Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

José Mário da Silva 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Poesia:

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do(a) autor(a):

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

José Mário da Silva

 

 

Para Helena Parente Cunha, com as doze cores vermelhas do afeto

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   Mito. Invenção. Fantasia. Conhecimento do mundo. Utopia. Inconformismo. Artesanato. Experimentalismo. Visão de futuro. Revisitação e nostalgia do passado. Luta com as palavras. A mais vã. Resistência e obsessão. Salvação. Nadificação. Inutilmente, multiplicaríamos conceitos e compreensões sempre aquém da complexidade fascinante que rege e imanta a fenomenologia poética.

Melhor assim. No lugar dos impasses e aporias das insuficiências teóricas, o culto hedonístico-reflexivo propiciado pelas experiências humanas transfiguradas pelo verbo que se faz carne e habita as polissêmicas órbitas do sentido. Eis-nos diante do Quadrante Lunar - Calibán-RJ-2005, livro de poemas mais recente do cearense/pernambucano Majela Colares, um dos mais representativos integrantes da lírica brasileira contemporânea, toda ela caracterizada pela presença de um verdadeiro mosaico portador das mais díspares tendências.

Da inventividade experimentalista ao confessionalismo inarredável. Da dicção coloquial ao erotismo transgressor. Da dimensão social contestatória às insistentes recorrências metalingüísticas. Da concisão minimalista ao retorno dos poemas longos. Tudo/nada cabe no território caleidoscópico da poesia e do seu fundante e transfigurador discurso.

Quadrante Lunar, com o rigor construtivista já exibido em A Linha Extrema, um dos livros anteriores de Majela Colares, transita por várias temáticas que cartografam o pleno domínio demonstrado pelo poeta em relação ao seu ofício. A metalinguagem, verdadeira obsessão das poéticas pós-românticas, ocupa significativo espaço na tessitura lírica engendrada por Majela Colares.

Em "Motivos para um poema" (p.11), poema com que se inicia o livro, as dimensões dionisíaca e apolínea se cruzam e entrecruzam na temporalidade exata e conflituosa que está na raiz e base do alvorecer poemático. Aqui, alumbramento e cálculo se dialetizam e dão forma ao ato/processo da criação literária, feito de uma indissociável simbiose: inspiração e transpiração. Espanto diante do complexo e fascinante mistério da vida. Trabalho para internalizar as sensações, amadurecê-las, delas se distanciar o suficiente para impedir que a sua representação verbal caia na vala comum da confissão em estado puro e, por fim, fazê-las habitar, autonomamente, no estésico edifício erguido com o cimento das palavras.

Daí, a consciência estética de quem sabe ser o poema tanto "o dilema das incertezas" quanto o fruto maturado de uma "razão pura". Mas as reflexões metapoéticas a que se entrega Majela Colares, em recorrentes fases/faces do seu Quadrante Lunar, não se confundem nem se confinam no epigonismo cabralino em que têm naufragado certos construtos de nossa contemporaneidade lírica; antes, incursionam pelos níveis de dizibilidade e indizibilidade que nuclearizam o ser da poesia, isto é, as potências e os limites inerentes a todo ser/fazer/dizer do poema.

A invenção do poema (p.27), oitavo texto do livro, se processa exatamente sobre esse modo de operacionalização da poesia. "A página livre, a mão discreta, uma manhã rabiscada, um céu de agosto, meia dúzia de verbos, mente inquieta, a infância de um sol posto", dentre outros ingredientes meticulosamente arrolados, compõem a matéria prima de que se utiliza o poeta para a construção do seu poema. Mas, tudo, da "beleza nua e extrema", aos trançados logopéicos perseguidos pelo poeta, confluem para o "silêncio sem fim da língua morta". O poema, desse modo, nasce do silêncio e para ele se volta, lembrando, quem sabe, "o molambo da língua paralítica" de que nos falou o poeta paraibano Augusto dos Anjos, em seu clássico poema A Idéia.

