Cristiano Moreira
O corpo ainda quase não. O vento de
Palermo sopra na direção da. Ou, o romance, a novela que não inicia,
que permanece suspensa por uma sucessão de prólogos (coisa de
Macedonio Fernández). O gesto que prende a arte pelo meio, que
promove uma cena cotidiana onde (quase) (nada) acontece a palavra,
aí assim, meio que de um tempo parado, o relato, o verso passa e
fixa-se na página; a frase ancora seu casco e o texto baloiça
esperando tripulante. “O homem neste momento/ rompe o deserto que
chama de mar/...depois de léguas percorridas/ resta um rastro de
memória/ um acontecimento”.
Como em uma onda já está movimento, o
acontecimento é fixado em um quadrante, em um retrato, em um poema,
quebra na página. Há um filósofo moderno que dizia de sua filosofia
um acontecimento semelhante ao dos esportes que se iniciam pelo
meio, como surfe, o voo ou a canoagem. Os fluxos já em andamento,
sem necessidade de ponto final, tampouco de cena pronta, acabada.
Algo como acontece naquele texto de Clarice Lispector em que
encontramos GH já procurando algo, “––––estou procurando, estou
procurando.”. Poemas, narrativas muitas são cenas em movimento cuja
partida ignoramos. Que importa?
O corpo é um acontecimento. Um corpo
em movimento é, portanto, uma miríade de acontecimentos possíveis,
pois haverão os choques materiais e imateriais; experiência e
memória. Mas, ainda assim (estamos cá falando de literatura) como
escreveu Alain Robbe-Grillet a respeito de Raymond Roussel, “para
além do que [ele] descreve, não há nada, nada do que é hábito
chamar-se uma mensagem”; assim um acontecimento não necessita
carregar em seu porão, uma mensagem, pois o poeta poderá dizer “os
meus dedos marionetes se esforçam, muito, mas não conseguem dizer
nada; gaguejam, gaguejam, gaguejam. É a gagueira que escuto. E no
calor deste acontecimento aqui, ou de outro, eu [por mera distração]
me divirto com o vento gelado que bate na sola dos pés.” O aqui é a
pluralidade ou a disseminação do lugar. A possibilidade de gaguejar
a escrita ao invés da fala, é a escrita a própria topologia, nela as
coordenadas para encontrar o barco no imenso oceano.
Sei, ainda não fiz referência aos
textos citados. Talvez não o faça, pois o que importa aqui é o
acontecimento, não quem (mas o quê) o produziu, pois é na linguagem
que os encontramos, assim como os acidentes que possivelmente
acontecerão, quando. Não choraremos, pois, se não soubermos a mão
que traçou esta rota de acidentes. Ao ler o livro que contém estes
poemas saberemos que “o homem seca o suor do rosto/ no braço/
futrica uma das feridas/ assoa o nariz/ olha ao seu redor/ não
encontra nada// o tablado do homem parece um/ deserto/ tudo é árido,
inóspito,/ ermo, desabitado/ amnésico.” Gago, esquecido de si mesmo
como um homem há dias nomar à deriva, com escorbuto, torpe.
Esquecido como Molloy de Samuel Beckett, como o narrador de A rainha
dos cárceres da Grécia de Osman Lins. Ainda assim não teremos acesso
ao homem que escreve, ao sujeito. Temos, pois, o acontecimento da
mimesis não como representação, imitação, ilustração, mas como
produtora de acontecimentos. Não, não disse de quem são os poemas.
Não direi. Não aqui.
O livro é composto por 10 atos,
numerados de zero (abre) a 10 (fecha). São sequências cotidianas,
como as do diretor Abbas Kiarostami. As sequências são circundadas
por outras em um emaranhado de cenas que compõem uma espécie de teia
ou uma navegação de cabotagem. Com uma agulha (da bússola) de crochê
pode-se puxá-la em qualquer ponto. Também pode ser ouvido (não
olvidado) o livro como um pequeno concerto nem barroco, nem carioca,
mas um concerto ilhéu. Não da Ilha da Madeira, mas da Ilha da
Memória (Waly Salomão foi quem escreveu que a memória é uma ilha de
edição). Pois que em uma ilha muitas coisas acontecem sem serem
vistas, não quer dizer que não aconteçam, sabemos disso. Mas é isso
uma escritura “ou alguma desmedida de felicidade”; uma tentativa vã
de fixar o barco, mas a corrente o leva, não se encontra o ponto
final, a epígrafe está entre reticências, tudo pelo meio, a vida
assim, pelo meio, uma cesura, um sulco. Mas é isso um
acontecimento...
Pós escrito (ora direis, ouvi o nome)
– Depois de Borboletas e abacates (Argos, 2000), e defender uma
dissertação de mestrado em Teoria da Literatura na UFSC sobre O Tom
de Tom Zé, o músico (Banda Repolho), cineasta, professor e poeta
Demétrio Panarotto acaba de publicar Mas é isso, um acontecimento
(editora da casa, 2009). Todas as citações que não estão nominadas
no texto foram retiradas do livro mencionado para ajudar a compor
este outro happening.
* Autor de Rebojo (Bernúncia, 2005), mestrando em Teoria da
Literatura na UFSC
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