Durval Aires Filho
Ela
No começo era uma
relação muito profissional, do tipo “papai-e-mamãe”, sem direito a
retrato e a beijo de língua. Negócio era negócio. Nada de paixão. O
que importava era a grana. “Ela” passou a me consumir e consumia
praticamente toda a minha riqueza pessoal que era o meu salário, o
crédito educativo e umas virações que eu fazia na imprensa. O meu
editor, desconfiava: “menino você anda trabalhando demais”.“Toda
semana uma longa reportagem”. “E com essa tabela do Sindicato, o
Jornal acaba quebrando”.
Exagero à parte, meu
pai, que havia arranjado essa ocupação
free, com a promessa
de que eu comprasse os livros de Direito, também desconfiava. Mas,
socialista como sempre foi, não perdia seu discípulo. Fingia que não
estava vendo nada. Desconhecia as evidências. Deixava que o melão
fosse comido pelas beiradas. Como ele sempre professava, tudo era
questão de tempo e que as conversas deveriam ser sempre de
convergência. Era seu lema: “tudo que nos una; nada que nos separe”.
Ora, com o dinheiro na
mão, com aquele gás terrível, não cansava de transar. Mais tarde,
tornamos íntimos demais. Só depois de me acostumar com o seu cheiro,
de fazer muita ginástica e coreografia em cima da cama é que eu tive
outras liberdades. Acho que, por isso, grudei na morena e fiquei
tanto tempo sem procurar uma dona de casa, ou uma mulher sem
imaginação nenhuma, que só falasse em casamentos, filhos, escolas,
orçamentos e planos de saúde e, eu acho que naquele tempo nem tinha
plano de saúde, mas saúde mesmo era “Ela”. Aliás, só dava “Ela” na
minha cabeça.
Outro noite apareceu
com uma calça elástica branca, botas de couro, dentro de um jaleco
jean, com unhas pintadas de vermelho, ainda assim discreta como
uma felina (“Ela” havia deixado o chapéu goiano em seu quarto, lugar
de trabalho). Aquela aparição causou um certo frisson. Na verdade,
me deu um tesão danado. Naquele instante, tive uma visão de raio X.
Na cama, depois daquilo, “Ela” falou: “vou raspar o tabaco, deixar
só uma ruinha de pentelhos”. Disse-lhe: aqueles pentelhos
chamavam-se de púbis. Ela gostou da palavra, decorou e sempre que
podia soltava: “tirei o púbis, enxagüei o púbis”; “ô, cara de púbis,
será que o meu púbis tá legal ?”
As vezes fazia amor
segurando o meu sexo pelas entranhas. Incrível. Era um gozo
extenuante. E o pior: como possuía mais força do eu, principalmente
quando “pilotava a lambreta”, eu tinha que morder com fúria o seu
dedo médio. Após, falava que estava ficando muito afoito . Discutia
sobre o prazer através do clitóris, sobre o ponto G, outra estória
que lhe ensinei, repetindo lição de uma revista estrangeira. Mas
apesar de todos meu esforços didáticos, continuava a pronunciar “mermão”,
invés de “meu irmão”. Inútil ensinar-lhe que a pronúncia certa não
era “poblema”. Esse era o meu problema porque frustrava o meu plano
de uma dia apresenta-la aos amigos de taça e de texto, quem sabe até
a família.
Era super-limpa, mas
não usava caminha porque não havia essa onda toda de doenças, essa
paranóia de aides, nem também camisinhas em todas as farmácias.
Antes do que “Ela” chamava de “dar serviço”, tinha uma estória de um
banho. “Você, Bem, é meu cliente mais alinhado, avia logo”. Com os
motoristas as coisas eram mais difíceis: “eita gente braba e
fedida”. “Mas comigo é assim”. “Só abro as pernas depois do banho”.
Outro dia eu li no “Povo Brasileiro”, do Darcy Ribeiro, que os
índios, parte de nossos ancestrais, eram as pessoas mais limpas do
planeta. Passavam o dia todo tomando banho nos rios e igarapés.
O que é bom dura pouco.
Foi o “Chuva-Fina” quem me falou. “Ela” estava sendo disputada por
Janjão e Django. Isso me dava calafrios: transformava o espaço que
Ela freqüentava em uma possível ringue ou saloon comum em filme de
faroeste. No final, “Ela” escolheu o forte ajudante, em vez do
motorista, e, não sei bem, foi parar com ele no Pará. “Ela” sabia
que eu não ia ficar ruim. Tinha me avisado: “dotorzinho qualquer dia
arranja uma princesa e nunca mais me procura”. E eu nem desconfiei
que “Ela” estava cheia daquela rotina: manicurar pés e mãos, escovas
nos cabelos, perfumes da coty e, todos os dias, estar sempre com
bom visual no comercinho da noite.
Ao seu modo, fingia que
gostava dos meu discos e jamais pronunciava o nome daqueles
artistas. Botava apelido. Por exemplo, o Milton Nascimento era “o
escurinho da noite”; o Stan Getz, chamava-o de Ivanildo Fogoió.
