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Durval Aires Filho

Durval Aires Filho


 

Conto:


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Fortuna crítica:


Alguma notícia do autor:

 

 

 

Culpa

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vale or Farewell, ARTHUR HACKER (RA), (1858 - 1919)

 

 

 

 

 

Durval Aires Filho


 

Ela

 

No começo era uma relação muito profissional, do tipo “papai-e-mamãe”, sem direito a retrato e a beijo de língua. Negócio era negócio. Nada de paixão. O que importava era a grana. “Ela” passou a me consumir e consumia praticamente toda a minha riqueza pessoal que era o meu salário, o crédito educativo e umas virações que eu fazia na imprensa. O meu editor, desconfiava: “menino você anda trabalhando demais”.“Toda semana uma longa reportagem”. “E com essa tabela do Sindicato, o Jornal acaba quebrando”.

Exagero à parte, meu pai, que havia arranjado essa ocupação Jornal do Contofree, com a promessa de que eu comprasse os livros de Direito, também desconfiava. Mas, socialista como sempre foi, não perdia seu discípulo. Fingia que não estava vendo nada. Desconhecia as evidências. Deixava que o melão fosse comido pelas beiradas. Como ele sempre professava, tudo era questão de tempo e que as  conversas deveriam ser sempre de convergência. Era seu lema: “tudo que nos una; nada que nos separe”.

Ora, com o dinheiro na mão, com aquele gás terrível,  não cansava de transar. Mais tarde, tornamos íntimos demais. Só depois de me acostumar com o seu cheiro, de fazer muita ginástica e coreografia em cima da cama é que eu tive outras liberdades. Acho que, por isso, grudei na morena e fiquei tanto tempo sem procurar uma dona de casa, ou uma mulher sem imaginação nenhuma, que só falasse em casamentos, filhos, escolas, orçamentos e planos de saúde e, eu acho que naquele tempo nem tinha plano de saúde, mas saúde mesmo era “Ela”. Aliás, só dava “Ela” na minha cabeça.

Outro noite apareceu com uma calça elástica branca, botas de couro, dentro de um jaleco jean,  com unhas pintadas de vermelho, ainda assim  discreta como uma felina (“Ela” havia deixado o chapéu goiano em seu quarto, lugar de trabalho). Aquela aparição causou um certo frisson. Na verdade, me deu um tesão danado. Naquele instante, tive uma visão de raio X. Na cama, depois daquilo, “Ela” falou:  “vou raspar o tabaco, deixar só uma ruinha de pentelhos”. Disse-lhe: aqueles pentelhos chamavam-se de púbis. Ela gostou  da palavra, decorou e sempre que podia soltava: “tirei o púbis, enxagüei o púbis”; “ô, cara de púbis, será que o meu púbis tá legal ?”

As vezes fazia amor segurando o meu sexo pelas entranhas. Incrível. Era um gozo extenuante. E o pior: como possuía mais força do eu, principalmente quando “pilotava a lambreta”, eu tinha que morder com fúria o seu dedo médio. Após, falava que estava ficando muito afoito . Discutia sobre o prazer através do clitóris, sobre o ponto G, outra estória que lhe ensinei, repetindo lição de uma revista estrangeira. Mas apesar de todos meu esforços didáticos, continuava a pronunciar “mermão”, invés de “meu irmão”. Inútil ensinar-lhe que a pronúncia certa não era “poblema”. Esse era o meu problema porque frustrava o meu plano de uma dia apresenta-la aos amigos de taça e de texto, quem sabe até a família.

  Era super-limpa, mas não usava caminha porque não havia essa onda toda de doenças, essa paranóia de aides, nem  também camisinhas em todas as farmácias. Antes do que “Ela” chamava de “dar serviço”, tinha uma estória de um banho. “Você, Bem, é meu cliente mais alinhado, avia logo”. Com os motoristas as coisas eram mais difíceis: “eita gente braba e fedida”. “Mas comigo é assim”. “Só abro as pernas depois do banho”. Outro dia eu li no “Povo Brasileiro”, do Darcy Ribeiro, que os índios, parte de nossos ancestrais, eram as pessoas mais limpas do planeta. Passavam o dia todo tomando banho nos rios e igarapés.

