Marcos Roberto dos Santos Amaral
Com pesar e
´pena de lembrar que em breve nada restaria do
peregrino em terra hospitaleira, onde vagara; nem
sequer a lembrança desta alma´; e com a consciência
do fim iminente de sua vida; sabendo de que nada
resta senão o vulto de um passar na terra: ´uma
esteira de espumas... - flores perdidas na vasta
indiferença do oceano. - Um punhado de versos... -
espumas flutuantes no dorso fero da vida´, Antônio
Frederico de Castro Alves (1847 - 1871) legou à
posteridade louros que coroariam a fronte da
humanidade: ´seus cantos, como as espumas, que
nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, filhos
da musa - este sopro do alto, do coração - este
pélago da alma´. A obra desse poeta é o motivo
central dessa edição.
Como se dá a travessia de Castro Alves desde 1870
aos dias de hoje? Por que, com ´o seu frescor de
orvalho e fulgor de diamante´, a poesia de Castro
Alves não sofre a injúria do tempo que danifica as
glórias e enxota as notoriedades? Onde está o seu
segredo? Na sua eloqüência comicial que se desata,
mesmo no momento murmurante, em que no desalinho de
uma cama, celebra o seu amor por uma mulher? Na
chuva de hipérboles e metáforas que troveja entre as
nuvens e astros da sua noite condoreira, juncada de
amores e indignações? Na sedução de sua vida breve
de poeta romântico, inspirado, que viveu a sua
própria antecipação entre alegrias e amarguras, e,
na qual, os dias devem ser avaliados numa
contabilidade que os dobre ou os multiplique?
Ou mais, por que fulgura e nele sente-se o borbulhar
do gênio? Por que é poeta distinto por ´lírico
amoroso´, que se exprimia quase sempre sem ênfase e
às vezes com exemplar simplicidade, como no formoso
quadro do poema ´Adormecida´? Por poeta descritivo,
-pintando com admirável verdade e poesia a nossa
paisagem, tal em ´O crepúsculo sertanejo´? Por que
poeta épico-social, desmedindo-se em violentas
antíteses, em retumbantes onomatopéias?´ Ora, há que
reconhecer nele, mal-grado os excessos e o mal gosto
ocasional, a maior força verbal e inspiração mais
generosa de toda a poesia brasileira´, conforme se
manifestou Manuel Bandeira apaixonada e
solidariamente. Ambos acometidos por tuberculose, o
mal do século, em ainda jovens, - o romântico logo
foi morto, aos vinte e quatro anos, o modernista,
assombrado pela companhia durante anos da iniludível
das gentes, em sua prolongada Consoada.
O olhar da crítica
Euclides da Cunha apontou para que ´há no seu gênio
muita coisa do gênio obscuro da nossa raça´, já José
de Alencar, em carta a Machado de Assis, padrinhos
de Castro Alves na apresentação deste à corte
literária, anunciou o Cantor de Iracema que nele
´palpita o poderoso sentimento da nacionalidade,
essa alma da pátria, que faz os grandes poetas, como
os grandes cidadãos´.
Talvez se indague tanto sobre a vitalidade e
perenidade do poeta pelo fato de que, conforme
constatou José Veríssimo, ´poucos livros
brasileiros, e menos de versos, têm sido tão lidos´,
sabemos que livros relidos são livros eternos.
A crítica polemiza entre si, dentre variados temas,
em torno de questões sobre sua originalidade e
autenticidade; sobre seu estro oratório, afeito para
ser declamado em meio ao público, em praças e
teatros; sobre sua relação particular com o
romantismo brasileiro; sobre a fragilidade de sua
obra irregular e impetuosa; por fim, e,
principalmente, sobre sua poesia de clamor social.
De todos os pontos supracitados habitualmente
deslumbrados pela crítica castroalvina, o último,
sua poesia de vertente social, é ponto pacífico. Não
há voz que se erga da multidão, com sonoridade e
vibração audíveis tal quais para calar o brado
grandíloquo do poeta dos escravos.
Já em relação aos outros temas destacados da
crítica, em tratando do poeta baiano, os
posicionamentos são os mais controvertidos e
duvidosos. A respeito, Afrânio Coutinho, em seu ´A
Literatura no Brasil´, indica que ´uma das maiores
dificuldades antepostas aos estudiosos desse poeta é
a ignorância reinante, mesmo entre exegetas, do que
se faz e fazia naquele tempo, agravada pelo fato de
não infundirem respeito (ou confiança) as
contribuições válidas de nomes hoje obscurecidos,
sem embargo da projeção de que tenham gozado, ou da
influência exercida. Daí o perigo de afirmações e
classificações aligeiradas do aparato documental, e
a quase inanidade de justificativas históricas a
serem, assim, formuladas pela primeira vez´.
