Poussin, Rinaldo e Armida

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Manoel de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

 

 

 

 

 

 

Adaucto Gondim

 

 

 

 

 

 

 

Ana, a madrinha, e o Soares, uns dois anos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Soares Feitosa

Coleção Três Enigmas

Uma lembrança de viagem

 

A estrada que vai é a mesma que vem, como se fosse um saco, era assim a nossa aldeia, e o isolamento conseqüente. Pior, porque também não tínhamos aquela figura mágica do trem, como aquele de Nova Russas, com seus viajantes e suas notícias. Então, tínhamos de gravitar em torno de nós mesmos, quando ali, em comum, éramos a feira, a igreja, as estrepolias do vigário, as manhas do nosso coronel — que Deus os tenha a ambos, padre e coronel, Inácio e Honório — quem viveu se lembra.

Nossa ligação cultural com o mundo exterior era um jornal de assinatura, de grande atraso postal, porém lido, relido e treslido como coisa atualíssima, ali na bodega do seu Manoel Valdevino. Aquilo era um centro cultural, com certeza. Seu Manoel, dono do jornal (parece que era o Nordeste ou o Unitário) mais os sábios do lugar: Heldenir Mesquita, Antonino Isidro Rocha, Zé Ulisses, Raimundo Valdevino, Regino Amaral, eu ainda não, porque era menino, e menino não participava de conversa de gente-grande — todos numa roda de grande animação. 

Mas lembro das coisas. Dos roçados do Regino Amaral, lá pras bandas da estrada do Catolé, lugar Gabriel, eu me lembro, sim. Diziam que o Regino plantava roçados de 320 litros de milho. Agricultor que fosse grande se contentava com uma terça de milho, ou, no máximo, uma medida. Para quem não sabe, uma terça eqüivale a 5 litros; uma medida, 10 litros. Pois o Regino fazia uns roçadões imensos, de 320 litros, 2 alqueires de sementes de milho. Fico agora pensando: seria de milho miúdo? Ou, daquele de caroções bem grandes, como os dentes largos do Gerardo André? Se fosse de milho graúdo, ainda bem, era mato de menos para limpar; mas, se de milho cateto, ah meu Deus, esse Regino deve ter sofrido o diabo para limpar tanto chão de mato. 

Contam que ele fazia uns ajuntamentos de trabalhadores e os incentivava, no final do aceiro, com uma bolsa de rapadura, um maço de cigarros, um bode, até um bode — um cabrito por certo, também não vamos exagerar — esse Regino colocava a prêmio a quem chegasse primeiro com a tarefa cumprida, o chão espelhando de mato nenhum, só as plantinhas inocentes no meio do sol quente. Tudo manualmente, na enxada, no muque, porque não tínhamos máquinas. 

Em meio a esse trivial de roçados, rapaduras, secas, bodes, maridos, chuvas, profecias, chifres e viagens, corriam à solta os nossos cantadores. Heldenir Mesquita, Zeulisses, Raimundo Sabino, Zé Aurélio, dentre outros, se danavam a fazer versos, os versos de Judas, com a sua grande festa no sábado de aleluia. 

Tínhamos, porém, o nosso poeta verdadeiro — não que eu esteja dizendo que os versejadores do Judas não fossem poetas verdadeiros, pelo contrário, verdadeiríssimos, mas este outro era o nosso poeta oficial, o Antônio Souto:
 

                       “Uma medalha de louça
                       no firmamento aparece
                       é bela, é bonita, é moça
                       quando não míngua, cresce”.
 

 Ah, o nosso reisado, era o Boi dos Caretas. Liguei para o meu compadre-primo, advogado Luís Souto Teixeira, irmão do “cantador” Zé Ulisses, e perguntei se mestre Varela era dos “Caretas”. Ele disse: 

— Era não, compadre, pelo contrário, seu Varela virava bicho contra quem o chamasse de Careta. Foi porque ele usava uma barba fechada, dessas de assombrar menino, e fazia uma cara de mau — mas boa gente — e muito feio, ganhara o apelido de Careta. O pessoal dos “Caretas” era o Raimundo Tõezim, o Luís Prazeres, o José Chagas, o Pedro Mateus, e mais outros cujo nome não lembro mais. 

Claro que os “Caretas” era uma arte belíssima, cheia de  pulutricas, tudo em verso, com muita malícia. Tínhamos também a dona Maria do Gildo, nossa rezadeira-oficial. Contavam, como sendo dela, um versinho perverso, de quando o marido, Gildo, pra morrer, doido pra comer o cozido de um bode que estava a berrar no quintal, pedira para Maria matar o bode, ao que ela ter-se-ia saído com esta:

                         “Vai o Gildo, vai o bode
                         fica a Maria no pagode”

 

E ficou. Não no pagode, que a velha era séria até demais. Almoçava nas casas dos “brancos”, como ela dizia. Um dia, pedi a ela para contar a história do “pagode”; ela não gostou nem um pouco e brandiu a bengala para um corretivo... “Anísia, este teu menino tá virando mundiça” — disse.