O que é bom dura pouco. Foi o “Chuva-Fina” quem me falou. “Ela” estava sendo  disputada por Janjão e Django. Isso me dava calafrios: transformava o espaço que Ela freqüentava em uma possível ringue ou saloon comum em filme de faroeste.  No final, “Ela” escolheu o forte ajudante, em vez do motorista, e, não sei bem,  foi parar com ele no Pará. “Ela” sabia que eu não ia ficar ruim. Tinha me avisado: “dotorzinho qualquer dia arranja uma princesa e nunca mais me procura”. E eu nem desconfiei que “Ela” estava cheia daquela rotina: manicurar pés e mãos, escovas nos cabelos, perfumes da coty e, todos os dias,  estar sempre com bom visual no comercinho da noite.

 Ao seu modo, fingia que gostava dos meu discos e jamais pronunciava o nome daqueles artistas.  Botava apelido. Por exemplo, o Milton Nascimento era “o escurinho  da noite”; o Stan Getz,  chamava-o de Ivanildo Fogoió. Mas, o Piazzola, o Ivonildo da Sanfona, “Ela” gostava de verdade. Era um dia de pouco movimento. As damas, as mariposas, as colegas em seus postos e nenhum homem, exceto os viventes da casa -- digo: o Wanderléia e o Titica --  já que não se podia chamar aqueles de homens. Pareciam mais com insetos.

 Aí, eu pedi para passar “Adios Nonino”. Comprei a ficha para o toca-disco importado de Chicago, na verdade, um antigo caça-níquel, uma máquina de fazer festas, cheia de luzes, estranha e maravilhosa, como o facho de neon. Apertei o botão. Devia ter bebido uns quatro conhaques. E o ambiente sonorizado ganhou toda a atmosfera dos bordeis de Buenos Aires. Mulher fortemente maquiada dançando com mulher, entre mesas de mármore e sinucas,  um legítimo tango, exalando muito charme e sensualidade. Aliás, com muita categoria. Outras, fumando, com prazer, cigarros muito alongados. Tudo se transformou em espaço de puro impressionismo.

 Naquela noite, “Ela” aprendeu  a dançar tango. Ou, imagino, mulher sensual daquele jeito já nasce sabendo todos esses passos. Wanderléia ficou injuriado, saiu dando rabiscada, dizendo que aquilo não era tango, coisa nenhuma, mas gafieira. Depressa, veio na minha lembrança o “Capim-e-gordura”, no bairro da Bela Vista. Devia ter uns 16 anos. Assistia atento aquela gente inventado novos passos, novas danças e contradanças, com uma inveja danada. Eram, na maioria das vezes, bandidos e prostitutas que exibiam seus altos dons. No intervalo,  uma mulherzinha, com mais ou menos um metro e meio, me fitou de longe, partiu ao meu encontro e, de repente, aplicou-me uma enorme tabefada no rosto que eu virei, beijando a quadra. Sílvio do Bossa Nova, meu companheiro de curiosidade, me ajudou a levantar do chão. A “fuampa” queria apenas armar uma confusão, “botar boneco”, como se diz mais recentemente. Ainda partiu para cima de mim, dizendo que ali não era lugar para otário, zemané, filho de papaizinho ou baitola como imaginava que eu fosse.

  Titica, um condenado pela previdência social cuja banca do jogo de bicho era ali mesmo no “Senadozão”, avaliou: “Ela” dançava melhor que a Vera Ficha, a mesma que me vendeu as fichas. Chovia muito naquela segunda-feira, dia de segunda chamada e eu perdi a prova do professor Raimundinho. Tive receio em contar-lhe o motivo de minha segunda ausência. Mas, sabendo das preferências pecaminosas do ilustre mestre, passei a minha estória do tamanho da minha proeza. Ele estava no Bar do Câncio, em Messejana, “exugando” uma cerveja estupidamente gelada. E, olhando a minha fisionomia, receio que ele  não acreditou muito naquela parada. Mas concedeu-me uma nova chance de ser avaliado na sua disciplina só pela fantasia, com um bônus de outra estória contada pelo próprio ensinante: um catedrático, amigo dele,  depois de um coito (coisa que fazia porque ficou viúvo), não sabendo o que era “banho techo ”, usou a água da bacia para lavar o rosto, em vez do pau e  refez ainda a sua garbosa cabeleira.