Os críticos ou se fazem partidários e aficionados
exaltando o poeta Castro Alves enquanto o mais sagaz
condor dos mais altos picos da excelência poética;
ou se aferram em apontar equívocos direito à obra
castroalvina. M. Cavalcanti Proença sobre Castro
Alves dá nota dos ´movimentos, que vez por outra,
surgem entre os intelectuais, tendendo em
valorizá-lo ou desmerecê-lo, e em cujas raízes, se
encontram, muitas vezes, o bairrismo, a política ou
o primitivismo exclusivista, chegando às fronteiras
da polêmica´.
Os desentendimentos alcançam tal ordem a ponto de se
hostilizaram em seus artigos os estudiosos. Caso
houve, quando, tematizando a poesia de Castro Alves,
saiu um comentário asseverando: ´Castro Alves não é
nenhum gênio´. Em resposta, o editor do ´Jornal de
Poesia´ (página on line) tripudiou: ´Concordamos com
dona Marilene (grifo nosso): Castro Alves não é um
gênio; Castro Alves é um grande gênio´, depois do
que assina, alcunhando-se o jargão - do poeta Soares
Feitosa, aprendiz.
O engajamento literário
É possível seja o discurso social o mais destacado
por que Castro Alves se solidarizou com o povo
americano, com o seu povo - com o povo do Brasil.
Tinha ´o coração do homem e a alma do cidadão´,
enlevou-se Machado de Assis*; José Veríssimo
evidenciou o fato de o poeta ter reclamado nosso
ideal humano; Érico Veríssimo, por sua vez, em sua
´Breve História da Literatura Brasileira´, lembrou
que Castro Alves ´voltou os olhos às feridas
crônicas e sempre sanguinolentas dos escravos e
fez-se a si o paladino do abolicionismo, enquanto a
maioria cutucava suas próprias feridas fazendo-as
sangrar por que isso lhes dava bons motivos para a
produção da poesia´.
´Em vários de seus poemas -prossegue o autor de
´Olhai dos Lírios do Campo´ - Castro Alves antecipou
as reivindicações proletárias que viriam muitos e
muitos anos mais tarde´. Perscrutando a alma do
poeta: ´tinha compreensão humana e compaixão.
Possuía, desse modo, um admirável senso de
fraternidade´.
Um
poema não interessa somente pela
causa que defende. Possui interesse
também, como deve esperar-se,
principalmente, pela essência
ergocêntrica de seus elementos
poéticos e estilísticos. Deve-se
estudar a obra procurando deslumbrar
o que a torna una e única; o que a
faz uma obra poética por si e como
tal; e o que a faz uma obra poética
além das demais; não mais uma entre
as demais.
A poesia castroalvina tanto afeiçoa
ao coração quanto à mente.
Surpreende em virtude, energia e
graça dos aspectos formais, de
imagem, plásticos e sonoros
extremamente sensíveis e
interessantes à fina intelecção.
Afrânio Coutinho, num meio-tom entre
uma nota de elogios e entre um
diapasão de advertência, registrou,
com sóbrias palavras: ´em ´Vozes
d´África´ e em ´O Navio Negreiro´, a
cada instante o pensamento social é
soterrado pelo pensamento poético, o
fato pela metáfora, o real pelo
idealizado. Somente um artista
absolutamente desinteressado da
validade histórica de sua obra
poderia construir um de seus mais
arrojados e mais valiosos trabalhos
sobre um anacronismo; somente Castro
Alves se empolgaria, como o fez em
´O Navio Negreiro´, por uma
concepção altamente plástica - a dos
negros chicoteados num tombadilho -
sabendo que o tráfico de escravos
havia sido extinto dezoito anos
antes. Era também, a crer nas datas
dos manuscritos, o império do poeta
sobre o homem, que o levaria a
transformar ´Prometeu´ em ´Vozes
d´África´, isto é, um poema inseguro
em favor do ´povo infeliz, mártir
eterno´, no formidável clamor em
nome da África, onde a imaginação
tomava rédeas nos dentes e punha em
ação a engrenagem de suas leituras.