Das vertentes metapoéticas à melopéia reinante. Nascido em Limoeiro do Norte-Ceará, e de há muito radicado em Recife, Capital pernambucana, Majela Colares, desde cedo, deve ter se afeiçoado à rica musicalidade nordestina, traduzida e protagonizada pelo cantar dos repentistas, emboladores de coco, cordelistas, improvisadores, autênticos representantes da vasta e fecunda tradição da literatura popular.

Nessa fonte pródiga e inspirativa, bebe, a largos sorvos, a poesia de Majela Colares, particularmente a que se presentifica em seu belo Quadrante Lunar. Quem duvidar que pouse o seu ouvido nos ritmados e decassilábicos dísticos finais de Poema da manhã nascente e Minha aldeia e meus chinelos, respectivamente.(pp.35/41) "o silêncio maduro não distante/ na garganta de um galo, um sol nascente" e "se no universo penso e me confino/é que meu mundo trago em meus chinelos", verdadeiros motes que, na pena de um Pinto do Monteiro, gigante da improvisação poética nordestina, dariam matéria verbal para memoráveis pelejas, à semelhança das muitas que já integram o antológico repertório da literatura popular.

A poesia simbolista, sabe-se bem, destoando voluntariamente do mimetismo fotográfico de certo parnasianismo decorativo, confluiu para as dimensões oníricas e intuitivas de um real que se pretendia captado em sua essencialidade inefável, bem para além das categorias exponenciadas pela razão. Daí a emergência do símbolo, compreendido esse de forma diametralmente oposta à que tem no convencionalismo semiótico a sua conceituação basilar.

A poesia de Majela Colares presente em Quadrante Lunar, com o traço de modernidade que lhe é inerente, a meu ver, incursiona por esse peculiaríssimo modo de rastrear a realidade. Esquadrinhando a alma das cores, a anatomia dos dias, o âmago dos espaços, desde os da intimidade da casa aos das encenações públicas, a poesia tensa de Majela Colares finda convertendo-se em agudas meditações filosóficas sobre os grandes temas que sempre acompanharam o homem em sua longa e traumática peripécia histórica: o amor e sua abismal teia de encontros e desencontros; o mito e sua obstinada busca pelo sentido originário das coisas; a morte, enigma maior, "angústia de quem vive e descida do mistério", conforme os dizeres de Vinícius de Morais e Fernando Pessoa.

A poesia de Majela Colares esconde, por detrás de idílicas e aparentemente bem comportadas descrições líricas das paisagens citadinas observadas, um angustiado recorte metafísico, matizado pela presença de uma subjetividade exasperada diante dos absurdos  que pairam sobre a existência; e da dor, cósmica/ontológica/ancestral, igualmente essencializadora da desconcertante condição humana.

O belo poema Cantiga do eterno instante (p.77) ilustra bem esse ponto. Nele, "o estranho sonho da arte e os múltiplos disfarces da dor pontuam o vigor originário de um lirismo pensante e visceralmente comprometido com o (im)possível desvelamento do mistério do ser. Como diria o semiólogo português Salvato Trigo, a poesia perfura o hímen da palavra e atinge o gozo estético da expressão. Quadrante Lunar que o diga.

José Mário da Silva é ensaísta e professor paraibano

 

 

 

 

 
Marcia Theophilo

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 
 

José Mário da Silva

 

 


DA AURA DO DEUS MIX AO SHOPPING DO HOMEM MÚLTIPLO: 
UMA POÉTICA CALEIDOSCÓPICA

(Cassas: Reinvenção da poesia e da vida)
 

