John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt  

Soares  Feitosa

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Caravagio, Êxtase de São Francisco
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os poemas da Queda

 
     
Iahweh baniu o homem e colocou, diante do jardim do Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida".
(Gênesis, 3,24)

 

Isto, à epígrafe, a essência, a base-basal de toda a literatura ocidental. A Queda! Franz Kafka, com rara sensibilidade, nos passou, na busca de Klamm, [O Castelo] a inequívoca certeza da impossibilidade de achá-LO. Diria que, com um "literatômetro" (ensaio de nome Poetímetro) seria alcançar a justa medida em que o autor nos passa, com graça e brilho — tem que ser com graça e brilho, nem que seja sob o cáustico humor — a certeza da Queda. 

Não se trata de lamuriar. Nem de decadentissimo. Menos ainda de pessimismo. No Brasil, Machado, o grande Machado. De um lado, o efêmero, o mundano do fim do século XIX; do outro, o beira-precipício em permanência, "lembra-te, Homem, caíste!" Tudo com o mais perfeito senso de naturalidade. Por isto, a permanência de Machado porque a literatura para ele não era apenas a história pitoresca de um marido corneado (?), mas a Queda de Bentinho et allia. Na poética, só alguns poemas no-la dão. 

O meu primeiro ensaio, escrito no ano passado, 1997, tratou da surpresa do Tempo. Aquele susto-súbito, como se a peripécia no sentido grego, a mudança de rumos inesperada, o abismo que se abre em terra chã. É Os Poemas da Besta. Depois encafifei com o tema de agora. Faltava-me, porém, o nome. Inicialmente os chamei Os Poemas Escr(...), um nome chulo, impróprio aos meus códigos sertanejos. Sou antigo; puro não, apenas antigo. [Dizem que o demônio também é muito velho]. Até que me ocorreu a idéia da Queda. Isto mesmo, é o que eles nos passam. 

Poucos. Um, via Nelson Ascher, uma belíssima tradução dele, da Nobel polonesa de literatura, em que ela descreve a cena de um jovem preparando uma bomba, num café, num restaurante para "corrigir" um Mundo também caído. E o faz com absoluta naturalidade, como se o Mal fosse — e é, esta a "certeza" que nos dá o poema! — uma coisa absolutamente natural. 

O outro poema é do meu amigo Carlos Figueiredo da Silva. No poema, CFS nos conta de como aplicar um "corretivo" numa criança. 

Finalmente, um texto nazista, revista Veja, Brasil,  edição de 12.10.1998, em que um médico alemão nos conta como era o "trabalho" num Campo de Concentração, eles, homens da Ciência, juramentados a Hipócrates, a avocaram a si os poderes de Deus, a "corrigir" o mundo pela eliminação daqueles que consideravam caídos. Caídos todos, nós, deuses inclusos. 

Diria que os três são textos terríveis. Nada banais. Pior, verdadeiros. A nos levar a encarar um abismo de profundidade infinita. A expulsão, a Queda, e sua certeza. Deus? Quem falou em Deus? Dos três textos:

  • a prova provada de que Ele não existe, nunca existiu e jamais vai existir;

  • ou a prova  inequívoca de Sua absoluta misericórdia, "porque é da Tua boca, Senhor, e para os Teus ouvidos que a boca deles fala" (vide Talvez outro salmo)

Leia-os, como puder. Ei-los:

  1. Pode-se bater

  2. O terrorista, ele observa

  3. Hans Münch, médico

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um cronômetro para piscinas

  Um cronômetro para piscinas

 

 

 

 

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Um esboço de Da Vinci

 

 

Carlos Figueiredo da Silva


 

Pode-se bater
 

Pode-se bater
em uma criança
sem acordar os vizinhos.
Comparada a uma criatura
de médio porte
a criança é a vítima ideal.
É fácil sufocar
o seu pequeno grito.