Ele compreendeu, ou pelo menos
sentiu, o que nenhum outro
contemporâneo (exceto Varela)
parecia compreender ou sentir: o que
confere a uma obra de arte poder
sobre o tempo não é a causa que
defende ou o sentido de que se
imbui. É sua qualidade. A utilização
extraliterária de uma obra que
sobrevive são os frutos, os
percalços, da sua permanência´.
Os caminhos da leitura
Puxamos das habenas que dão ritmo à
nossa pesquisa um pouco para darmos
arejo a alguns somenos. Primeiro,
com Afrânio Coutinho, simpatizamos
com uma corrente da crítica
literária que se ocupe e que se
concentre em saídas relativas à
construção orgânica da obra, sua
estrutura, sua armação estilística,
recursos poéticos lexicais, sonoros,
plásticos, etc., em outros termos,
que aponte a qualidade instituidora
do poético a uma obra.
Depois, observamos que, na voz do
crítico, são percebidas as duas
perspectivas que antagonizam a
crítica sobre Castro Alves, embora,
neste caso, atenuada pela postura
mais rigorosa e cerebral em
consideração a obra castroalvina: de
um lado, o reconhecimento do estro
sofisticado de poeta dado a Castro
Alves; por outro lado, a positivação
de seus cacoetes, característicos de
sua discutível estilística, entre
outros, que a crítica se empenha em
corroborar, em sua poesia. E, enfim,
Afrânio Coutinho parece responder à
indagação inicial, qual seja, de com
que arte o poeta fez sua travessia
pelos, impiedosos e intempéricos,
tempos e, presentemente, se impõe
com a força que tem. A qualidade de
sua obra é responsável por sua
longevidade vital, é o que o
notabiliza como o poeta de uma
casta. Importante essa qualidade ao
poeta. Lembrando de um poeta que não
a houve em gênio, o crítico é
severo: - ´´Os Cânticos Juvenis´,
com que estreou Carlos Ferreira em
1865, ou o poema ´Leonor´ de Almeida
Cunha não podem ser lidos senão às
gargalhadas´ (grifo nosso).
Ainda percorrendo com Afrânio
Coutinho, mais especificamente com
sua concepção de crítica literária,
transcrevemos o seguinte trecho de
seu já citado ´A Literatura no
Brasil´. ´A formação básica da nova
crítica opõe-se frontalmente a do
séc. XIX. Enquanto essa, como
salienta Damaso Alonso - que é,
diga-se de passagem, um dos líderes
da revolução crítica - dirigia-se à
obra literária indagando sobre a sua
gênese, perguntava-lhe porque, como
se deu sua formação, a nova crítica
passa a investigar o que é o poema.
Uma, a oitocentista, á genética,
historicista, extrínseca, a atual é
estruturalista, intrínseca,
ergoêntrica, em vez de buscar a
origem do poema, procura estudar a
sua natureza, a sua estrutura,
segundo a sua ´unicidade´, as leis e
constantes de sua existência como
tal. A do séc. XIX era histórica, a
atual é estética´.
´Uma ponto é, todavia, - o crítico
literário, prevendo alguma objeção,
explica - essencial a sua
compreensão: ela não isola o fato
literário do seu contexto geral, mas
o encara nas suas relações com os
outros pontos da vida, sem, contudo
sacrificar o que deve ser o ponto
precípuo da análise crítica, isto é,
o núcleo intrínseco´.
O discurso inflamado
A eficácia da palavra cantada,
pronunciada por um poeta é de tal
ordem que atinge o real, tornando-o
construtor do mundo. O charme da
voz, a sedução, ´sortilégios de
palavras de Mel´ remete-nos a Peithó
e ao seu poder de fascinar,
correspondendo ´no panteão grego, ao
poder que a palavra exerce sobre o
outro´, segundo Edilene Matos. A
estudiosa esclerece que Castro Alves
segue uma tradição, culminando na
denominada ´oratória baiana´, que
vem dos primeiros tempos da Bahia,
de Vieira com Os Sermões, passando
pelo seiscentista Gregório de Mattos
a Rui Barbosa, entre outros.
É costume atribuir aos românticos um
relaxamento formal que não
corresponde inteiramente à
realidade. Marilene Felinto esboçou:
´aliás, a qualidade da obra de todos
esses poetas românticos que morreram
tísicos e cedo demais devia ser
revelada (querendo-a depreciada, a
autora?), senão por motivos
estéticos, ao menos por que não
tiveram tempo suficiente para
amadurecê-la´.