Para Adriano Espínola, à Beira-Sol da poesia
 

Poderíamos dar início a este ensaio afirmando que o Maranhão é uma ilha cercada de poesia e de poetas por todos os lados. Se é exercício ocioso enumerar a todos os que competentemente têm feito da áspera luta com as palavras seu pão estético de cada dia e a ração diária de uma sobrevivência que se espraia para além da ritualizada rotinização comportamental cotidiana, poderíamos, assim mesmo, lembrar a densidade ontológico-metafísico existencial que imanentiza o luminoso e corrosivo imaginário poético de Nauro Machado, a fecundidade rítmico-imagística de Arlete Nogueira da Cruz, sobretudo a que se delineia na sua belíssima Litania da Velha, o telurismo impregnado de elevado pathos humano de certo viés da apolineamente celebratória poética de José Chagas, Ferreira Gullar e suas Muitas Vozes, dentre outros que compõem a cartografia lírica da iluminada ilha.

Agora, prosseguindo essa rica tradição de luminosos artesãos da palavra poética em suas múltiplas direções, surge Luís Augusto Cassas, cuja poética caleidoscópica, estranha e delirantemente visionária se tem constituído como um dos mais bem realizados projetos literários de nossa lírica contemporânea.

Considero caleidoscópica a cartografia poética engendrada por Luís Augusto Cassas porque, recusando-se criativamente a se enquadrar de forma passiva nesta ou naquela vertente estético-filosófica, sua poesia, portando exacerbada sede de eternidade e obsessiva ânsia de infinito, transcende, pelo alto poder transfigurador de que se reveste, as gramáticas mais rígidas e convencionais das elaborações epistemológicas mais previsíveis, e, guiada por uma peculiaríssima e transgressora lógica que rompe os interditos, venham eles de onde vierem, propõe, universal e transdialeticamente, uma espécie de síntese cosmogônica de tudo, atravessada por uma visceralmente dramática compreensão do universo, através de um vertical incursionamento pelas camadas mais abissais da sua mais significativa e errante personagem histórica: o homem, com os seus desafiadores enigmas e encantatórios sortilégios.

Significativa, porque é a partir do horizonte de expectativas gestado pelo ser humano que tudo, a materialidade objetiva do mundo circundante e os abismos da interioridade subjetiva, ganha o desafiador estatuto e emblemático contorno de uma enigmática esfinge que gera e produz significações (in) decifráveis; errante, porque a travessia humana, em suas mais variadas peripécias, se tem nuclearizado pelo indeclinável sentimento de uma permanente busca, uma incansável procura pela utopia plenificadora; por fim, histórica, por ser no palco impuro da história que as intersubjetivas relações humanas se constróem, ora eufórica, ora disforicamente.

A universalidade do projeto poético gestado pela febricitante imaginação poética de Luís Augusto Cassas provém do fato de que, se por um lado, é das motivações produzidas pela territorialidade geográfica de São Luís que emerge o seu fabulário multi-estratificado; por outro, o recorte telúrico, reordenado por níveis crescentes de acendrada fantasia, é apenas ponto de partida, nunca de chegada, de um transmanente vôo poético em busca constante pela totalidade das coisas, dos seres, dos fenômenos, da linguagem, da poesia; enfim, de tudo o que compõe o vasto e heteróclito repertório da plural e cósmica existencialidade humana.

Já a transdialeticidade, de que o imaginário poético de Luís Augusto Cassas se nutre, na compacta corporeidade de cada verso inventado, com a cumplicidade vigilante da tessitura afetiva dos seus ritmos e imagens, e da sua tonalidade situada nas estésicas fronteiras entre o lúdido-epifânico e o profético-apocalíptico, sinaliza para uma espécie de núcleo ideativo de base ostensivamente holística que, escavando uma espécie de mítica memória ancestral do ser, recusa as dicotomias empobrecedoras e o binarismo recepcional previsível das leituras reducionistas e setorizadas da realidade.