Quando “Ela” fugiu com Django eu já estava apaixonado, digo eu e, não tenho muita certeza, o Janjão (um cara da pesada que eu nunca conheci) provavelmente, deixando ambos abatidos, tristes e desnorteados. Perdeu a mulher que queria roubar do cabaré e, ainda por cima, levava o peso de não contar mais com o ajudante de tantos anos de carga. Eu tive menos prejuízo. De um lado, foi um alívio. Django sabia da minha existência. Agora estava longe. “Chuva Fina” e Titica sempre me preveniram dessas presenças na área em que eu podia aparecer, caso contrário ele tinha me quebrado, como quem quebra palitos de fósforo só pelo prazer de ouvir os estalos.

 Juro: só queria dar um banho de loja, convidá-la para ser minha madrinha na festa de formatura e continuar a fazer muitas andanças pelos bulevards da cidade até descer à Praia Formosa, hoje, o endereço do Marinas Park. Nada mais.  Até que o magrelo  do “Chuva-Fina” me avisou: “chega de tristeza, chega de saudade, tem lançamento na praça”. É claro que o “fantástico  Show da vida” devia prosseguir.

 Ainda meio nostálgico, fiquei freqüentando por algum tempo as casas noturnas que sobreviveram aos novos tempos, mas sem pegar nada especial. Como dizia um amigo meu, que foi marinheiro, com presença marcante nos cabarés de Marselha e Amsterdã: “depois que a morena partiu, você ficou reflexivo demais, tal um sapo, comendo vaga-lumes, na certeza de está saboreando as estrelas mais belas do firmamento” . 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Durval Aires Filho

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

22.11.2008

 

 


 

Dando forma literária a causos ouvidos, episódios testemunhados e vividos, Durval Aires Filho estréia como escritor com o livro “O homem do globo”

Literatura não é coisa que se preste a prazos. O escritor toma o tempo que for necessário, até que um dia a obra fique pronta e ganhe as páginas dos livros. Dessa forma se explica a estréia tardia de Durval Aires Filho como autor, no livro “O homem do globo (e outros contos)”. Ele autografa o livro hoje, às 10 horas, para os alunos da Escola Durval Aires.

“Escrevo desde sempre, nem saberia precisar quando comecei”, conta o autor. Com os anos, os escritos foram se multiplicando e a publicação do primeiro livro se deu quase ao acaso. “A oportunidade surgiu quando procurei um editor para um livro que então queria publicar, um trabalho da área jurídica. Na época, ele me sugeriu que também entrasse nesta área de ficção, na qual havia muito espaço -inclusive através da Lei Roaunet e outros incentivos. Apresentei o trabalho e, em menos de um mês, este foi autorizado pela equipe do Ministério da Cultura”, explica Durval Aires Filho.

Juiz de direito, Durval Aires Filho viu a escrita entrar em sua vida por influência do pai. “Ele era jornalista e sempre trazia para casa quilos e mais quilos de jornais e livros. Para mim, um garoto de 10 anos de idade, era um presente grande receber aqueles suplementos, como o ‘Suplemento Literário’, do Estadão; e o ‘Caderno B’, do Jornal do Brasil”, relembra o escritor.

Paixão pela leitura que se reforma na atividade profissional. “Pela minha formação de juiz, me obrigo a ler muito sobre as teorias que andam em voga”, comenta Durval Aires Filho.

Uniformidade

As narrativas eleitas pelo autor para figurar no livro receberam ajustes. “Os contos não foram escritos todos na mesma época, então retrabalhei o texto no sentido de lhe conferir uma certa uniformidade”, revela. Ao ler os contos, fica claro que esta “revisão” se opera no nível da linguagem, e não no que poderia ser uma padronização de estilo.

