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Ciça Guirado 

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Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Ciça Guirado


 

  Sophia de Mello Breyner:
"A nossa é a língua que tem mais melodia
entre todas, as vogais sobem e descem"


 

Jornal da Tarde
17.07.1999

 

Sophia de Mello Breyner, uma "antena atenta" nas coisas da poesia e do mar. Ganhadora do Prêmio Camões deste ano, apaixonada pelo Brasil e por sua literatura, à qual está ligada por meio da poesia de Manuel Bandeira, Jorge de Lima e João Cabral, a poetisa portuguesa tenta, em seu fazer poético, resgatar o sagrado da existência "em palavras silabadas, unidas uma a uma"
 

Poucos meses antes de completar 80 anos, a ficcionista e poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen recebeu o Prêmio Camões, a maior distinção atribuída a escritores da língua portuguesa. Escritora integral, Sophia, em sua obra poética, para além dos seus livros de ficção e de literatura infantil, busca a plenitude de cada momento e tenta resgatar o sagrado da existência em "palavras silabadas, unidas uma a uma".
 

Porque convém ao real ser divino, Sophia recolhe-o em taças e o transubstancia para o corpo do poema. Nas suas mãos dá-se a dança das palavras. Em sua "ânsia carregada de impossível" ergue mais alto o braço para apanhar os deuses gregos. Herdeira de Homero, canta rapsódias como "convites suspensos na surpresa dos instantes" propensos à dança do real.


"Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Em que do bem, às vezes nasce o mal. (...)"

("Tudo", Poesia)

 

Para dizer Sophia, o melhor é deixar que os seus versos versejem à prensa, mas nunca à pressa. Ler Sophia é exercício de reflexão entre o azul do Tejo - visto da janela - e a branquidão embaçada da cidade nas manhãs chuvosas de primavera. E do meio do nevoeiro, contrariando o mito sebastianista, surge Sophia e conta a cidade :


"(...) Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto e insônia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria
ausência. (...)"

("Lisboa", Navegações)

 

Tudo é questionado pela poetisa, que coloca em causa até sua única certeza: a de ser fazedora/feiticeira de poiésis. Pede ao Senhor que seu ofício seja verdadeiro e não apenas um caminho de vaidade:


"(...)
Se me enganei na minha única certeza,
Mandai aos vossos anjos rasgar
Em pedaços o meu ser
E que eu vá abandonada
Pelos caminhos a sofrer.

("Senhor", Poesia)

 

Ao fundo, estará sempre o mar, Sophia é a menina que nele brinca, com sabedoria, como é próprio de seu nome. Como criança que domina e detém o mundo, ela faz o tempo parar para captá-lo em seu colo, niná-lo ao som da lira e devolvê-lo aos homens em forma de verso. Após um longo mergulho descreve o que vê:


"No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso."

("Fundo do Mar", Obra Poética, Vol. I)

 

Mas a certeza poética parece dizer-lhe que só a eternidade pode recuperar algo de heróico ou de divino nessa nossa trágica passagem pelo planeta. O agon poético direciona-se sempre para a Grécia, para onde Sophia deverá partir em agosto:


"(...)
E eu tenho que partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser."

("Há cidades acesas", Obra Poética, Vol. I)

 

Em seu exercício de jardinagem poética, compõe um universo tanscendente, fruto da dispersão na cotidianicidade, tecido sobre o qual se reflete "no interior das coisas", mas o falibilismo da linguagem - "Onde tudo nos mente e nos separa" - impõe secretas leis, avessas ao desejo da poesia:


"Numa disciplina constante procuro a lei da
liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos.
Mas as coisas têm máscaras e véus com que
me enganam, e, quando em um momento espantada
me esqueço, a força perversa das coisas
ata-me os braços e atira-me, prisioneira de
ninguém mas só de laços, para o vazio horror
das voltas do caminho."

("Numa Disciplina", Coral)

 

Caminho que Sophia desmancha à noite, feito Penélope corrigindo o destino de Ulisses, como feiticeira à espera de inspiração para engendrar magias, semelhante a um guru zen, que sabe que quando algo se afasta algo se aproxima:


"Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo."

("Penélope", Obra Poética, Vol. I)

 

Menina do mar feita em senhora. Senhora feita de rocha poética, que segue "imóvel muda atenta como antena", sobrevivendo tal qual leve ave marítima,


"(...)
Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento
Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo."

("Procelária", Obra Poética, vol. III)

 

Da poesia, vamos viajar para a vida, o cotidiano, na varanda de Sophia, com um interlúdio poético:


"Atenta antena
Athena
De olhos de coruja
Na obscura noite lúcida

("Vieria da Silva", Musa)

 

Na soleira da janela da varanda, que dá para o jardim, tendo o Tejo ao fundo, deixam-se desbotar as capas de Dante, Novalis e Vieria da Silva (artista plástica e amiga da poetisa). É final de tarde de domingo. Domingo azulinho e cheio de luz, como os olhos de Sophia a contracenar com o rio. Sete horas. Bate o sino da Igreja da Graça. Ela traz uma bandeja com chá e bolo:

"Pena não ser um quindim, aquele bolo maravilhoso que vocês têm no Brasil!", desculpa-se risonha.
 

