Carlos Augusto Viana
ca.viana@terra.com.br
09.10.2005*
Soares Feitosa: os caminhos da
escritura
As diferentes artes se especificam por sua
matéria, isto é, por aquele elemento sensível que
utilizam. A matéria da poesia é a linguagem. Desse modo,
o poético se inscreve no momento em que as palavras
realizam entre si inusitadas alianças, de que surgem as
imagens singulares. A poesia, o estado poético é o
motivo geral desta edição. Para tanto, percorremos o
universo literário de duas grandes expressões de nossa
literatura contemporânea: Jorge Tufic e Soares Feitosa.
Percorramos, pois, o universo de suas
criações.
Carlos
Augusto Viana
SOARES FEITOSA, Francisco José,
19.01.1944, Ipu, CE. Infância em Monsenhor Tabosa, CE. Filho único,
órfão de pai no mesmo dia em que nasceu; a mãe, professora e
parteira. Aos 17 anos, veio Fortaleza, em condições muito modestas.
Ingressou no jornalismo, ainda menor de idade, repórter no jornal
Gazeta de Notícias. Aposentou-se como Fiscal do Imposto de Renda (concursado),
depois de 35 anos de serviço. Trabalhou no Recife e em Salvador. Até
os 50 anos, não se envolveu com Literatura, nada tendo escrito até
então. Casado com
a mesma mulher há quase 60 anos, com quem tem cinco filhos. Toca um
escritório de advocacia tributária com larga atuação regional,
inclusive nos tribunais superiores, com uma desenvoltura que nem de
longe parece um velhote de quase de quase 80 anos. Publicou um único livro,
Psi, a Penúltima, em 1997, esgotado, com ampla repercussão à crítica
especializada. Mantém na Internet o Jornal de Poesia, imenso,
inesgotável, autêntica
Biblioteca de Alexandria,
milhares de poetas. (Atualizando os dados para 2022).
Diário do Nordeste: - Como se iniciou o seu contato,
assim mais contundente, com a literatura?
Soares Feitosa:
O prazer de ler? Ah, foi muito fácil: sete/oito anos, um
almanaque, propaganda de um fortificante de alto teor alcoólico, o Biotônico Fontoura. Era o Jeca Tatu, de Lobato. Dali em diante, me
danei a ler. Entendo que o ensino deveria começar pelo prazer das
histórias infantis, ouvir histórias, contar histórias, dramatizar
histórias. Despertado o gosto: «Agora, meu jovem, veja como é fácil,
eis a tua ferramenta, a escrita!». Afinal, a
escrita tem apenas uns cinco mil anos, mas o Homem conta histórias e
mais histórias há um milhão de anos ou muito mais, cinco milhões,
segundo os cálculos mais otimistas. Então, nestes termos, cinco mil
para milhões, a escrita “ainda” não existe! É verdade, a maioria
nada lê! Existe a linguagem, que sempre existiu, que nos fez humanos
a negociar com os deuses. Em vez do sacrifício da aprendizagem, o
grande prazer de desfrutar o conhecimento. Sim, antes do prazer de
ler, o prazer de recitar, de ouvir, de teatralizar, de dançar, de
pintar, de manufaturar as historinhas. A voz do Homem, em sua ampla
acepção: corpo/voz, corpo/linguagem. Uma revolução, distante, é
certo, que há de vir. Virá! Enquanto não vier, apenas o sofrimento
para decorar fonemas e regras de gramática. Você, que é professor,
meu caro poeta Carlos Augusto Viana, sabe o sofrimento de quem tem
que aprender por obrigação, degradação. Tanto pior: ensinar a quem
não tem o mínimo prazer em aprender.
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Soares Feitosa,
62, é o
idealizador do jornal eletrônico de poesia, além
de atuar na advocacia na área
tributária. Foto Diego Arruda, outubro 2005 |
Diário do Nordeste: - O que é o estado poético?
Soares Feitosa:
O estado poético é ver as coisas pelo lado noite. Pelo lado dia,
hão de ser vistos os problemas da sobrevivência, habitar, comer,
empregar; falar com os políticos, pagar contas, essas coisas. Ver
com os olhos da noite pressupõe uma dimensão não-racional, de
enlevo, acendimento e ascendimento. Mas não estou dizendo que
ninguém pode trabalhar à noite, nem poetar durante o dia. Desconfio
que os cegos, mas eu era apenas míope, sempre usei óculos, tenham,
os cegos, grande facilidade pela noite. Há, no estado poético, um
enxergar que não é dos olhos. O homem primitivo, antes de descobrir
o fogo, tinha a noite para o entretenimento e os medos do existir.
