Luciano Bonfim
ESCREVER É IGUALZINHO
A COMER MEL DE ENGENHO
COM FARINHA
Este exercício irá
discorrer sobre: escrever é igualzinho a comer mel de engenho com
farinha dentre outras providências e considerações motivadas a
partir do texto Joelhos e Mel (em anexo) do Escritor e Poeta Soares
Feitosa da Serra das Matas e do Mundo da Internet.
Explico:
1. João Cabral de Melo
Neto em uma de suas mais belas e populares criações poéticas nos
propõe:
CATAR FEIJÃO
Catar feijão se limita
com escrever:
joga-se os grãos na
água do alguidar
e as palavras na da
folha de papel
e depois, joga-se fora
o que boiar.
Certo, toda palavra
boiará no papel,
água congelada, por
chumbo seu verbo
pois para catar esse
feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e
oco, palha e eco.
Depois da leitura de
Joelhos e mel – Feitosa, Soares. Ceará: Cururu, 4.5.2004, de
madrugada. (mesmo não sendo este o sentido proposto pelo
autor)desconfio,) também, escrever é igualzinho a comer mel de
engenho com farinha. Creio que não apenas o mel de engenho, mas,
também, o mel de abelha – abelha com ou sem ferrão, (Jandaira, Jati,
Italiana ou Africana)não importa. O que influência, nestes casos, é
a qualidade da flor ou fulô, por exemplo: se a fulô é de Marmeleiro
ou Sabiá, o mel é claro; se é de Jurema Preta, escuro; sendo de
Oiticica, além de verde e espesso possui um cheiro forte que me
causa enjôo e repugnância:
“Veja, sou doido por
mel de engenho, com farinha. Com cuidados porém, que essa mistura
tem ciências. O mel não pode ser por demais espesso, nem muito fino;
nem a farinha, peneirada, ou caroçuda. Em suma, uma coisa deliciosa,
porém cheia de manhas.” (1o trecho)
Escrever é igualzinho a
comer mel de engenho com farinha.
Essa mistura tem
ciências e artes (como a arte tem ciências e a ciência tem artes).
O mel não pode ser por
demais espesso(mas tem gente que gosta, assim como tem escritor que
gosta de escrituras desta natureza ), nem muito fino(idem ao
anterior).
Escrever é uma coisa
deliciosa(?), porém cheia de manhas; Assim como deve ter manhas quem
come mel de engenho com farinha. Manha, arte e ciência. (Referências
ao 2o trecho).
A mãe (a língua mãe)
vinha com um prato vazio (uma folha em branco). O mel de engenho(o
mundo disperso e intenso das palavras, mas não a própria palavra)
era posto no prato-parto. A farinha nem peneirada nem caroçuda por
demais – as palavras nem caroçudas nem peneiradas por demais. As
palavras no mundo. No mundo disperso e intenso, caótico e obtuso.
Na cabeça a golda
encefálica, o mel, o engenho, o gênio.
Então, o jovem comia...
as palavras embebidas de mundo, de vida.
Ela dispunha
manhosamente o mel, ele, mestre que se tornara em comer mel de
engenho com farinha, ‘sentava-se à mesa e comia morigeradamente’.
Insaciável em sua procura, o escritor busca palavras para o ainda
vazio prato-parto, em seguida retira as caroçudas ou do gênero das
coisas chochas e as cospe longe, bem longe mesmo.
O mel é líquido, um rio
também é líquido(“mesmo secos permanecem cheios de lembranças”),
para se navegar é preciso uma canoa, a canoa do tempo.
Farinha. A farinha traz
idéias.
Mãe mais mel. O
silêncio da mãe – passividade ou crueldade? É um silêncio com
emoção.
Mãe mais mel. E o
viciado, para alimentar(se) (a)o vício, rouba o que pode e o que
não pode - até a sua própria vida. Língua-mãe, mais mel. Mel e
palavras. Farinhas do mundo caos – caos da língua-mater e não do
idioma- pater.
“O ritual se repetia
muitas e muitas vezes, até que o prato ( a rigor, um alguidar,
imenso) completamente cheio de mel com farinha, ele entendia que
‘ponto’ da mistura estava ótimo.” (3o trecho)
“ O ritual se repetia
muitas e muitas vezes...”, me puxou por Drummond :
‘O LUTADOR
Lutar com palavras
É a luta mais vã
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã
(...)
O ciclo do dia
Ora se conclui
E o inútil duelo
Jamais se resolve.
(...)
Tamanha paixão
E nenhum pecúlio
Cerradas as portas
A luta prossegue
Nas ruas do sono.