Mas, o Piazzola, o Ivonildo da Sanfona, “Ela” gostava de verdade.
Era um dia de pouco movimento. As damas, as mariposas, as colegas em
seus postos e nenhum homem, exceto os viventes da casa -- digo: o
Wanderléia e o Titica -- já que não se podia chamar aqueles de
homens. Pareciam mais com insetos.
Aí, eu pedi para
passar “Adios Nonino”. Comprei a ficha para o toca-disco importado
de Chicago, na verdade, um antigo caça-níquel, uma máquina de fazer
festas, cheia de luzes, estranha e maravilhosa, como o facho de neon.
Apertei o botão. Devia ter bebido uns quatro conhaques. E o ambiente
sonorizado ganhou toda a atmosfera dos bordeis de Buenos Aires.
Mulher fortemente maquiada dançando com mulher, entre mesas de
mármore e sinucas, um legítimo tango, exalando muito charme e
sensualidade. Aliás, com muita categoria. Outras, fumando, com
prazer, cigarros muito alongados. Tudo se transformou em espaço de
puro impressionismo.
Naquela noite, “Ela”
aprendeu a dançar tango. Ou, imagino, mulher sensual daquele jeito
já nasce sabendo todos esses passos. Wanderléia ficou injuriado,
saiu dando rabiscada, dizendo que aquilo não era tango, coisa
nenhuma, mas gafieira. Depressa, veio na minha lembrança o “Capim-e-gordura”,
no bairro da Bela Vista. Devia ter uns 16 anos. Assistia atento
aquela gente inventado novos passos, novas danças e contradanças,
com uma inveja danada. Eram, na maioria das vezes, bandidos e
prostitutas que exibiam seus altos dons. No intervalo, uma
mulherzinha, com mais ou menos um metro e meio, me fitou de longe,
partiu ao meu encontro e, de repente, aplicou-me uma enorme tabefada
no rosto que eu virei, beijando a quadra. Sílvio do Bossa Nova, meu
companheiro de curiosidade, me ajudou a levantar do chão. A “fuampa”
queria apenas armar uma confusão, “botar boneco”, como se diz mais
recentemente. Ainda partiu para cima de mim, dizendo que ali não era
lugar para otário, zemané, filho de papaizinho ou baitola como
imaginava que eu fosse.
Titica, um condenado
pela previdência social cuja banca do jogo de bicho era ali mesmo no
“Senadozão”, avaliou: “Ela” dançava melhor que a Vera Ficha, a mesma
que me vendeu as fichas. Chovia muito naquela segunda-feira, dia de
segunda chamada e eu perdi a prova do professor Raimundinho. Tive
receio em contar-lhe o motivo de minha segunda ausência. Mas,
sabendo das preferências pecaminosas do ilustre mestre, passei a
minha estória do tamanho da minha proeza. Ele estava no Bar do
Câncio, em Messejana, “exugando” uma cerveja estupidamente gelada.
E, olhando a minha fisionomia, receio que ele não acreditou muito
naquela parada. Mas concedeu-me uma nova chance de ser avaliado na
sua disciplina só pela fantasia, com um bônus de outra estória
contada pelo próprio ensinante: um catedrático, amigo dele, depois
de um coito (coisa que fazia porque ficou viúvo), não sabendo o que
era “banho techo ”, usou a água da bacia para lavar o rosto, em vez
do pau e refez ainda a sua garbosa cabeleira.
Quando “Ela” fugiu com
Django eu já estava apaixonado, digo eu e, não tenho muita certeza,
o Janjão (um cara da pesada que eu nunca conheci) provavelmente,
deixando ambos abatidos, tristes e desnorteados. Perdeu a mulher que
queria roubar do cabaré e, ainda por cima, levava o peso de não
contar mais com o ajudante de tantos anos de carga. Eu tive menos
prejuízo. De um lado, foi um alívio. Django sabia da minha
existência. Agora estava longe. “Chuva Fina” e Titica sempre me
preveniram dessas presenças na área em que eu podia aparecer, caso
contrário ele tinha me quebrado, como quem quebra palitos de fósforo
só pelo prazer de ouvir os estalos.
Juro: só queria dar
um banho de loja, convidá-la para ser minha madrinha na festa de
formatura e continuar a fazer muitas andanças pelos bulevards da
cidade até descer à Praia Formosa, hoje, o endereço do Marinas Park.
Nada mais. Até que o magrelo do “Chuva-Fina” me avisou: “chega de
tristeza, chega de saudade, tem lançamento na praça”. É claro que o
“fantástico Show da vida” devia prosseguir.
Ainda meio nostálgico,
fiquei freqüentando por algum tempo as casas noturnas que
sobreviveram aos novos tempos, mas sem pegar nada especial. Como
dizia um amigo meu, que foi marinheiro, com presença marcante nos
cabarés de Marselha e Amsterdã: “depois que a morena partiu, você
ficou reflexivo demais, tal um sapo, comendo vaga-lumes, na certeza
de está saboreando as estrelas mais belas do firmamento” .
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