Apaixonada pelo Brasil, foi amiga de Manuel Bandeira e teve o primeiro contato com a literatura brasileira por meio da poesia de Jorge de Lima, cujo livro Invenção de Orfeu vai buscar no escritório para exibir a dedicatória do autor, no Natal de 1952: "Li muito devagar, era jovem, quando acabei de ler ele tinha morrido. Foi um desencontro."
 

Desde então interessou-se pela poesia do Brasil e, muito especialmente, por João Cabral de Melo Neto, que faz referência aos versos da poetisa portuguesa em Navegações no Auto do Frade, na voz de Frei Caneca: "Sob o sol inabitável/que dirá Sophia um dia." E, apesar de ter perdido o contato com o amigo brasileiro espera revê-lo em sua próxima viagem ao Brasil:
 

"Onde será que ele está a viver agora? A minha filha Maria (Sousa Tavares) escreveu uma tese sobre três poetas: um americano, o João Cabral e um francês... Não me lembro o nome dos outros. Uma coisa horrível da idade é que a gente perde a memória das coisas que sabe melhor", brinca, com jeito de menina marota.
 

Da primeira praia Sophia não se esquece. Foi nela que descobriu sua relação com a Grécia. "Ela é o verão para mim. É uma praia portuguesa, onde eu via estátuas gregas nos rochedos, mas estragou-se não se sabe bem por que... Penso que foram as obras que fizeram naquela costa depois do 25 de Abril. Os rochedos antigos desapareceram, ficaram debaixo d'água. Os rochedos novos não têm búzios, conchas, não têm nada...", divaga a poetisa enquanto acende um cigarro italiano muito fino ("Estes fazem-me menos mal, sabe?").
 

Talvez venha da cor dos olhos a sensação de pertencer ao mar desde sempre. Poeticamente, ensinou aos filhos (Maria, Isabel, Miguel, Sophia e Xavier) a nadarem de olhos abertos. "Primeiro por causa dos rochedos e depois porque é lindo! Tem gente que nem gosta de tomar banho de mar. Não percebo. Onde é que essa gente vai buscar vitalidade?"
 

Sophia tem um ritual para entrar nas águas oceânicas. Apreendeu-o de uma lenda e repete-o sempre na bela praia de Igrina, ao pé de Lagos, no Algarve: "Logo que chego à praia lavo a cara três vezes e depois bebo um pouco de água", faz o gesto com as mãos em concha.
 

O amigo César Monteiro dedicou-lhe um curta metragem, há cerca de 30 anos, cuja cópia pode ser vista na Cinemateca de Lisboa. O argumento não podia ser outro à regra: é sobre Sophia e a sua relação com o mar.
 

Dentro de alguns meses a poetisa estará lançando Histórias e Memórias e, em seguida, será a vez de uma peça de teatro, ainda sem nome. Enquanto isso, segue seu ritmo de ir para para a cama muito tarde, hábito adquirido por necessidade de mãe, que, educando cinco filhos, não tinha tempo para escrever antes que a casa estivesse em calmaria. "Custa-me imenso deitar-me cedo". Acorda geralmente às oito horas. Espreita o dia pela janela. Se houver luz haverá criação poética. Toma o pequeno-almoço na cama. Lê. Volta a adormecer. Depois vai à varanda beber café e olhar o rio. Mais tarde, ainda na varanda ou no escritório, dará início à sua arte.
 

"Quando está uma luz triste fico deprimida. Há coisas muito tristes. Antes chegava até aqui muita maresia. Hoje não sei onde foram parar os cheiros!", reclama.
 

Indignada mesmo ela ficou com a guerra do Kosovo, que acompanhou todos os dias pelos jornais: "Foi a guerra mais feia do mundo. Só pode ser comparada à guerra do Ópio. Há um pecado organizado...". Sophia garante que não pensa mais, apenas cisma, porque - para ela - cismar é mais, é pensar de uma maneira especial. Daí cisma: "É muito esquisito que o mundo, com tanta maldade, seja criado por Deus, mas é mais esquisito ainda que não seja."
 

Domingo alvissareiro, houve luz e houve o entardecer tardio neste verão europeu em Portugal. Sophia estava feliz. Falou do Prêmio Camões, láurea recebida dias antes, como uma grande prenda. "No dia em que soube houve tanta festa, tantos parabéns, que parecia um dia de anos quando eu era miúda. Fiquei tocada pelos depoimentos do Mia Couto e do José Craveirinha." Para Sophia, o Prêmio Camões é mais importante que o Nobel, porque é específico da língua portuguesa. "A nossa, é a língua que tem mais melodia entre todas, as vogais sobem e descem..."
 

A partir do próximo ano os países lusófonos da África também estarão concorrendo ao Prêmio Camões. Sophia está muito satisfeita com esta decisão. Aconselha a todos os brasileiros a lerem mais poesia, não só a brasileira, mas também a portuguesa e a africana. Logo logo ela irá ao Brasil, quer fugir do inverno e pergunta, com curiosidade adolescente, sobre a localização de uma bela praia. Irá, com certeza, tomar banhos de vitalidade, estirar-se na areia, e escrever muitos poemas, seu ofício.


Ciça Guirado é jornalista (UEL-PR), mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutoranda em Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa, onde desenvolve a tese Relatos do Descobrimento do Brasil: as primeiras reportagens


 

Sophia de Mello Breyner Andresen

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23.11.2004