Aventura irreprimível da liberdade criadora, a poesia mobilizada e posta em cena por Luís Augusto Cassas, ancorando-se no porto mágico de uma espiral infinita de sentidos, é uma movediça arquitetura semântica que a si mesma se (des) classifica do ponto de vista de um enquadramento genológico unidimensional, rebelando-se contra os rótulos e etiquetas por vezes postos por uma crítica sistêmica incapaz, diria Eduardo Portella, de ouvir a voz do silêncio ou perceber, mesmo minimamente, os sentidos que ultrapassam as enganosas estruturas imanentes à superfície textual.

Secreta via de um originalíssimo itinerário mental, como o que aflora do fremente diálogo entre discípulo e mestre no estuário semântico do inquietante BHAGAVAD-BRITA-A Canção do Beco, a ascese por que passa o discípulo em busca da iluminação de sua própria consciência segue a estranheza dos roteiros incomuns que, ao fim e ao cabo, podem levar ao bem supremo, exatamente a escorregadia unidade, mas sem a frieza glacial da tirania racionalista, antes com a orquestração consorciada e harmônica de todas as dimensões que essencializam o complexo plural a que na falta de melhor rótulo chamamos de ser humano, cuja maior dificuldade, diria o sinuoso narrador de Clarice Lispector nas asas do seu selvagem coração, é ser humano.

No Sermão do Beco, pregado em três sincronizados tempos, a pedagogia existencial emanada, em cujo estuário consorciam-se tecelagem barroca e acendrado panteísmo cósmico, conflui, uma vez mais, para a única conversão em que acredita o poeta e que se depreende da sua fusionista cosmovisão, o correlacionamento sujeito X objeto, a indissolubilidade entre Deus e o homem, entre a materialidade concreta das raízes da terra e a diafaneidade azul do cromatismo celestial, entre a treva, contraface do bem, e a luminosidade, por vezes disfarce do mal.

Nesse sermão, cuja profissão de fé e credo mais acalentado têm na percepção totalizadora da existência seu paradigma comportamental predileto e parâmetro axiológico inafastável, a bênção maior é a reconciliação do homem com a ordem cósmica de que ele emergiu e para onde voltará, de acordo com a opção mater-espiritualista do eu-lírico multifacetado que Luís Augusto Cassas construiu e fez circular na sedutora diegese lírica que inventou com tanto rigor estilístico e tão arraigado centramento na vitalíssima escola da experiência, ponto final do seu obsessivo evangelho poético integratório, no qual "Deus e a matéria são uma coisa só".

Repelindo enfaticamente qualquer ranço dogmático, seja ele de inspiração física ou metafísica, a poética transmanente de Luís Augusto Cassas, consoante o belíssimo Agradecimento Final do Discípulo Depois da Iluminação com Pedrada no Cocuruto, propõe o desvendamento do ontológico mistério do ser como algo a ser obtido como resultado não de uma epifania episódica e circunstancial, tragada pela desoladora finitude de um tempo fragmentário porque aprisionado ao mero transcorrer inflexível das horas, mas pela recorrente e obstinada travessia do caminhar de todos os instantes, "esvaziando-se o cheio e enchendo-se o vazio", até o atingimento totalizador da sábia lição do beco, tornar o poeta, e a tantos quantos lhe espreitam o labiríntico roteiro, a imagem e a semelhança do coração, território confluente dos mais díspares e às vezes aparentemente inconciliáveis sentimentos.

Sinfonia de uma procura existencial imanentizada por uma, convém reiterar, irrefreável sede de eternidade e ânsia de infinito, flagradas ambas pelo poeta em cada espetáculo do cotidiano, mesmo nos mais aparentemente prosaicos e intranscendentes, a música final do concerto polifônico do Bhagavad-Brita- A Canção do Beco, com a sua intencionalíssima exortação conclusiva, quer atingir o cerne do ser, e, enfim, cumprir a sua alta missão de poesia que, conjugando admiravelmente a inalterabilidade do verso com a inesgotabilidade da imagem e a vertical profundidade de um pensamento radicalmente transgressor porque corajosamente contra-ideológico, como diria o semiólogo português Salvato Trigo, perfurando o hímen da palavra, produz o gozo estético da expressão.

