Ciça Guirado
Sophia de Mello Breyner:
"A
nossa é a língua que tem mais melodia
entre todas, as vogais sobem e descem"
17.07.1999
Sophia de Mello
Breyner, uma "antena atenta" nas coisas da poesia e do mar.
Ganhadora do Prêmio Camões deste ano, apaixonada pelo Brasil e por
sua literatura, à qual está ligada por meio da poesia de Manuel
Bandeira, Jorge de Lima e João Cabral, a poetisa portuguesa tenta,
em seu fazer poético, resgatar o sagrado da existência "em palavras
silabadas, unidas uma a uma"
Poucos meses antes de
completar 80 anos, a ficcionista e poetisa portuguesa Sophia de
Mello Breyner Andresen recebeu o Prêmio Camões, a maior distinção
atribuída a escritores da língua portuguesa. Escritora integral,
Sophia, em sua obra poética, para além dos seus livros de ficção e
de literatura infantil, busca a plenitude de cada momento e tenta
resgatar o sagrado da existência em "palavras silabadas, unidas uma
a uma".
Porque convém ao real
ser divino, Sophia recolhe-o em taças e o transubstancia para o
corpo do poema. Nas suas mãos dá-se a dança das palavras. Em sua
"ânsia carregada de impossível" ergue mais alto o braço para apanhar
os deuses gregos. Herdeira de Homero, canta rapsódias como "convites
suspensos na surpresa dos instantes" propensos à dança do real.
"Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Em que do bem, às vezes nasce o mal. (...)"
("Tudo", Poesia)
Para dizer Sophia, o
melhor é deixar que os seus versos versejem à prensa, mas nunca à
pressa. Ler Sophia é exercício de reflexão entre o azul do Tejo -
visto da janela - e a branquidão embaçada da cidade nas manhãs
chuvosas de primavera. E do meio do nevoeiro, contrariando o mito
sebastianista, surge Sophia e conta a cidade :
"(...) Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto e insônia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria
ausência. (...)"
("Lisboa", Navegações)
Tudo é questionado
pela poetisa, que coloca em causa até sua única certeza: a de ser
fazedora/feiticeira de poiésis. Pede ao Senhor que seu ofício seja
verdadeiro e não apenas um caminho de vaidade:
"(...)
Se me enganei na minha única certeza,
Mandai aos vossos anjos rasgar
Em pedaços o meu ser
E que eu vá abandonada
Pelos caminhos a sofrer.
("Senhor", Poesia)
Ao fundo, estará
sempre o mar, Sophia é a menina que nele brinca, com sabedoria, como
é próprio de seu nome. Como criança que domina e detém o mundo, ela
faz o tempo parar para captá-lo em seu colo, niná-lo ao som da lira
e devolvê-lo aos homens em forma de verso. Após um longo mergulho
descreve o que vê:
"No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso."
("Fundo do Mar", Obra Poética, Vol. I)
Mas a certeza poética
parece dizer-lhe que só a eternidade pode recuperar algo de heróico
ou de divino nessa nossa trágica passagem pelo planeta. O agon
poético direciona-se sempre para a Grécia, para onde Sophia deverá
partir em agosto:
"(...)
E eu tenho que partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser."
("Há cidades acesas", Obra Poética, Vol. I)
Em seu exercício de
jardinagem poética, compõe um universo tanscendente, fruto da
dispersão na cotidianicidade, tecido sobre o qual se reflete "no
interior das coisas", mas o falibilismo da linguagem - "Onde tudo
nos mente e nos separa" - impõe secretas leis, avessas ao desejo da
poesia:
"Numa disciplina constante procuro a lei da
liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos.
Mas as coisas têm máscaras e véus com que
me enganam, e, quando em um momento espantada
me esqueço, a força perversa das coisas
ata-me os braços e atira-me, prisioneira de
ninguém mas só de laços, para o vazio horror
das voltas do caminho."
("Numa Disciplina", Coral)
Caminho que Sophia
desmancha à noite, feito Penélope corrigindo o destino de Ulisses,
como feiticeira à espera de inspiração para engendrar magias,
semelhante a um guru zen, que sabe que quando algo se afasta algo se
aproxima:
"Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo."
("Penélope", Obra Poética, Vol. I)
Menina do mar feita em
senhora. Senhora feita de rocha poética, que segue "imóvel muda
atenta como antena", sobrevivendo tal qual leve ave marítima,
"(...)
Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento
Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo."
("Procelária", Obra Poética, vol. III)
Da poesia, vamos
viajar para a vida, o cotidiano, na varanda de Sophia, com um
interlúdio poético:
"Atenta antena
Athena
De olhos de coruja
Na obscura noite lúcida
("Vieria da Silva", Musa)
Na soleira da janela
da varanda, que dá para o jardim, tendo o Tejo ao fundo, deixam-se
desbotar as capas de Dante, Novalis e Vieria da Silva (artista
plástica e amiga da poetisa). É final de tarde de domingo. Domingo
azulinho e cheio de luz, como os olhos de Sophia a contracenar com o
rio. Sete horas. Bate o sino da Igreja da Graça. Ela traz uma
bandeja com chá e bolo:
"Pena não ser um quindim, aquele bolo maravilhoso que vocês têm no
Brasil!", desculpa-se risonha.