Desconfio que a produção intelectual do velho Antônio Souto perdeu-se toda, como está a se perder a dos nossos cantadores do Judas e as presepadas do Boi dos Caretas. Cabe-nos uma recolha daquele material, com certeza. A escritora Laís Almeida Chaves, o padre Geraldo Oliveira Lima e o ex-prefeito Serapião Alves andaram escrevendo algo de nossas memórias, mas o resgate da parte lúdica dos versos e das cantorias, dos reisados e presepadas ainda está por fazer.

 Tínhamos uma raça de músicos, os Alfredos, onde Chic’Alfredo, Zezé, Pedim, Mané, e mais outros Alfredos cujo nome não lembro, eles sozinhos faziam uma orquestra, a nossa banda de música, piston, trombone e tudo o mais que fosse instrumento bonito de soprar e bater. Para dizer que a orquestra não era apenas Alfredos, havia o Manoel Aceno, nosso multi-faz-tudo, músico, com seu bombardino imenso, fon-ron-fon-fon, que também era pedreiro, carpinteiro, pintor, ferreiro, dono das bicicletas de alugar e caçador de botijas em casas velhas. Desconfio que esse Mané Aceno também fazia versos.

 Depois, a chegada de mestre Demétrio, um mestre-de-obras mais categorizado, como se fosse um arquiteto, com ares de intelectual, figura boníssima, e um livro que emprestou para a minha mãe, Enciclopédia de Conhecimentos Práticos, que até pólvora, de casca de laranja, ensinava a fazer. Foi quando o casario de Monsenhor Tabosa, tão igual, tão biqueira; com o novo mestre, o Demétrio, passou a ganhar ares de modernidade.

Em suma, todo o nosso isolamento, mas tínhamos os nossos poetas, a nossa cultura interior. Lembro do Luís Leitão. Viajávamos no velho Ford-F5, do seu Honório, uma viagem imensa, Fortaleza-Monsenhor Tabosa, 3 dias de viagem, muitos atoleiros, o velho caminhão quebrou no Jacampari, antigo Catolé, e esse Luís Leitão danou-se a falar coisas sábias, da Segunda Guerra Mundial, acho que até da Primeira ele falou, da dívida do Brasil — 80 milhões, ou já eram bilhões, sei lá, acho que nunca pagaram aquela conta! — e tantas outras coisas. Quem melhor fazia um discurso do que Luís Leitão? Não tenho certeza se foi no mesmo F-5, um desastre terrível, morreu noutra viagem. Teria deixado alguma coisa escrita o Luís Leitão?

Contam que o Regino chegou a fazer um jornal em Monsenhor Tabosa, naquele tempo. Ele mesmo manuscrevia uma folha bem grande e ia de porta em porta — e eram poucas as portas em nossa aldeia — ler as notícias, de viva voz. 

E as serenatas. “Por favor, meninas, fechem a porta, que eu vou fazer uma serenata” — dizia o Regino às moças da calçada. E mal a chave rangia por dentro das camarinhas, Regino abria o vozeirão, devidamente surdinado por um caneco de alumínio — era assim que ele cantava, com um caneco em trompa — contam as bisavós de agora, as moçoilas de então.

Lembro dele, sim. Viajávamos num caminhão para Fortaleza, numa parada daquelas bem animadas no hotel de dona Mendonça, em Santa Quitéria, e Regino falava de um certo Marcel Proust. Quem diabo será esse tal de Marcel Proust, perguntava-me admirado com o saber do conterrâneo. Agora, na maturidade, Regino Amaral planta seu livro, um resgate bem de dentro das raízes das árvores, porque ele de há muito sabia de Marcel Proust e já plantava dois alqueires de milho. 

                                         Francisco José da dona Anísia 



Caro SF:

Acabo de ler Uma lembrança de viagem, belo texto de memórias de um poeta. O memorialismo é elemento primordial de sua poesia, mas em você o poeta não se contenta em fazer apenas poesia. E escrever também em prosa, e bem, é coisa bastante rara entre poetas. Acredito que você poderia um dia reunir esses depoimentos, fazer um livro. Essas suas recordações da infância são verdadeiros baús de espanto, como chamaria Mário Quintana. Valeria um livro, talvez na linha do que fez Thiers Martins Moreira em O menino e o palacete. É um gênero fascinante.
Abraços do seu amigo

André Seffrin

 

 

 

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Rinaldo e Armida

POUSSIN, NICOLAS (1594—1665), França