Hans
Münch,
médico
Memórias do homem
do gás
Hans
Münch,
hoje, aos 87
anos,
em sua casa, na
Alemanha
in Veja,
12.10.1998
Médico
aposentado numa aprazível cidadezinha do sul da Alemanha, Hans
Münch é um afável senhor de 87 anos.
Atencioso, preocupa-se com que o repórter
esteja confortável, enquanto explica como era complexo incinerar os
judeus. "Eles eram amontoados em camadas para ser
carbonizados, porém não se conseguia queimá-los completamente. Mas
isso era um problema técnico e foi naturalmente resolvido",
conta o doutor Münch, o único
sobrevivente conhecido da equipe de médicos nazistas que usou
prisioneiros como cobaia em Auschwitz.
As atrocidades nazistas no
maior dos campos de extermínio, no
qual morreram pelo menos 1,5 milhão de pessoas,
a maioria judeus, são bem documentadas — por motivos óbvios, contudo,
são escassos os depoimentos confiáveis dos próprios algozes.
Duas semanas atrás, com a publicação na
revista alemã Der Spiegel do depoimento de Münch ao repórter
Bruno Schirra, abriu-se a rara oportunidade
de ver por dentro a tenebrosa máquina de extermínio montada
pela Alemanha nazista.
Na
contramão dos neonazistas atuais, que tentam reescrever a História
para negar a existência da "solução final" e das câmaras
de gás, Münch já havia falado
extensamente sobre a "solução final". A diferença é
que agora falou como nunca, com frieza
e sem o arrependimento declarado em depoimentos
anteriores:
O regulamento exigia que as execuções fossem
acompanhadas por um médico da SS, a tropa de choque do nazismo, e
ele próprio cumpriu seu dever assistindo à agonia dos prisioneiros
por um visor instalado na câmara de gás. "Do peito dos
agonizantes, sufocados pelo gás,
saía um ruído abafado, como o zumbido de uma colméia", recorda
o médico. Muitas vezes os corpos eram encontrados amontoados,
com as crianças por baixo, pisoteadas. Outras vezes estavam
de pé, como "colunas de basalto".
Münch
ingressou como voluntário na SS e passou dezenove meses em Auschwitz,
o grande campo da morte na Polônia. Quando chegou, em 1943,
o serviço médico era comandando por Josef Mengele, que depois
da guerra viveu escondido no Brasil até
morrer, nos anos 80. "Aquelas eram condições ideais de
trabalho", diz. "Tinha a ajuda de acadêmicos de
reputação internacional e pude fazer com
seres humanos experiências que, normalmente, só são possíveis com
coelhos." Tradução: ele inoculava malária
em prisioneiros. Também tentava provar a existência de uma relação
entre reumatismo e inflamações dentárias, injetando pus na raiz de
dentes sadios. Os "acadêmicos de reputação
internacional" eram cientistas judeus
capturados nas universidades de toda a Europa. Graças a eles, por
ironia, Münch foi absolvido pelo tribunal polonês que condenou à
morte quarenta de seus colegas, depois
da guerra. Ele não apenas pôde comprovar
que mantivera vivos (e alimentados) os judeus de sua
"lista", como ajudou dois ou três a escapar no fim da
guerra.
Meio século depois, Münch não
está mais ligado à reputação de "bom nazista".
"Acho que ele acredita que está
no fim da vida e que chegou a hora de dizer a verdade", declarou
a VEJA o repórter Schirra. Com frieza e indiferença, o médico
narrou ao repórter como enviava à câmara de gás todos os
prisioneiros de um barracão onde fosse
detectado um caso de tifo. "Chamávamos isso de isolamento
por gás", justifica. "Era o único jeito de
impedir que atingisse as pessoas fora do campo."
Depôs
a seu favor em 1947 a alegação de que se recusou a fazer a seleção
dos prisioneiros recém-chegados que iriam diretamente para a
câmara de gás e os que seriam encaminhados
ao campo de concentração para trabalhar como escravos.
Habitualmente, mulheres, crianças, velhos e doentes
eram marcados para a câmara de gás. O processo servia também para
identificar as crianças gêmeas enviadas como cobaias para Mengele.
O
médico que o mundo recorda como um monstro era, diz Münch, "o
mais simpático dos companheiros".
Ele lembra bem que Mengele lhe enviava
pedaços de corpos, vísceras e, certa vez, a cabeça de uma criança
de 12 anos para ser examinada. "Isso era trabalho",
diz com lógica burocrática. "E trabalho é trabalho."
Consciência
tranqüila — "O senhor tem algum resquício de peso na
consciência?", perguntou o repórter.
"Por ter estado lá? Evidentemente que não",
respondeu Münch, indicando sentir saudade daquele tempo, em que era
algo além de um simples médico do interior. "Eu era um rei lá. Viver
tranqüilamente num lugar onde centenas de milhares de seres humanos
são mortos em câmaras de gás é algo com que a gente se acostuma
bem rápido. Não me causou nenhum
incômodo."
De
fato, segundo conta, não havia entre
os médicos alemães preocupação moral com
a matança — discutiam com paixão, contudo, se era prudente
exterminar tanta mão-de-obra escrava que
podia ajudar no esforço de guerra.
Três
anos atrás, a representante de uma associação de gêmeos sobreviventes
das experiências de Mengele convidou Münch a visitar Auschwitz.
Posando para fotos ao lado de sobreviventes, o médico divulgou
uma declaração em que afirmava ter cometido um erro ao entrar para
a SS: "Era jovem. Um oportunista. E, uma vez dentro, não havia
como sair".
Na conversa sincera com o repórter da Der Spiegel,
mudou de tom e demonstrou a velha convicção nazista de que é
preciso exterminar os judeus. Lembra-se com desprezo dos
prisioneiros recém-chegados do Leste
Europeu, chicoteados como animais para fora dos
trens: "Uma escória abominável. Tão servis que não se podia
sequer qualificá-los de seres
humanos".
O depoimento de Münch se prolongou por
cinco dias e quatro noites, e a Justiça alemã já pediu ao repórter
cópias das fitas para exame. Mesmo que um
improvável e tardio julgamento venha a
ocorrer, a avançada idade e um atestado médico questionando a
sanidade mental de Münch deverão ser suficientes para garantir a
morte tranqüila que seus "pacientes" não tiveram em
Auschwitz."
Soares
Feitosa grifou
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