Migramos do cais da polimórfica canção do beco e desembarcamos, uma vez mais, no porto do sagrado em cujo espaço destituído da indiferenciação homogeneizadora de valores e percepções, de acordo com as postulações conceituais de Mircea Eliade, emerge, triunfante, O Retorno da Aura, protagonizado por Luís Augusto Cassas não na busca modista e ridiculamente burguesa pelas paisagens exteriores e macrocósmicas, precário roteiro que às vezes nem consegue disfarçar, como diria Caetano Veloso, a condição de avesso, de avesso, de avesso do velho consumismo estéril em cujas águas turvas a cidadania e o cultivo da subjetividade são tragadas pelas demoníacas engrenagens da ilusão.

A aura, recuperada por Luís Augusto Cassas na encantatória magia verbal do seu febril e incontrolável imaginário poético, não está situada em Jerusalém, Meca, ou qualquer outra mítico-mística geografia planetária, mas na difícil odisséia de volta para dentro de si mesmo, no exigente pacto ético de polimento do próprio coração, para que ele enfim, translúcido como um espelho, se converta num palco sereno em que a vida possa desabrochar com a força soberana de sua celebratória plenitude.

Promovendo a interpenetração dos contrários e, mais que isso, desconstruindo falsos dualismos, a poética de Luís Augusto Cassas, "aos pés do cosmos", faz contracenar, na mesma tessitura sígnica, o sagrado e o profano, face e contraface de um mesmo espetáculo humano, ancestral e jovem, sórdido e sublime, vulgar e solene, em cujo âmago nada há de novo sobre o solo, senão o ingente percurso da busca e a alucinante procura da aura, entre outras coisas, "ora escurecida na perda do amor pelo prazer, ora vilipendiada pelo elogio do ressentimento em lugar do perdão, ora obscurecida pela cobiça em vez do desapego e fragmentada pelas ideologias de falsos profetas e poetas".

Na poética de Luís Augusto Cassas, penalizado qualquer ludismo gratuito e inconseqüente, repelido qualquer retoricismo vazio e esteticamente inconsistente porque desprovido da verdade humana essencial, atributo inafastável de qualquer obra de arte que se preza, há uma alta e assumida consciência de missão ética, para além de qualquer filigrana de ordem estilística ou propriamente genológica.

É que, radicalizando as relações entre a vida e a arte, como fizeram os arautos da desreprimida poética romântica com a excentricidade contracultural dos seus profetas, loucos e dândis, Luís Augusto Cassas, trazendo no peito o fogo prometeico que Prometeu roubou dos deuses e doou aos homens, num visceral gesto de comprometimento com a liberdade, compreende a poesia como a mais revolucionária de todas as artes, daí, "entre um corpo e outro corpo, entre um espírito e outro espírito, o poeta, que cultiva a humildade, "não com devoção, mas com drummondiano constrangimento, e que nasceu em São Luís do Maranhão onde o vento faz a curva e a ilha é parada final de urubus e aviões", bradar, com a força inexpugnável das suas convicções ético-estético-existenciais, as jupiterianas verdades do seu credo e apostolado transdialético e transpoético; no limite, mais que divino porque humano, demasiadamente humano.

Do Retorno da Aura e das suas fecundas transmutações e alquimias densamente transfiguradoras, rumamos, com os olhos embriagados de imagens e a alma encharcada de poesia por todos, para o mais que envolvente território da paixão e sua indisciplinada liturgia, em cujo epicentro, o amor, a Deus, a vida, a si mesmo, à mulher amada; enfim, a tudo o que integra o vasto enredo da existência, paira soberano como a mola propulsora da vida em suas plurifacetadas dimensões.