Um cronômetro para piscinas

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Da Vinci

 

 

Wislawa Azymborska


O terrorista, ele observa

 

[traduzido por Nelson Ascher a partir da versão inglesa

 de Adam Czerniawski 

e da norte-americana de Magnus J. Krynski e

Robert A. Maguire

in Folha de São Paulo - http://www.uol.com.br]

 

A bomba explodirá no bar às treze e vinte.
Agora são apenas treze e dezesseis.
Alguns terão ainda tempo para entrar;
alguns, para sair.
O terrorista já está do outro lado da rua.
A distância o protege de qualquer perigo.
E, bom, é como assistir a um filme.
Uma mulher de casaco amarelo, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Jovens de jeans, eles conversam
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo, ele se salvou, sai de lambreta.
E aquele mais alto, ele entra.
Treze e dezessete e quarenta segundos.
A moça ali, ela tem uma fita verde no cabelo.
Mas o ônibus a encobre de repente.
Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Era tola o bastante para entrar, ou não?
Saberemos quando retirarem os corpos.
Treze e dezenove.
Ninguém mais parece entrar.
Um careca obeso, no entanto, está saindo.
Procura algo nos bolsos e
às treze e dezenove e cinqüenta segundos
ele volta para pegar suas malditas luvas.
São treze e vinte.
O tempo, como se arrasta.
É agora.
Ainda não.
Sim, agora.
A bomba, 
ela explode.

 

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Da Vinci

 

 

Hans Münch, médico


Memórias do homem do gás


Hans Münch,
hoje, aos 87 anos,
em sua casa, na Alemanha
in Veja, 12.10.1998
 

Médico aposentado numa aprazível cidadezinha do sul da Alemanha, Hans Münch é um afável senhor de 87 anos. Atencioso, preocupa-se com que o repórter esteja confortável, enquanto explica como era complexo incinerar os judeus. "Eles eram amontoados em camadas para ser carbonizados, porém não se conseguia queimá-los completamente. Mas isso era um problema técnico e foi naturalmente resolvido", conta o doutor Münch, o único sobrevivente conhecido da equipe de médicos nazistas que usou prisioneiros como cobaia em Auschwitz.  Hans Münch

As atrocidades nazistas no maior dos campos de extermínio, no qual morreram pelo menos 1,5 milhão de pessoas, a maioria judeus, são bem documentadas — por motivos óbvios, contudo, são escassos os depoimentos confiáveis dos próprios algozes. Duas semanas atrás, com a publicação na revista alemã Der Spiegel do depoimento de Münch ao repórter Bruno Schirra, abriu-se a rara oportunidade de ver por dentro a tenebrosa máquina de extermínio montada pela Alemanha nazista. 

Na contramão dos neonazistas atuais, que tentam reescrever a História para negar a existência da "solução final" e das câmaras de gás, Münch já havia falado extensamente sobre a "solução final". A diferença é que agora falou como nunca, com frieza e sem o arrependimento declarado em depoimentos anteriores: 

O regulamento exigia que as execuções fossem acompanhadas por um médico da SS, a tropa de choque do nazismo, e  ele próprio cumpriu seu dever assistindo à agonia dos prisioneiros por um visor instalado na câmara de gás. "Do peito dos agonizantes, sufocados pelo gás, saía um ruído abafado, como o zumbido de uma colméia", recorda o médico. Muitas vezes os corpos eram encontrados amontoados, com as crianças por baixo, pisoteadas. Outras vezes estavam de pé, como "colunas de basalto". 

Münch ingressou como voluntário na SS e passou dezenove meses em Auschwitz, o grande campo da morte na Polônia. Quando chegou, em 1943, o serviço médico era comandando por Josef Mengele, que depois da guerra viveu escondido no Brasil até morrer, nos anos 80. "Aquelas eram condições ideais de trabalho", diz. "Tinha a ajuda de acadêmicos de reputação internacional e pude fazer com seres humanos experiências que, normalmente, só são possíveis com coelhos." Tradução: ele inoculava malária em prisioneiros. Também tentava provar a existência de uma relação entre reumatismo e inflamações dentárias, injetando pus na raiz de dentes sadios. Os "acadêmicos de reputação internacional" eram cientistas judeus capturados nas universidades de toda a Europa. Graças a eles, por ironia, Münch foi absolvido pelo tribunal polonês que condenou à morte quarenta de seus colegas, depois da guerra. Ele não apenas pôde comprovar que mantivera vivos (e alimentados) os judeus de sua "lista", como ajudou dois ou três a escapar no fim da guerra. 

Meio século depois, Münch não está mais ligado à reputação de "bom nazista". "Acho que ele acredita que está no fim da vida e que chegou a hora de dizer a verdade", declarou a VEJA o repórter Schirra. Com frieza e indiferença, o médico narrou ao repórter como enviava à câmara de gás todos os prisioneiros de um barracão onde fosse detectado um caso de tifo. "Chamávamos isso de isolamento por gás", justifica. "Era o único jeito de impedir que atingisse as pessoas fora do campo." 