Veja, no nosso interior, naqueles tempos de uma escuridão bem
sertão, dizíamos: «Menino que mente de dia cria rabo». Ou seja, de
noite, pode; de dia, não; mentir. Parece que o poético passa pelo
lúdico, os medos, as fantasias, o sacerdotal e a esperança. “Ela vai
voltar”, dizemo-nos preferencialmente de noite; que nunca volta,
Ela; e quando volta, irreconhecíveis, ambos. É assim mesmo: de dia,
no escritório, você encontrará o advogado, sério e profissional, mas
de noite, ainda que de dia, este aqui, eu mesmo, um traquinas que
brinca, dança, corre, pinta e borda, ainda que sem sair do canto,
sem mexer um dedo, um único músculo.
Diário do Nordeste: - O que provocou a sua opção
definitiva pela literatura?
Soares Feitosa:
Talvez um excesso de astigmatismo, misturado com miopia, e sempre
me acostumei ao olhar intenso. A solidão do órfão, único entre as
mulheres, o filho, isto talvez me tenha levado a um grande interior.
Mas não ou um ermitão. Pelo contrário, gosto de conversar, de dar
grandes gargalhadas com os meus amigos. Contudo, prezo a viagem sem
sair do lugar. Só pelos livros. Muitos. Ainda hoje é assim, a
prevalência do interior. Tenho uma filha casada com um dinamarquês,
morando na Dinamarca há três anos. Ainda não fui lá. Mas vou. Dou-me
imensamente bem com a mais profunda solidão, ainda que 20, 30
pessoas ao derredor perguntando coisas e o telefone tocando adoidadamente, assim o meu escritório. Não; dinheiros, não! Uma
relação maldita quando as moedas nos tomam a frente. Mas gosto de
tê-las, sem pensar quantas, quando vou comprar livros. E o terror de
olhar as estantes, nas livrarias, à certeza de que não as lerei
todas.
Diário do nordeste: - O seu discurso poético
estabelece fronteiras tanto com o lírico, quanto com épico e o
dramático, discorrer sobre isso.
Soares Feitosa:
O lírico é condição essencial do poético, vide a lapidar frase do
Guevara: «Endurecer, se necessário, mas sem perder a ternura». No
único livro que até agora publiquei, Psi, a Penúltima, botei um
sub-título: «Heróica, telúrica e lírica». Mas não foi no sentido de
marcar fronteiras, posto que o ideal é tanger vida e morte, glória
e queda, desespero e esperança — todos à mesma estrofe, ao mesmo
verso, fio, arame bem retesado, tinindo, quebrando mas sem quebrar;
ou até quebrando, vlapt!, mas aparando na queda, quem sabe, uma
ressurreição. Haja talento! Chame o senhor Chico Pires, um cantador
nordestino nascido na Inglaterra; ou o Menino, tal como gosto de
nomeá-lo, Antônio Frederico Castro Alves. Por falar no Menino, este
monumento, A Cachoeira de Paulo Afonso! A miscigenação brasileira
está lá, com quase cem anos de antecedência sobre Gilberto Freyre:
Lucas, moreno e altivo; Luísa e seus atributos em cravo e canela: "Mimosa flor das escravas!/ O bando das rolas bravas/ Voou com medo
de ti!..." Castro Alves retrata, neste poema Brasil-essência, todo a
nossa bastardia, a morenidade de Cotegipe, Floriano Peixoto e
Machado. Lucas, filho da escrava com o senhor, assassinada pela
sinhá. Os meus olhos louros e o cabelo pixaim, este tão Brasil
brasileiro de pai desconhecido. Veja, poeta, esta paisagem que
ninguém lhe descreve igual: "Os poldros soltos — retesando as
curvas, —/ Ao galope agitando as longas crinas". E a escravidão, a
mancha ao infinito, drama atual — favelas — mais forte em
Cachoeira,
porque mais sublimada, do que no Navio. E a ironia, a canoa à beira
do precipício, mas é assim que ele diz: "Semelha um tronco gigante/
De palmeira, que s'escoa.../ No dorso da correnteza,/ Como bóia esta
canoa!" Bóia? Ele a despeja lá embaixo, veja: "De tua vaga os
turbilhões barrentos. /A canoa rolava!... /Abriu-se a um tempo o
precipício!... /e o céu!..." Por isto mesmo é que se fala tão mal de
Castro Alves. Ele abusou. O Navio teria sido suficiente. A Cachoeira
excede a todas as medidas da genialidade. Em qualquer tempo, em
qualquer lugar do mundo.