Precedida paratextualmente de um luminoso prefácio, a liturgia passional a que Luís Augusto Cassas se entrega com a ostensivamente visível volúpia dos santos e dos místicos, nada tem de idealista nem de ingênua, antes tem consciência nítida dos interditos que intentam obstaculizar a transmanência do vôo humano em busca da plenitude, mas, mesmo assim, se nutre do desejo maior, único pastor de sua humano-divina ascese, que é, nas asas e nas garras do amor, "descobrir o paradoxo de todos os mistérios e desnudar a plenitude de todos os fracassos".

A Liturgia da Paixão, cartografada multidirecionalmente por Luís Augusto Cassas, para além das sombras que a espreitam e contra ela conspiram, renova a profissão de fé no homem, e, mais que isso, faz do espírito o esconderijo mais privilegiado da esperança , e da esperança, o antídoto mais seguro contra os volumosos caudais de desespero que ameaçam subjugar não somente a arte, mas todo e qualquer projeto civilizatório gestado nos incertos tempos do aqui e do agora, nos arraiais da pós-modernidade relativizadora de tudo e de todos.

O amor, orficamente celebrado por Luís Augusto Cassas, recusa as bem arquitetadas algaravias de inúteis e desnecessariamente complexas elucubrações mentais, para ser flagrado, com a conspiração de todos os sentidos, no "centro da folha branca", onde o mistério luminoso da poesia, com a sua insaciável fome e sede de infinito, paradoxalmente se desentranha das mais prosaicas e aparentemente desimportantes cenas do cotidiano, como,por exemplo, a caseira matemática do lavar os pratos, o diálogo com as formigas, o brincar com as crianças, o alface que se prepara para a salada e, por fim, o bom dia à mangueira, gestos que, lembrando um pouco a objetivista poética caeiriana, conferem ao caleidoscópico olhar do poeta maranhense a nitidez e primitividade de quem, litúrgica e permanentemente posto em estésico estado de paixão e êxtase, quer recuperar o mundo em sua (im)possível virginal intocabilidade, e , mais que isso, com ele, nas asas de uma transmanente paixão litúrgica, assinar, racional e intuitivamente, um pacto de perene e poética comunhão.

Na apaixonada liturgia amorosa protagonizada por Luís Augusto Cassas, há também espaço para a corrosiva e afiada faca só lâmina de uma lírica que não suporta a teatralidade inautêntica de uma Alta Sociedade que tem na posticidade das atitudes e no culto espúrio à cartografia dos simulacros , o seu paradigma comportamental predileto.A amorosa e passional liturgia inventada por Luís Augusto Cassas, ao mesmo tempo em que propõe a comunhão universal de tudo com todos, reconhece, com pungente consciência, que o roteiro traçado para a convivência do eu com o outro é espaço do atrito que fere, do conflito que esmaga e da fratura que mata; sabe também, com Eduardo Portella, que, se por um lado, "somos um ser para o outro e fora do diálogo o que existe é o precipício"; por outro, não ignora que a verdadeira "coroa de espinhos é amar o próximo ainda que distante", daí a cortante e paródica sentença final da pungente oração do Poema da Vã Glória ou Da Glória Vã, "Crucifica o próximo,Senhor. Crucifica-me junto com o outro, pra ver se o suporto no paraíso".

Promovendo magistralmente o acumpliciamento dos contrários e a fusão dos mais aparentemente inconciliáveis paradoxos, a liturgia passional de Luís Augusto Cassas celebra ardentemente o amor, e, mais que isso, busca, através dele, restaurar a primitiva unidade de todas as coisas. Da Liturgia da Paixão transportamo-nos para uma Ópera Barroca, na qual, transitando do escárnio para o maldizer numa espécie de revivescência moderna da jocosa, não raro escrachada, poética contestatória dos trovadores medievais, Luís Augusto Cassas, ancorando-se no hegemônico motivo da cidade, centralíssimo nas poéticas da contemporaneidade, canta, às avessas, a ilha de São Luís, pondo em evidência, numa mesma cena lírica, ora suas grandezas, ora o caráter predatório de uma traumaticamente asfixiante modernidade, em cujo estuário, para usar a expressão adotada por Marshall Berman em seu fecundo ensaísmo, "tudo o que é sólido, desmancha no ar", nada ficando de pé diante da voragem impiedosa do progresso, seja o "ciclo do algodão-ciclo do barão-ciclo da jaca-ciclo da mulata-ciclo dos coronéis-ciclo dos cartéis- ciclo do boi- ciclo do já foi".