Apaixonada pelo
Brasil, foi amiga de Manuel Bandeira e teve o primeiro contato com a
literatura brasileira por meio da poesia de Jorge de Lima, cujo
livro Invenção de Orfeu vai buscar no escritório para exibir a
dedicatória do autor, no Natal de 1952: "Li muito devagar, era
jovem, quando acabei de ler ele tinha morrido. Foi um desencontro."
Desde então
interessou-se pela poesia do Brasil e, muito especialmente, por João
Cabral de Melo Neto, que faz referência aos versos da poetisa
portuguesa em Navegações no Auto do Frade, na voz de Frei Caneca:
"Sob o sol inabitável/que dirá Sophia um dia." E, apesar de ter
perdido o contato com o amigo brasileiro espera revê-lo em sua
próxima viagem ao Brasil:
"Onde será que ele
está a viver agora? A minha filha Maria (Sousa Tavares) escreveu uma
tese sobre três poetas: um americano, o João Cabral e um francês...
Não me lembro o nome dos outros. Uma coisa horrível da idade é que a
gente perde a memória das coisas que sabe melhor", brinca, com jeito
de menina marota.
Da primeira praia
Sophia não se esquece. Foi nela que descobriu sua relação com a
Grécia. "Ela é o verão para mim. É uma praia portuguesa, onde eu via
estátuas gregas nos rochedos, mas estragou-se não se sabe bem por
que... Penso que foram as obras que fizeram naquela costa depois do
25 de Abril. Os rochedos antigos desapareceram, ficaram debaixo
d'água. Os rochedos novos não têm búzios, conchas, não têm nada...",
divaga a poetisa enquanto acende um cigarro italiano muito fino
("Estes fazem-me menos mal, sabe?").
Talvez venha da cor
dos olhos a sensação de pertencer ao mar desde sempre. Poeticamente,
ensinou aos filhos (Maria, Isabel, Miguel, Sophia e Xavier) a
nadarem de olhos abertos. "Primeiro por causa dos rochedos e depois
porque é lindo! Tem gente que nem gosta de tomar banho de mar. Não
percebo. Onde é que essa gente vai buscar vitalidade?"
Sophia tem um ritual
para entrar nas águas oceânicas. Apreendeu-o de uma lenda e repete-o
sempre na bela praia de Igrina, ao pé de Lagos, no Algarve: "Logo
que chego à praia lavo a cara três vezes e depois bebo um pouco de
água", faz o gesto com as mãos em concha.
O amigo César Monteiro
dedicou-lhe um curta metragem, há cerca de 30 anos, cuja cópia pode
ser vista na Cinemateca de Lisboa. O argumento não podia ser outro à
regra: é sobre Sophia e a sua relação com o mar.
Dentro de alguns meses
a poetisa estará lançando Histórias e Memórias e, em seguida, será a
vez de uma peça de teatro, ainda sem nome. Enquanto isso, segue seu
ritmo de ir para para a cama muito tarde, hábito adquirido por
necessidade de mãe, que, educando cinco filhos, não tinha tempo para
escrever antes que a casa estivesse em calmaria. "Custa-me imenso
deitar-me cedo". Acorda geralmente às oito horas. Espreita o dia
pela janela. Se houver luz haverá criação poética. Toma o
pequeno-almoço na cama. Lê. Volta a adormecer. Depois vai à varanda
beber café e olhar o rio. Mais tarde, ainda na varanda ou no
escritório, dará início à sua arte.
"Quando está uma luz
triste fico deprimida. Há coisas muito tristes. Antes chegava até
aqui muita maresia. Hoje não sei onde foram parar os cheiros!",
reclama.
Indignada mesmo ela
ficou com a guerra do Kosovo, que acompanhou todos os dias pelos
jornais: "Foi a guerra mais feia do mundo. Só pode ser comparada à
guerra do Ópio. Há um pecado organizado...". Sophia garante que não
pensa mais, apenas cisma, porque - para ela - cismar é mais, é
pensar de uma maneira especial. Daí cisma: "É muito esquisito que o
mundo, com tanta maldade, seja criado por Deus, mas é mais esquisito
ainda que não seja."
Domingo alvissareiro,
houve luz e houve o entardecer tardio neste verão europeu em
Portugal. Sophia estava feliz. Falou do Prêmio Camões, láurea
recebida dias antes, como uma grande prenda. "No dia em que soube
houve tanta festa, tantos parabéns, que parecia um dia de anos
quando eu era miúda. Fiquei tocada pelos depoimentos do Mia Couto e
do José Craveirinha." Para Sophia, o Prêmio Camões é mais importante
que o Nobel, porque é específico da língua portuguesa. "A nossa, é a
língua que tem mais melodia entre todas, as vogais sobem e
descem..."
A partir do próximo
ano os países lusófonos da África também estarão concorrendo ao
Prêmio Camões. Sophia está muito satisfeita com esta decisão.
Aconselha a todos os brasileiros a lerem mais poesia, não só a
brasileira, mas também a portuguesa e a africana. Logo logo ela irá
ao Brasil, quer fugir do inverno e pergunta, com curiosidade
adolescente, sobre a localização de uma bela praia. Irá, com
certeza, tomar banhos de vitalidade, estirar-se na areia, e escrever
muitos poemas, seu ofício.
Ciça Guirado é jornalista (UEL-PR), mestre em
Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutoranda em Estudos Portugueses
na Universidade Nova de Lisboa, onde desenvolve a tese Relatos do
Descobrimento do Brasil: as primeiras reportagens
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