O prato, um alguidar
imenso – uma enorme folha em branco, o mundo. A vida completamente
cheia de afetos, fúria insana, mel, palavras, imagens, gozo,
farinha, brevidade e fuga...
No texto de Soares
Feitosa o ponto está entre aspas.
“(...) ele entendia que
o “ponto” da mistura estava ótimo.”
Pergunto: saberá de
fato o escritor o ponto em que o prato estará pronto? Ou como sugere
Fernando Pessoa : o segredo da busca é que nunca se acha.(?)
Para o escritor,
guardadas as devidas diferenças, todas as possíveis e
inimagináveis, quando o ‘texto’ estará no “ponto” ?Ou, quando o
texto fica “travoso”?
Fica “travoso” ou no
“ponto”, por parte de pai ou por parte de mãe? Pelo mel ou pela
farinha? A fome, o grande dessassosego, interfere neste ‘ponto”? A
fome é maior que a vaidade? A fome é o tempero? Ou, o forte é o
querer se ver livre do indigesto prato-texto e vê-lo impresso(fezes
ou gases ou aproveitado pelo organismo), e esperar a critica suína
ou a inaladora ou a visceral e cósmica nos jornais e revistas e
afins? Ou, na realidade é esperar pelo coquetel de lançamento e as
figuras “ilustres” que disseram que vão aparecer e escrever um
artigo elogioso no caderno de cultura do jornal local?
Caneta-colher- erguida
para ceifar palavras.
A mãe se levantava e
levantava a mão, no mesmo silêncio e passava-se para as costas.
Quando ele solta a
colher é por que a vida aconteceu, a vida que esta fora deste
comer-ritual?
Quando ela :
“(...) espetava-lhe
gentil e rapidamente a polpa dos dedos. Sem dizer palavra conferia,
na fita de medir; e enlaçando-lhe os ombros com as duas mãos,
retirava, no maior silêncio, por cima da cabeça dele, o prato
transbordante de mel” (5o trecho)
O que me veio à cabeça,
a princípio, foi a imagem da ‘bruxa’ da casa de chocolate(s) de
João e Maria: mostre-me o dedo e o caldeirão esperando na sala
vizinha.
Há um código silencioso
entre a língua e o escritor que se banqueteia em sua mesa farta.
Códigos entre dois
incestuosos amantes.
Neste código, a mão ou
a polpa dos dedos ganha uma importância singular e se transfigura
numa espécie de ‘consciência’ ou ‘auto-consciência’, por parte do
escritor- filho guiado pela língua-mãe. Silenciosamente ou como
prefere o autor : “sem dizer palavra”, ela conferia na fita de
medir. A fita, pergunto, também uma forma de consciência ou
maturidade guiada pelo conhecimento de outras experiências e outros
autores, uma espécie de bom senso?
E cruel como uma
madrasta de contos de fadas tradicionais ou uma bruxa má dos mesmos
contos, retirava no maior silêncio a folha, vazia de mel, mas
antagonicamente, não mais em branco. E o prato é retirado ‘por cima
da cabeça dele’, onde está a golda encefálica, o engenho, o gênio. E
percebam que o papel mesmo o escritor (o filho) tendo comido mais e
mais e mais, continua transbordante de palavras, mundo, farinha e
mel.
“Até que, um dia
repetido todo o ritual da sobremesa, ela, em vez de enlaçar-lhe os
ombros e puxar-lhe intacto o prato de mel, retornou à mesa, pegou a
menor das colherinhas de café, e tocou-a com a parte de baixo no mel
com farinha, na parte mais mel, só convexo, pelo lado de fora:
— Meu filho, a
dosagem está suportável .” (6O trecho)
A partir deste momento
seguindo a seqüência lógica proposta inicialmente pelo autor e pelo
texto, confesso que me perdi ou não entendi direito o que os mesmos
querem dizer, mas o importante não é apenas descobrir o que o autor
quis me dizer, mas o que a obra me suscinta.
Neste sentido, seguirei
o raciocínio que me escolheu para apreender este texto, tendo-o
escolhido também, o raciocínio, para perceber algumas
singularidades.
‘Até que um dia
repetido todo o ritual da sobremesa...’
Alguém pode dizer, sim
mas o autor fala de sobremesa e não de almoço ou jantar, como pode
parecer no meu comentário em alguns trechos do mesmo. Afirmo : O
almoço e o jantar somos nós no tempo e no espaço comendo(-nos) e
bebendo(-nos) (n)o mundo. (Construindo signos e
roubando significados).
Quando ela puxa-lhe
intacto o prato de mel e retorna à mesa, munida de uma colherinha de
café e toca o mel com farinha com a parte de baixo da colher e diz:
“— Meu filho, a
dosagem está suportável.”