Aqui, nas asas da vigorosa denúncia social que esses versos encerram, a lacerada e impotentemente cultivada memória do passado é esmagada pelo fraturado e intranscendente tempo presente, tornando-se incertos todos os horizontes de expectativas de um futuro, mais que desconhecido, ameaçador, já que, cindida ao meio, a cidade, dolorosamente cantada pelo poeta, é uma clivada partitura cujas notas musicais mais efetivamente significativas jamais se harmonizarão.

Uma é a nostalgia impotente do que se foi; a outra, a inalcançável utopia do que nunca se vai ser, daí, a "ruína barbárie / de uma acareação em série / redundará às duas / uma procissão de cáries / uma está entrevada até os ossos / a outra tem penhorada as veias do pescoço / uma está tombada / outra desmoronada / uma quer exílio / a outra, auxílio / mas na embaixada do meu peito / meu coração em beleza / põe mesa e lhes dá asilo".

Exilados ambos, o poeta e a sua cidade, natural extensão das suas vivências íntimas, só lhes resta, ao desolado poeta e à arruinada cidade, o asilo da poesia, coreografado pela força escarninha do seu debochado ritmo e aquecido pelo fogo purificador de sua virulenta e cortante tessitura imagística.

Da Ópera e seu dramático barroquismo seguimos para o Shopping de Deus. Lá encontramos não somente a alma do negócio como também a imagem mais irretocável do multifário e tumultuado espírito da modernidade dividido entre a hóstia e o cartão de crédito, entre a fé avulsa e a razão convulsa, entre o céu e o inferno de cada eternidade feita sobre os escombros fugazes de cada epifânico instante.

Discordo da afirmação do ensaísta Marcelo Coelho quando ressalta que na obra poética de Luís Augusto Cassas tenha havido uma fase marcadamente religiosa, da qual o Retorno da Aura e Liturgia da Paixão pontificam como momentos culminantes, a que se seguiria um mergulho mais vertical na materialidade do mundo, acerca do qual esse inquietante Shopping de Deus se corporificaria como a onda mais efetiva.

Não. O conceito de fase, pelo que implica de estanque e estacionário, me parece absolutamente incompatível com a poliédrica cartografia de um imaginário poético deslizante que parece estar, desde o primeiro verso produzido, celebrando ou querendo celebrar, contra todas as interdições inerentes à nossa congênita falibilidade, uma espécie de síntese universal de tudo,"matrimônio e litania dos opostos, somente para usar duas belas imagens mobilizadas pelo poeta maranhense.

Caleidoscópica e portadora, isto sim, de múltiplas faces que coexistem simultaneamente na tessitura plural de uma vasta e complexa identidade poética que, no limite, chega a lembrar o heteronímico projeto estético idealizado por Fernando Pessoa, Luís Augusto Cassas, tanto quanto o genial Pessoa, parece querer "deixar ao cego e ao surdo a alma com fronteiras, para sentir tudo de todas as maneiras".

Por essa razão, também discordo frontalmente das leituras setorizadas que insistem em reduzir o Shopping de Deus, inventado pelo mercador das palavras , Luís Augusto Cassas, ao unidimensionalismo redutor da mera denúncia social das narcotizantes engrenagens do consumismo, do qual o shopping, imantado por sedutora aura, funcionaria como clausura predileta, templo primordial e porta-voz oficial da sua irresistível propaganda.