“Evidentemente dei uma repaginada em tudo isso, uma certa atualização aos contos, porque existe o problema do ‘presentismo’: mesmo que olhe para o passado, você vai estar sempre atualizando-o. Como disse Marx, ninguém volta ao passado, a não ser por farsa”, detalha o procedimento, ao mesmo tempo em que dá pistas para entender suas escrita. “O homem do globo (e outros contos)” é uma obra que não existiria sem a memória.

Memória

É a memória que o contista recorre, seja daquilo que testemunhou, das histórias que ouviu falar ou, ainda, das próprias experiências que viveu. “‘A balada’, por exemplo, foi escrito a partir de uma experiência no mínimo singular, quando fui deixar minhas filhas adolescentes numa festa. No conto, me transformei também em personagem, e me inseri em diversas situações, algumas vexatórias outras engraçadas”, relembra o autor.

Longe de ser homogêneo, a obra de Durval Aires Filho é marcada pela variedade e diversidade. Ainda que possam ser identificados traços recorrentes nos contos (em especial, um olhar para o cenário decadente, que realça as qualidades dos personagens), o que marca a coletânea é uma espécie de estética de camaleão.

A cada conto é evidente o esforço do autor em contar de uma maneira diferente. “A minha forma de contar é constitui um mix entre ficção e crônica. Você não vai encontrar uma experiência estética revolucionária. Porque o prazer mesmo é o de uma boa história, bem estrutura e narrada. Esse é meu ponto central”, define Durval Aires Filho.
 


CONTOS
"O homem do globo e outros contos"
Durval Aires Filho
R$ 26,00
210 páginas
FUNDAÇÃO BOITEUX

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho

 

O HOMEM DO GLOBO

Gustavo Barroso, Moreira Campos, Fran Martins, Eduardo Campos, Caio Porfírio Carneiro, José Alcides Pinto, Nilto Maciel, Natércia Campos e Pedro Salgueiro... Estes e tantos outros Accionistas que não me acodem à memória colocam o Ceará entre os melhores contadores de histórias do país. Sem falar no jurista Durval Aires Filho, que se apresenta agora como ficcionista de aptidões excepcionais, no livro de estreia O Homem do Globo, numa excelente edição patrocinada pelo Ministério da Cultura, e cuja expressividade literária dignifica a herança paterna.

As abas do livro contêm depoimentos de Tarcísio Holanda e Moacir C. Lopes, que não poupam elogios ao talento do novo contador de histórias. Para Moacir Lopes, "A literatura está na memória genética de Durval Aires Filho", sendo parle integrante de sua personalidade. Tarcísio Holanda está convencido de que o Ministério da Cultura decidiu acertadamente quando "patrocinou a edição desse excelente livro de contos".

Durval Filho demonstra ser habilidoso contador de histórias. Frases curtas carregadas de sugestões fazem parte do seu cardápio literário. Em poucas palavras, desenha os retratos dos protagonistas de suas narrativas, além do perfil moral de cada um deles. Seus contos possuem considerável densidade psicológica c mantêm o nível da atmosfera ficcional sem quebra de ritmo. Sua técnica de expor os fatos é extremamente objetiva. Vai diretamente ao que interessa à imaginação do leitor: "Logo vejo as coisas. As pessoas. Os bichos soltos. Os transeuntes. Os vendedores de frutas. Cada qual espichando o seu pregão" (p. 11)

Por aí se conclui que o autor constrói a estrutura de seus contos com extraordinária economia de elementos retóricos. Nisso está de acordo com Machado de Assis: cultiva o hábito de não "dar pernas longas a ideias curtas". Enxuga o discurso de modo que as personagens e os cenários contribuem para fortalecer os objetivos estéticos do livro.

O Enterro (p. 98), no meu modesto entender, é um dos grandes contos do livro. Seja pelos engenhos da linguagem, ou pelo entrelaçamento de fatos rotineiros, ou pela transposição do cotidiano para o âmbito dos valores estéticos, essa narrativa revela a extensão dos méritos pessoais do narrador, que não se afasta um milímetro das exigências do seu ofício. Durante a leitura, me perguntei várias vezes se as atividades de juiz não teriam influenciado Durval Filho na sua tarefa de escritor e observador perspicaz dos conflitos e contradições inerentes à condição humana.