“Ë sempre bom lembrar
que um copo vazio está cheio de ar” , canta Gilberto Gil.
Ë sempre bom lembrar
que o silêncio por diversas vezes habita o texto antes deste trecho
anteriormente citado, mas o silêncio, este silêncio está carregado
de pulsão de vida e morte. Quando ela, a língua-mãe, resolve se
sentar à mesa e puxar do filho-escritor o prato intacto para que
eles, por exemplo, troquem umas idéias e tal, e talvez por isso,
(re)volto a perguntar: Neste momento, será a maturidade do escritor
que chegou e foi percebida pela língua a ponto de poderem sentar
juntos ? Ou será o momento em que ele mais necessita de ‘conselhos’?
E, ela diz :
Publique-se. Ou arquive-se. A dosagem está suportável(?).
O escritor não crê o
bastante, permanecem à mesa...e rolam no chão:
“E os joelhos de ambos
foram insuficientes para tanto amargo.” (Trecho final)
Me apoiando nos ombros
de Carlos Drummond de Andrade(OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO), concluo
este primeiro momento.
“Chega um tempo em que
não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta
depuração
Tempo em que não se diz
mais: meu amor.
Porque o amor resultou
inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas
o rude trabalho.
E o coração está seco.
(...)
Pouco importa venha a
velhice, o que é a velhice?
Teus ombros suportam o
mundo
ele não pesa mais que a
mão de uma criança.
(...)
Chegou um tempo em que
não adianta morrer.
Chegou um tempo em que
a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem
mistificação.
2. Outras providências
e considerações, (que não serão, neste momento, devidamente
aprofundadas, apenas apresentadas não para causar confusão e
dividir opiniões, mas, sim, para estimular o diálogo.
Como o texto me permite
uma livre abordagem livre, permito-me ‘viajar’ no mesmo e a partir e
para além). Quais sejam:
2.1 Também vi neste
prato-processo-parto-literário um monte de tempos e espaços e
coisas e não coisas do mundo-mito (do) sertão, ora senão: o mel de
engenho vem de onde? Mas antes, Navegar é preciso, colonizar é
preciso, capitanias... senhores de engenho/ escravos(casa grande e
senzala) Para se produzir a cana : preparar o terreno; para preparar
o terreno: força de produção(escrava), depois, plantar e esperar o
pendão anunciar o tempo certo para o corte. Para o engenho temos o
senhor de engenho para a senzala e para a produção, temos “a
negraiada”, segundo diziam alguns.
E a farinha? a
mandioca, (não a “manirote utilissíma”, a mandioca mesmo): a sua
lenda de criação, os nativos nossos ancestrais, os caboclos
aprendendo o processo de produção nas casas de farinha. Arrancar a
danada, trazer em surrão carregado em lombo de jumento ou burro,
serviço p’ra homem– divisão social do trabalho- às mulheres cabia o
raspa que raspa, o espreme que espreme... purgar, forno,
p(r)onto....
Acho que este texto
pela temática é muito representativo do mundo nordeste brasileiro,
não me refiro aqui a estilística nem a teorias literárias mas muito
mais aos aspectos sociais e afetivos e... , da construção de nosso
ser.
2.2 Dr. Freud em seu
trabalho intitulado TOTEM E TABU, no capítulo 1 e para além do
mesmo, apoiando-se e ampliando conceitos trazidos pela antropologia,
nos fala das linhas de parentesco entre diversas tribos primitivas,
aborígenes australianos...(O horror ao incesto; tabu e ambivalência
emocional, etc). Quando você, Soares, apresenta a figura materna
neste ritual, não sei por que cargas d’água me veio a seguinte idéia
que pretendo desenvolver numa outra ocasião.
Penso numa linha de
parentesco do escritor e da escrita pela linha feminina: o escritor
e a língua (Nossa mãe).
Também existem as
linhas masculinas: o escritor e o idioma(Nosso pai ).
E uma terceira, as
linhas da fratia : o escritor e as palavras / o escritor e os
fonemas. (Nossas irmãs e nossos irmãos)
3. Rodger Rogério
interpreta no lendário LP Ednardo e o Pessoal do Ceará – Rodger e
Tetty : Lado A faixa 5 :
“ Se a morte vier me
encontrar
Ela sabe que eu estou
entre amigos
Falando da vida...
E bebendo num bar.”
Pode ser que eu não
tenha entendido nada de joelhos e mel.
Pode ser que o amor
exista
(pode até o amor não
ser fatal )
Quero correr este
risco, este perigo.
Que os ombros suportem
o mundo.
Evoé, Soares Feitosa!
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