Aliás, contra o equivocado lugar comum em que normalmente claudica a crítica das obsessivas sondagens do conteúdo, desatenta aos negaceios e malandragens da forma e dos subterrâneos simbólicos do texto, ainda que tal separação obedeça apenas às travessias do recorte didático, o próprio eu-lírico multifacetado do abrangente sistema poético engendrado por Luís Augusto Cassas afirma, em acendrada postura metalingüística, "Se alguém disser / que é a favor do espírito / mas é contra a matéria, / não me compreendeu: / quem não está comigo / não está nem consigo".

A angústia na poesia de Luís Augusto Cassas, nem sei bem se esse é o termo adequado, nada tem do desolado niilismo imanente a significativas parcelas da lírica presentificada nos decantados tempos pós-modernos, nem muito menos se organiza em torno do surrado mote segundo o qual a nossa era prioriza a matéria em detrimento do espírito. Nada disso. O desconforto estético-ético-religioso-físico-metafísico-lógico-ontológico que recobre todas as camadas afetivas da expressão poética do notável poeta maranhense e lhe empresta um tom e dicção originalíssimos em nossa plurifacetada lírica contemporânea, em cujo estuário não falta nunca a celebradíssima esperança, provém exatamente do fato de que a poesia e o homem, a arte e a ciência, a fé e a razão ainda não foram capazes de perceber que são faces indissociáveis de um mesmo projeto divino-humano que clama por total plenificação.

Por último, desembarcamos no híbrido e desconcertante santuário do Deus Mix, de cujo código bíblico, recriado paródica e palimpsestuosamente, emerge uma procissão de preces que, caleidoscopicamente uma vez mais, consorcia o alto e o baixo, o solene e o trivial, a suma transcendência e a mais desauratizada percepção da fenomenologia humana, tudo urdido e curtido por um refinado pathos humorístico e por uma extremamente risível alquimia verbal, mas que nada tem, que fique bem claro, do raquítico ludismo trocadilhesco em que se convertem certas escrituras poéticas da contemporaneidade, indigentes de imaginação, criatividade, e, mais que isso, de um mínimo de verticalidade no processo, nem sempre fácil, de acumpliciar fecundidade imagística e profundidade de pensamento.

No divertido humor presentificado na poética de Luís Augusto Cassas não falta a gravidade alegre do sempre presente tom de meditação existencial polimorficamente lançado sobre todos os desvãos e abismos de quantos existem e compõem a multifacetada realidade humana. Seguindo as trilhas abertas pelo Shopping de Deus e com ele mantendo nítidos vínculos de relacionamento e dialogicidade textual, o Deux mix, nascido da sugestão dada pelo rei Davi que, em sonhos, visitou o poeta maranhense solicitando-lhe, onírico-visionariamente, a empreitada de celebrar, para além do conúbio Deus X homem, o próprio mundo em sua santa materialidade ou espiritualidade materializada, de modo a, rasurando o empobrecedor superficialismo das falsas polaridades, ratificar a recorrente proposta de quem, assumidamente multifário, tem como desiderato ético-estético maior, a cosmogônica síntese universal de todas as coisas.

Como diria Adélia Prado, a poética de Luís Augusto Cassas "funda reinos, inaugura linhagens, e, para além disso, cumpre a sina de, transdrummondianamente, penetrar,surdo-barulhentamente, no reino das palavras e reinventá-las, porque, com Cecília Meireles, decerto o poeta maranhense aprendeu a bonita lição segundo a qual, "a vida só é possível reinventada". Bendita, pois, a reinvenção da vida promovida por Luís Augusto Cassas sob a égide de uma tão caleidoscópica poética.
 

José Mário da Silva é professor 
de Teoria da Literatura na 
Universidade Federal da Paraíba, Campus II.

 

 

 

 

 

 
Ana Cristina Souto

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Astrid Cabral