No conto acima referido, a narração é conduzida por um deputado não reeleito para novo mandato. Apesar da promessa dos eleitores. Lamenta a morte fulminante de dona Paizinha, que o ajudara nas tarefas eleitorais. 'Teria morrido de enfarto. Na antiga cama de mola. Uma réstia de sol proveniente de uma telha de vidro. Clareava o quarto escuro. E lançava raios inúteis sobre o rosto pálido e frio" (p. 99). Para encurtar a historia e confirmar dúvidas que assaltavam o deputado, a secretária fizera ligação para a residência de dona Paizinha. E esta, mais viva do que nunca, atendera pessoalmente a comunicação. Esse fato só vem confirmar que a surpresa é fator preponderante até mesmo para leitores acostumados a desfechos inusitados.

Não me seduz a pretensão de fazer, em alguns parágrafos, uma avaliação dos fatos relatados no corpo das histórias de Durval Filho. A complexidade das narrativas tem de ser analisada em seus aspectos gerais, e não apenas de forma episódica. A linguagem literária é um rio caudaloso que se vai aprofundando em vertentes sucessivas. Só os especialistas na matéria, com grande capacidade de intuição, podem captar as metamorfoses que se processam nos subterrâneos do imprevisível universo ficcional. Oportuno destacar a lição de Napoleão Nunes de Almeida, em sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa: "Se a gramática tende a fixar-se em moldes uniformes de expressão, a estilística mira a beleza" (p. 584).

Nos vinte e nove contos do volume, Durval Filho passa em revista os principais acontecimentos a que estamos sujeitos, desde o nascimento até a morte. A pobreza. Os desencontros conjugais. As frustrações amorosas. Os males do corpo e da alma. As ingratidões. As injustiças. As perplexidades metafísicas em face das grandezas e dos imponderáveis. As humilhações e ilusões que nos afligem. As armadilhas e contrafações da sexualidade. E a morte, que nos visita a qualquer hora do dia ou da noite.

Em seu vasto elenco de personagens, encontramos indivíduos de todos os matizes sociais. "Seu Ribamar da Mala Velha. Seu Raimundo das Panelas. Chico Profético. Dona Esmeralda das encomendas". Toda essa gente está em cena no teatro da vida. Tudo acontece naturalmente. Os elogios. As difamações. Os insultos. As mentiras que se vão insinuando nas fechaduras das portas. E até mesmo dentro das igrejas. De vez em quando, um registro sucinto focaliza acontecimentos políticos de um passado recente: "Os generais que administravam o país eram artificialmente admirados. A verdade era que havia muita repressão naqueles anos de chumbo. Era noite. E noite longa. Dessas que custam a passar. Um tempo que não passou distraído" (p. 107).

Livro bem escrito, sem os deslizes a que muitas celebridades fazem a vista grossa. Prosador de linguagem límpida, não sacaneia o leitor com retóricas obscuras e ornamentadas de adjetivos brilhantes. Os textos de O Homem do Globo registram fatos, coisas acontecidas, pessoas de carne e osso, que lutam pelas ideias ou pela sobrevivência. E verdade que se trata de uma obra de ficção. Mas a ficção tem raízes profundas no adubo da realidade. E a realidade, para alguns filósofos, nem sempre é aquilo que parece. São como certos animais que mudam de cor e de pele por uma questão de sobrevivência.

Durval Filho está entre aqueles raros autores que nos brindam com linguagem viva, escrita com o sangue que pulsa nas veias das ruas, onde as multidões costumam ler anúncios de jornais à procura de emprego. Linguagem dinâmica, sem mofo e sem teias de aranha. De vez em quando, um tópico de observador arguto expressa a dimensão lírica do narrador: "Peso no ar. Tempo cor de chumbo. Nuvens formando fantasmas de enormes mamutes no céu. É a vida voltando ao seu lugar" (p. 137). É a ficção voltando a exibir seus encantos nas passarelas dos tempos modernos. A ficção que chega das entranhas das grandes impressoras sem os costumeiros alaridos dos noticiários, que nos vão seduzindo com o seu odor de tinta fresca.

 

Direto para a página de Carvalho

 

 

 

Ana Cristina Souto

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

 

 

 

 

 

 

 

 

 

26.6.2005