Diário do Nordeste: - O que o agreste ensinou a sua
poesia?
Soares Feitosa:
Isto de agreste bem que poderia ser o molhado. Retratar a condição
humana, a partir do contexto pessoal do autor, é irrecusável. Se me
fora a infância na Amazônia, o trato haveria de ser sobre as águas,
a mata, os peixes; ou a tundra do Norte, se fosse do Canadá. Aqui,
os sóis, os chãos de pó e o pedregulho — nossos — aos daqui.
Vivemo-los. Vivamo-los. Tão bons quanto quaisquer outros, que,
afinal o seu único destinatário, o Homem, é mesmo, aqui e alhures.
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Soares
Feitosa tem na leitura um grande deleite e sofre por não
ter mais tempo para ler. Foto João Faustino, outubro
2005 |
Diário do Nordeste: - O que a sua poesia comporta da
urbe?
Soares Feitosa:
A urbe? O retrato do Humano, a nossa condição, que tanto tem sido
a minha Grécia particular, Nova-Russas, minha pólis grega, chegando
a pé, lá, com um matulão nas costas cheio de livros, ao colégio, era
assim que comparecia às provas, para estudar; como também houve de
ser a anti-urbe, a brenha para onde retornava depois das provas.
Este ciclo, viagem única com um mesmo bilhete, mar-sertão,
sertão-mar, pólis-barbárie** é absolutamente fundamental à formação do
Humano. Existe o Humano, só isto existe, Homem, em Cingapura,
Londres, Ceilão ou nos sertões de Acopiara, tanto faz. Tenho que o
sentido ontológico de estar no mundo é saber desses mundos
múltiplos, a civilização extremamente primitiva de lá dos matos e o
seu oposto (só aparente a oposição), de um passar de olhos em Baruch
Spinoza, atualíssimo, vide António Damázio, o neurologista, viajando
entre o bisturi e a filosofia, escândalo nenhum. Se é de lá que eu
venho, piso em qualquer chão.
Diário do Nordeste: Em seu discurso poético, há uma
nítida (diria quase uma obsessiva) preocupação com a linguagem.
Você busca uma poesia da linguagem?
Soares Feitosa:
Confesso que não me carrego dessa preocupação com a forma, com as
palavras. Não sou um autor de bancada, de pegar um texto por meses
seguidos a burilá-lo. Sei que o poema está lá dentro, em ruminação,
uma tarefa que não pertence ao meu plano do consciente. Foi assim
que me guardei, sem saber que guardava, por 50 anos. Não, não busco
uma poesia da linguagem. Se for poético, no sentido de acender e
ascender, escrevo; se não, não; aliás, sequer cogito. De fato, a
escrita não me pertence. Não creio em espíritos a me fustigarem com
laudas e varas curtas. Não; isto não. Para mim, um processo
interior. Por isto mesmo, é-me impossível escrever qualquer coisa
que não esteja já pronta para ser escrita, digamos, “escrevinda”.
Diário do Nordeste: Em sua escritura, há, direta ou
indiretamente, um retorno à tradição clássica.
Discorrer sobre isso
Soares Feitosa:
Concordo. Antes de escrever, digamos, de me estabelecer como
poeta, tive imensa dificuldade de conviver com os modernos.
Continuei lendo e relendo o Menino (Castro Alves), e os clássicos em
geral. Sim, a Bíblia e o teatro grego que leio e releio, mas nada a
ver com religião, por favor. O compromisso não é com a metáfora, mas
com o símbolo, esse acúmulo de senhas que se consolidaram na nossa
mente, desde que o mundo é Mundo. A tábula não é rasa! Nem precisamos de
reencarnações para saber coisas. Acho que, à medida em que o homem
foi perdendo os mecanismos instintivos do animal-primata, foi
ganhando em sua mente-noite as tais senhas, as super-metáforas, as
pré-metáforas, as moradas iniciais, os símbolos da ancestralidade.
