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Demétrio Panarotto

 

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Ainda menos que. Nada de fato há, ainda...

Comentários poéticos a propósito de um livro que é assim, um acontecimento

 

 

O corpo ainda quase não. O vento de Palermo sopra na direção da. Ou, o romance, a novela que não inicia, que permanece suspensa por uma sucessão de prólogos (coisa de Macedonio Fernández). O gesto que prende a arte pelo meio, que promove uma cena cotidiana onde (quase) (nada) acontece a palavra, aí assim, meio que de um tempo parado, o relato, o verso passa e fixa-se na página; a frase ancora seu casco e o texto baloiça esperando tripulante. “O homem neste momento/ rompe o deserto que chama de mar/...depois de léguas percorridas/ resta um rastro de memória/ um acontecimento”.

Como em uma onda já está movimento, o acontecimento é fixado em um quadrante, em um retrato, em um poema, quebra na página. Há um filósofo moderno que dizia de sua filosofia um acontecimento semelhante ao dos esportes que se iniciam pelo meio, como surfe, o voo ou a canoagem. Os fluxos já em andamento, sem necessidade de ponto final, tampouco de cena pronta, acabada. Algo como acontece naquele texto de Clarice Lispector em que encontramos GH já procurando algo, “––––estou procurando, estou procurando.”. Poemas, narrativas muitas são cenas em movimento cuja partida ignoramos. Que importa?

O corpo é um acontecimento. Um corpo em movimento é, portanto, uma miríade de acontecimentos possíveis, pois haverão os choques materiais e imateriais; experiência e memória. Mas, ainda assim (estamos cá falando de literatura) como escreveu Alain Robbe-Grillet a respeito de Raymond Roussel, “para além do que [ele] descreve, não há nada, nada do que é hábito chamar-se uma mensagem”; assim um acontecimento não necessita carregar em seu porão, uma mensagem, pois o poeta poderá dizer “os meus dedos marionetes se esforçam, muito, mas não conseguem dizer nada; gaguejam, gaguejam, gaguejam. É a gagueira que escuto. E no calor deste acontecimento aqui, ou de outro, eu [por mera distração] me divirto com o vento gelado que bate na sola dos pés.” O aqui é a pluralidade ou a disseminação do lugar. A possibilidade de gaguejar a escrita ao invés da fala, é a escrita a própria topologia, nela as coordenadas para encontrar o barco no imenso oceano.

Sei, ainda não fiz referência aos textos citados. Talvez não o faça, pois o que importa aqui é o acontecimento, não quem (mas o quê) o produziu, pois é na linguagem que os encontramos, assim como os acidentes que possivelmente acontecerão, quando. Não choraremos, pois, se não soubermos a mão que traçou esta rota de acidentes. Ao ler o livro que contém estes poemas saberemos que “o homem seca o suor do rosto/ no braço/ futrica uma das feridas/ assoa o nariz/ olha ao seu redor/ não encontra nada// o tablado do homem parece um/ deserto/ tudo é árido, inóspito,/ ermo, desabitado/ amnésico.” Gago, esquecido de si mesmo como um homem há dias nomar à deriva, com escorbuto, torpe. Esquecido como Molloy de Samuel Beckett, como o narrador de A rainha dos cárceres da Grécia de Osman Lins. Ainda assim não teremos acesso ao homem que escreve, ao sujeito. Temos, pois, o acontecimento da mimesis não como representação, imitação, ilustração, mas como produtora de acontecimentos. Não, não disse de quem são os poemas. Não direi. Não aqui.

O livro é composto por 10 atos, numerados de zero (abre) a 10 (fecha). São sequências cotidianas, como as do diretor Abbas Kiarostami. As sequências são circundadas por outras em um emaranhado de cenas que compõem uma espécie de teia ou uma navegação de cabotagem. Com uma agulha (da bússola) de crochê pode-se puxá-la em qualquer ponto. Também pode ser ouvido (não olvidado) o livro como um pequeno concerto nem barroco, nem carioca, mas um concerto ilhéu. Não da Ilha da Madeira, mas da Ilha da Memória (Waly Salomão foi quem escreveu que a memória é uma ilha de edição). Pois que em uma ilha muitas coisas acontecem sem serem vistas, não quer dizer que não aconteçam, sabemos disso. Mas é isso uma escritura “ou alguma desmedida de felicidade”; uma tentativa vã de fixar o barco, mas a corrente o leva, não se encontra o ponto final, a epígrafe está entre reticências, tudo pelo meio, a vida assim, pelo meio, uma cesura, um sulco. Mas é isso um acontecimento...

Pós escrito (ora direis, ouvi o nome) – Depois de Borboletas e abacates (Argos, 2000), e defender uma dissertação de mestrado em Teoria da Literatura na UFSC sobre O Tom de Tom Zé, o músico (Banda Repolho), cineasta, professor e poeta Demétrio Panarotto acaba de publicar Mas é isso, um acontecimento (editora da casa, 2009). Todas as citações que não estão nominadas no texto foram retiradas do livro mencionado para ajudar a compor este outro happening.
 



