870 ele escreveu: “O perfume é o invólucro invisível / Que encerra as formas da mulher bonita. / Bem como a salamandra em chamas vive, / Entre perfumes a sultana habita.”

34. Transformada a sinestesia — “beber perfume” — em metonímia, a carga erótica começa a se tornar mais evidente. Nos versos “Ver minha alma adejar pelo infinito / Qual branca vela na amplidão dos mares” dois momentos devem ser sublinhados. Primeiro, o significante “adejar”, que pode remeter ao significado “bater asas”, mas pode também ser interpretado por analogia ao significante “adejo”, que no nordeste brasileiro quer dizer “cavalo que vagueia sem cavaleiro”. Desnecessário demonstrar a sexualização da imagem composta por “cavalo que vagueia”, como também já sabemos que a alma, em Castro Alves, também é uma entidade sensual, animal (de “anima”) e não uma sombra transcendental. Lembre-se, a propósito, o poema “Boa noite”, onde se Lê: “Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos / Treme tua alma, como a lira ao vento, / Das teclas de teu seio que harmonias, / Que escalas de suspiros, bebo atento!” A alma animal (“anima”) experimenta a sensação lasciva do toque íntimo. Por fim, nova sinestesia que pode ser lida como metonímia, onde aparece o mesmo verbo: “beber”. Porque, mais uma vez, “beber”?

35. Voltemos aos dois versos citados acima. Se o primeiro “Ver minha alma adejar pelo infinito” — é uma figuração sensual, o segundo — “Qual branca vela na amplidão dos mares” — contém dois símbolos da maior força erótica. O mar é a mãe original, o símbolo da fecundidade por excelência. Também a água, que molha, tem o seu verbo — “molhar” — claramente incluído em contextos sexuais.

36. Já os gregos ilustravam magnificamente esta concepção da água como colo fértil: Afrodite, deusa do amor, nasceu das águas. Cronos, o tempo, pai ancestral, perdeu seu reino para Zeus, seu filho. Ele temia ter o poder usurpado pelo filho que, em vingança, lhe castra e lança os órgãos às águas do mar. Dessa semeadura, conta o mito, nasce Afrodite.

37. No poema de Castro Alves, a “amplidão dos mares” é semeada por “branca vela” metonímia de barco e, ao mesmo tempo, metáfora de sugestão idêntica a “palmeira erguida” (“No seio da mulher há tanto aroma... / Nos seus beijos de fogo há tanta vida... / — Árabe errante, vou dormir à tarde / À sombra fresca da palmeira erguida.”). O aroma, o perfume, reaparece ligado ao fogo da vida. Também ligada à palmeira erguida está ligada a figura do árabe, requintado amante e, segundo a tradição patriarcal, macho de muitas fêmeas.

38. Em outro momento do poema, as idéias contidas na estrofe analisada são reiteradas:

 

Morrer quando este mundo é um paraíso,
E a alma em cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas...

 

39. Se a água aparece na primeira estrofe com a fecundidade, o sal e a inquietude do mar, aqui ela reaparece com a tranqüilidade doce do “lago virgem”. Na figura anterior, a vela penetra no mar e nesta o cisne rasga o lago, boiando “à tona das espumas”. Já este último verso — “Quero boiar à tona das espumas...” — evoca o cansaço de depois: o se entregar ao repouso após o repuxo de sons e cores.

40. Outro poeta brasileiro, Vinícius de Morais, também recorreu ao resultado da água, ou do que é molhado, em movimento: “Das bocas unidas fez-se a espuma”.

41. Sob imagens estereotipadas da natureza virgem, tão a gosto da fuga e do alheamento românticos, Castro Alves estrutura um discurso sensual, onde é flagrante o desejo desesperado de fazer Eros cavalgar a vida, triunfando sobre Thanatos. No verso “Morrer... quando este mundo é um paraíso”, as veredas de Eros, que se confundem com o espaço da vida mesma, em toda sua plenitude, transformam os territórios do homem em paraíso, lugar edênico que comporta a pulsão sexual. Observe-se que a tradição romântica tende a identificar esta pulsão como uma força demoníaca, em chamas como o próprio inferno, enquanto Castro Alves situa o reino de Eros no mundo dos homens que, por isso, se transforma em espaço paradisíaco.

42. A sensualidade do ato de viver é exaltada, em confronto com o vazio, como nos versos:

 

Ai! morrer — é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher — no visco
Da larga errante no sepulcro fundo.

 

43. Como símbolos da vida, Castro Alves elege os astros no céu, a cama na alcova e os beijos da amante, antônimos dos círios e sepulcros. Se os poetas românticos, marcados pela regressão e pela natureza exigente e compulsiva que termina por ignorar o outro como fonte da vida, anseiam sempre pela dramaticidade suprema da morte, em Castro Alves o uso deste clichê é transformado em grito desesperado que espera tanger Thanatos para longe dos feudos da vida. Mesmo diante da presença fria do demiurgo da destruição, o poeta clama:
 

E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...