Depôs a seu favor em 1947 a alegação de que se recusou a fazer a seleção dos prisioneiros recém-chegados que iriam diretamente para a câmara de gás e os que seriam encaminhados ao campo de concentração para trabalhar como escravos. Habitualmente, mulheres, crianças, velhos e doentes eram marcados para a câmara de gás. O processo servia também para identificar as crianças gêmeas enviadas como cobaias para Mengele.

O médico que o mundo recorda como um monstro era, diz Münch, "o mais simpático dos companheiros". Ele lembra bem que Mengele lhe enviava pedaços de corpos, vísceras e, certa vez, a cabeça de uma criança de 12 anos para ser examinada. "Isso era trabalho", diz com lógica burocrática. "E trabalho é trabalho." 

Consciência tranqüila — "O senhor tem algum resquício de peso na consciência?", perguntou o repórter. "Por ter estado lá? Evidentemente que não", respondeu Münch, indicando sentir saudade daquele tempo, em que era algo além de um simples médico do interior. "Eu era um rei lá. Viver tranqüilamente num lugar onde centenas de milhares de seres humanos são mortos em câmaras de gás é algo com que a gente se acostuma bem rápido. Não me causou nenhum incômodo." 

De fato, segundo conta, não havia entre os médicos alemães preocupação moral com a matança — discutiam com paixão, contudo, se era prudente exterminar tanta mão-de-obra escrava que podia ajudar no esforço de guerra. 

Três anos atrás, a representante de uma associação de gêmeos sobreviventes das experiências de Mengele convidou Münch a visitar Auschwitz. Posando para fotos ao lado de sobreviventes, o médico divulgou uma declaração em que afirmava ter cometido um erro ao entrar para a SS: "Era jovem. Um oportunista. E, uma vez dentro, não havia como sair". 

Na conversa sincera com o repórter da Der Spiegel, mudou de tom e demonstrou a velha convicção nazista de que é preciso exterminar os judeus. Lembra-se com desprezo dos prisioneiros recém-chegados do Leste Europeu, chicoteados como animais para fora dos trens: "Uma escória abominável. Tão servis que não se podia sequer qualificá-los de seres humanos". 

O depoimento de Münch se prolongou por cinco dias e quatro noites, e a Justiça alemã já pediu ao repórter cópias das fitas para exame. Mesmo que um improvável e tardio julgamento venha a ocorrer, a avançada idade e um atestado médico questionando a sanidade mental de Münch deverão ser suficientes para garantir a morte tranqüila que seus "pacientes" não tiveram em Auschwitz."

 

Soares Feitosa grifou

Leia isto,

quase como se fosse um desmentido:

H. Dobal 

Cantiga de Viver

       

      Sozinho na cama 
      um homem espera sua hora. 
      A inesperada hora de tantos. 

      A vida é uma cantiga triste 
      mais triste e à-toa que a das andorinhas 
      — Las oscuras golondrinas 
      tão mal vivida 
      tão mal ferida
      tão mal cumprida. 

      A vida é uma cantiga alegre: 
      o primeiro sorriso de cada filho 
      e todos os microamores 
      que inutilizam 
      a vitória da morte.

 

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Da generosidade dos leitores

 

 

 

 

 

Lúcia Leal Ferreira

 

Gostei muito! Adorei! Achei lindo! Etc!!

Ainda estou na fase exclamativa. Embora já nem seja a primeira vez que escrevo para você(s?)... É que gosto, sim, claro!, de poemas. Ou não teria vindo parar aqui. Mas é que acho que gosto mais especificamente (?!) da vida; e então é
preciso conseguir olhá-la mais diretamente, ou seja, mais livremente. E é aí que muitos poemas me ajudam - a andar por aí. Então essa reunião de textos sob o título Queda parece mesmo muito uma boa poesia, pois abre caminhos...

Assim como é muito poesia, para mim,  saber que de repente sai um poema lindo como Siarah... no meio da vida... Fico contente, parece um "anti-acidente como uma rima". 

Então é isso. Por enquanto é só. 

Pois ainda estou mesmo só exclamativa, porque só chegando...

Um abraço! 

Lúcia

 

 

 

 

 

 

 

 

Rafael, Transfiguração, detalhe