* Autor de Rebojo (Bernúncia, 2005), mestrando em Teoria da Literatura na UFSC
 

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Demétrio Paranotto


 

Um

 

A caixinha de música toca Chopin

e a imagem que gira é a de

um homem do campo

[rude] de mangas arregaçadas

chapéu de palha velho

vento sol e pés no chão

 

pleno de feridas

[uma grande entre os dedos

menores do pé esquerdo]

uma enxada na mão

 

— ao fundo Chopin —

 

O homem seca o suor do rosto

no braço

futrica uma das feridas

assoa o nariz

olha a seu redor

não encontra nada

 

o tablado do homem parece um

deserto

tudo é árido, inóspito,

ermo, desabitado

amnésico

 

A enxada não adere

e ressoa

cria uma duas três porosidades

produz barulho, ensurdece

destrambelha o ruído do mundo

 

E Chopin ao fundo, menos, mas

ao fundo, ainda

 

o homem deixa de capinar

senta, confere a comida:

arroz virado de feijão moranga cozida

um pouco de carne e molho

e

pinga com limão espremido

 

Chopin agora

aparece mais irritado,

não se (re)conforta

sua irritação reverbera

as enxadadas no tablado seguem:

pancadas leves

pancadas bruscas

pancadas sonoras

pancadas embrutecidas

 

agora também o homem se revigora

bate com força

sua

encharca o corpo

goteja e as veias se enchem de vida 

saltam das pernas

dos braços do pescoço

 

A lâmina da enxada carcomida

cheia de dentes

o chão sulcado

as mãos, os calos

os pés vazios

 

E Chopin, agora?

sumiu entre

a música não faz mais sentido

o barulho parece mais forte

são as pancadas, é o mundo

ou uma sabotagem

 

O homem larga a enxada, 

dança um ritmo desengonçado

salsa rumba tango valsa

tcha tcha tcha um fox trot saliente

 

tudo tanto faz

 

feliz [como se fosse da vida]

com o silêncio

triste [como se fosse em pedaços]

e grita efusivo

e dança à exaustão

até estatelar sem forças

no solo

 

Chopin o tablado o homem

tudo não passa de um quase

antes que qualquer

[outra] coisa quase:

um acontecimento

 

sobram dois copos de leite

e uma sonata de outono

 
   

 

 

 

Quatro

 

 

Aparece alguém

— que [não] foi convidado a nada,

nem pra festa alguma —

para acabar com qualquer brincadeira

e dizer que este texto tem dono

 

coloca nome e sobrenome

e avisa: isso não passa de um plágio

reconhecido em cartório

[patenteado / registrado]

 

Cá estou eu agora: como um homem impedido de plantar na própria terra. Lembra: alguém chega e me toma o registro. Com medo de parecer um fora-da-lei por plagiar o meu/teu próprio texto que agora é de outro. Tenho as mãos amarradas, tenho que sorrir para o carro que passa lotado de ninguém. Sem delongas nem rodeios retiro os pés dos sapatos e desenho um olho em cada dedão do meu pé. A cada hiena que passa e acena, retribuo de cá com alguma hipocrisia, balanço os dedos dos pés, brinco com eles, estas minhas marionetes. Os meus dedos-marionetes se esforçam, muito, mas não conseguem dizer nada; gaguejam, gaguejam, gaguejam. E é gagueira o que escuto. E no calor deste acontecimento aqui, ou de outro, eu [por mera distração] me divirto com o vento gelado que bate na sola dos pés.

 

 

 

 
   

 

 

 

Seis

 

Os urubus estão

morrendo no mundo

 

o poeta, à espreita,

no palanque, sustenta

as cercas que mantêm

os urubus confinados,

um a um

 

E as ovelhas?, alguém

pergunta —

voando, voando, voando

alguém responde

 

O guardador de rebanhos

[agora um criador de urubus]

está desolado com a situação

 

antes eram mais de vinte mil cabeças

hoje são apenas setecentos e cinqüenta

e três

[cinqüenta e duas, agora] uma acaba de

morrer

 

E o poeta, à espreita,

avança sobre as carcaças

não há carniça que diga

mas ele nunca desiste

a baba é tanta que pode errar o alvo

 

eis a cena: 

a-fina-nata-que-ferve-ao-sol-do-meio-dia-no-palanque-obliterado-da-insensatez

 

O poeta e os urubus se debatem:

uns pela vida, outros naquilo

que vem como agouro

 

Sabe-se que antes os urubus pareciam

gansos gordos e desengonçados,

                            um foie gras de fígado de urubu

aceita?

mas agora tudo se resume a bicos penas cristas e o poeta

 

poeta que fuma charutos no arame-farpado

que toma café e que conta piada de urubu

 

E o guardador de rebanhos

[agora um criador de urubus]

não sabe mais o que fazer

 

tentou de tudo para espantar o poeta:

pedra ruído espantalho

folha de papel laminado contra o sol

carro de som e spray de pimenta

 

Não teve jeito,

o diabo do poeta resiste

e a cada urubu morto

um poema no arame farpado

dilacerado desmilingüido

em frangalhos

 

O guardador, desgostoso,

assiste uma novela que se

repete todos os dias, a mesma

 

Enquanto isso

sem saber para onde corro,

no horizonte vertiginoso,

vejo sempre mais ovelhas

do que nuvens

 

 

 

   
     
Elizabeth Marinheiro

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