 

44. Aqui, a moral do cristianismo não teve força suficiente para instaurar o culto de Thanatos, com sua promessa de salvação mediante a aceitação de um projeto de vida masoquista, onde o prazer é atributo do Diabo e a dor, de Deus.

45. Observe-se ainda que, ao elevar o espírito numa oração vocativa, o poeta não se envergonha da sua nudez lasciva nem do gosto de maçã e vinho na boca diante do Senhor. Ele canta a vida como lugar da sede e do desejo, porque sabe que o prazer é um espaço mágico que habita o relâmpago e o céu dos sentidos, erguendo os pilares do paraíso. Aqui mesmo. Como preparação do outro.

46. Novamente a imagem da água, como força sensual, retorna vestida de novos significantes (“Quando a sede e o desejo em nós palpita”). Vale voltar às sinestesias metonímicas vistas acima, onde o verbo “beber” se enriquece de significados compostos por associações. Aqui, finalmente, aparece claro o motivo deste “beber” — quer sejam aromas ou suspiros: a “sede” — pulsão sinestésica.

47. Se Thanatos triunfa sobre o espírito romântico, em Castro Alves, o calor de Eros constrói a imortalidade — ausência e objeto — presente no símbolo mulher.

48. Concluindo, vimos que o romantismo, enquanto movimento literário e conjunto de atitudes e idéias que emprestam uma feição particular ao século XIX, é fortemente marcado pelo triunfo da morte sobre o amor, ou, tomando como símbolos destas duas forças polares os deuses da mitologia clássica, o triunfo de Thanatos sobre Eros.

49. Embora os romances e poemas sentimentais e amorosos constituam a parte mais conhecida e admirada da produção romântica, é um equívoco supor o homem romântico como um cavaleiro do amor. Ele é, na verdade, o cavaleiro da morte. O amor é apenas uma peripécia a distrair a pulsão de morte que seduz e dirige o romantismo. A moral do cristianismo, na sua versão mais perversa, que domina o século XIX, propõe um amor inatingível, incorpóreo, onde o prazer é o objeto do pecado. A contemplação, a espera e a imobilidade resignada são os valores supremos desta moral e as marcas do herói romântico.

50. Poucos escritores fugiram a este lugar-comum, onde a ânsia de amar substituía a vida amorosa. Castro Alves foi um poeta que deslocou radicalmente este modo de vida, ou este modo de morte tão em moda. Daí a atenção que é dada à sua vida aventurosa e à seqüência de episódios donjuanescos que ilustram suas peripécias pela velha cidade da Bahia ou pela noite paulista. O homem Castro Alves destoa do protótipo do poeta romântico. Os cantores suspirantes do século passado aceitavam como ideal supremo ser dobrados pelo sofrimento e padecer com orgulho e masoquismo o calvário do mal-do-século. Contrariamente, este singular poeta, deslocado da perversa tradição do seu tempo, tornou-se cantor e cultor do prazer e da vida.
 



1. MANNHEIM, Karl. Essays on sociology and social psychology. 2a. ed. London, Routledge, 1959; apud BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2a. ed. São Paulo, Cultrix, 1974, p. 100.
2. FENICHEL, Otto. Os mecanismos de defesa. In —: Teoria psicanalítica das neuroses (The psychoanalitic theory of neurosis); trad. Samuel Penna Reis, rev. técnica de Ricardo Gomes. Rio de Janeiro, Atheneu, 1981. p. 136-137.
3. CAPINAN, José Carlos. Compreensão de santo. In —: Inquisitorial; poemas. Salvador, s. ed., 1966. s. n. p.
4. LEITE, Dante Moreira. Lucíola: teoria romântica do amor. In —: O amor romântico e outros temas. 2ª. ed. ampliada. São Paulo, Nacional, 1979. p. 58.
5. SALLES, David. Castro Alves e a lírica amorosa romântica. In —: Do ideal às ilusões. Alguns temas da evolução do romantismo brasileiro. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira; Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980, p. 38-51.
6. AZEVEDO, Álvares de. Carta. Apud BANDEIRA, Manuel: Apresentação da poesia brasileira. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1967. p. 67.
7. Idem, ibidem, p. 65.
8. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2a. ed. São Paulo, Cultrix, 1974, p. 132-133.
9. PLATÃO, Banquete [Symposion]; trad. direta do grego por Jorge Paleikat. In —: Diálogos, Vol. I. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s. d., p. 160.
10. PLATÃO, Banquete [Symposion]; trad. direta do grego por Jorge Paleikat. In —: Diálogos, Vol. I. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s. d., p. 170.
11. SEIXAS, Cid. Espelho Côncavo. In —: Fonte das pedras; poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979. p. 94.
12. PLATÃO. Banquete [Symposion]; trad. direta do grego por Jorge Paleikat. In —: Diálogos, Vol. I. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s. d., p. 167.
13. LACAN, Jacques. Escritos [Ecrits], trad. Inês Oseki-Depré. São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 98.
14. SEIXAS, Cid. Espelho Côncavo. In —: Fonte das pedras; poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 94.
 

Índice do autor

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

Voltar para o índice

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)