Veja, em Antígona, Hemon cospe no rosto do pai, Creonte, e avança
contra ele de arma em punho. O autor, Sófocles, não diz (e a beleza
está em não dizê-lo!), mas é muito razoável que caia a maldição da
morte sobre o filho que cospe no pai, ainda que o pai seja
merecedor. Então, a cusparada e a morte de Hemon guardam uma
perfeita simetria simbólica, desde os tempos. Antígona, um monumento
literário no mesmo porte do Evangelho de São Mateus, leitura para
umas 300 revisitações obrigatórias. Sim, é fundamental o prazer de
reler e sair descobrindo e redescobrindo coisas. Evidente que tenho
mesmo que abominar chistes e frases de pára-choques que os
desavisados da modernidade apelidam de poesia. Se o fossem, Platão
teria feito. Chico Pires teria feito. E Castro Alves.
Diário do Nordeste: - Em temos de poética, hoje,
Horácio ou Aristóteles?
Soares Feitosa:
De Horário, fica-nos o «Carpe diem!», que também está no
Eclesiastes. É bonito, sim. Precisamos aproveitar o momento.
Fica-nos dele também a teoria da gaveta, isto é, o poema amoitado
por anos a fio, sete, como se fosse uma Raquel de Labão, depois de
Lia, mais sete. Ora, nesta saudável angústia da comunicação
instantânea, já escrevo o poema direto em linguagem de “page” (HTML);
ponho-o na internet no mesmo instante. E, na mesma noite, os
comentários às vezes do outro lado do mundo. De Aristóteles a
grandeza do termo médio, a virtude bem no meio, nem tanto à terra,
nem tanto ao mar. O problema é que a gente esquece. Mas o nosso
andor tem que andar como os políticos em fuga: nem devagar demais a
não parecer provocação, nem na carreira para que não pensem que é de
medo. A sabedoria mora em Aristóteles. Herói algum ganhará todos os
troféus. Quem mais perto andou de ganhá-los todos foi ele,
Listotes,
assim o chamo lá no sertão.
Diário do Nordeste: O que é e o que não é literatura?
Soares
Feitosa: As coisas do dia. O agir do dia, da racionalidade. Os
relatórios. O lado racional não é poético. Mas o seu antônimo não o
diria irracional, mas não-racional, uma outra categoria de coisas. O
mundo é tangido por esse lado noite.
Diário do nordeste: - Na atual conjuntura, existe
algum papel definido para o poeta?
Soares
Feitosa: Conjuntura? Em qualquer conjuntura! A poesia é
fundamental. Nunca se lê tanta poesia como nas grandes crises. O
mundaréu de bíblias que são lidas diariamente. Aquilo é pura poesia!
É poesia tão tamanha que gente nem o percebe.
Diário do Nordeste: - O que o levou a criar um jornal
de poesia?
Soares
Feitosa: O prazer de compartilhar, de divulgar Castro Alves. E aos
meus amigos, é claro. A mim também, com certeza. Sim, é um
banquete. A sala de janta de uma casa-grande, eu, um coronel das
letras, alguidar de fartura para todos. E coalhada da ceia. O ágape.
Diário do Nordeste - Quais são seus planos para o
futuro imediato?
Soares Feitosa: No plano literário, publicar alguma
coisa, embora a internet já represente uma publicação mais que
suficiente para divulgar. O livro de papel tem uma mística, um
simbólico absolutamente insubstituível. Preparo um livro de porte,
não sei quantas páginas, Salomão***, romance, poema, ficção, ensaio,
crônica, história, teoria e culinária, um projeto multi-modal.
Preparo um outro, Do Círculo Hermenêutico Periférico****, em que tento
demonstrar que o homem não é racional em termos absolutos, mas um
ser tangido pela noite, ou melhor, pela penumbra de senhas que nos
têm sido passadas há milênios, numa época em que ninguém sonhava com
a escrita. As pessoas que não sabem ler, “lêem” como?! Entendo que
há um mecanismo, uma outra leitura, de nada a ver com letras e
papel.
Nem com o olhar. Estou atrás dessa linguagem.
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