Ânderson Braga Horta, em seu artigo
´Os erros de Castro Alves´, tem uma
visão diferente, bem mais acertada e
menos abusada: - ´certo não tinham
eles [os românticos], em geral, o
mesmo rigor de linguagem dos
parnasianos, mas atirar-lhes o labéu
de ignorância lingüística é pelo
menos exagero´ (deixemos claro que,
como transparece em Horta, não
creditamos aos parnasianos,
exclusivamente, essa imagem de
impecabilidade estilística).
Horta estuda, então, uma série de
motes que fazem ou, supõe fariam,
questões a respeito da balda de
incorreções que lhe é imputada ao
poeta. Discute o tema com a seguinte
perspectiva - propõe - : ´da
releitura que fiz de Castro Alves
destaquei os pontos mais
provavelmente inquináveis da pecha
de incorreção, e quase
invariavelmente concluí
favoravelmente ao Poeta. Há
problemas que saltei, ou por me
parecerem menos relevantes, ou por
estarem devidamente solucionados,
outros que não pude solucionar, como
a crase em ´à meia voz´, na 2.ª
estrofe de ´A Canção do Africano´, a
concordância em ´Família, leis e
Deus lhes coube em sorte´ (´Desespero´,
2.ª), terceiros que devo atribuir a
contaminação do coloquial (´Fazem
hoje muitos anos´, 1.º verso de
´História de um Crime´). É pouco
para a condenação, até porque não
terá tido o Poeta condições de
proceder a cabal revisão de todos os
poemas´.
Lembra, esse crítico, nessa
passagem, o que já advertia, com
toda sua sagacidade de grande
escritor que foi e é, logo do
princípio da meteórica ascensão e
permanência literárias do jovem
poeta; José de Alencar, após lhe ter
lido o drama ´Gonzaga´, em que se
continha as primícias de seu
talento. O escritor cearense pareceu
prever que o tempo faltaria ao
poeta, por isso o justificou: se
castro Alves pecou algures: - ´a
culpa (se existe nesse caso) não foi
do escritor; foi da idade. A
sobriedade vem com os anos; é
virtude do talento viril´. Ainda
tomando da voz do pai de Iracema,
Peri e Ubirajara, observamos que
Castro Alves não fala para alguns
que se preocupem com algo de menos
importância; - ele fala,
principalmente, para ´o Brasil que
sente; do coração, e não do resto´.
A originalidade
Sempre ao se ler Castro Alves, tão
logo, se depara com alguém
levantando o problema da sua
autenticidade e da sua
originalidade. O problema, a bem da
verdade, não é significativo, pois
não é seguro falar de fenômenos
literários, porque mesmo os grandes
escritores, não o são isoladamente
absolutos, estão situados
historicamente, sendo passíveis de
precedência e procedência
literárias, não estão de todo livres
de influências, inclusive, e tanto
de outros escritores, quanto sobre
outros escritores.
Entretanto, se algum ainda se
assanhe por que o poeta tenha
´imitado´ Victor Hugo, lembramo-lhe
o que estudamos, há pouco, e o que
conhecemos, agora: da latência
social e humanitária de Castro
Alves; portanto, é de se esperar
natural admiração e proximidade ao
cantor de hinos à Liberdade, uma vez
também porque à época foi o escritor
Victor Hugo o exemplo maior, louvado
máxime por causa de sua verve
política e nacionalista.
Caso insista, damos a pena a Machado
de Assis - e a sua autoridade -,
Cícero do jovem Dante: ´sua índole
irmã levou-o a preferir o poeta das
Orientais. Achei um poeta original.
A musa de castro Alves tem,
portanto, uma feição própria´.
Mas ´a praça é do povo, como o céu é
do condor´, e o céu é a poesia, e o
condor, o poeta... O tom oratório de
sua poesia é amiúde discudito por
seus estudiosos. Érico Veríssimo
justificando o fato de não
encontrar, dentre as obras da época,
outras que suportassem a releitura
como as do poeta, de inspiração tão
eloqüente, explica que ´ele tinha
paixão por palavras e sua inclinação
à grandiloqüência era tão forte que
seus poemas foram descritos por um
crítico como condoreiros´.
A singularidade romântica
astro Alves tem cidadania
especial dentro do Romantismo. Surge
para a poesia num momento em que o
romantismo estava já prenunciando
esgotamento, e quando, como é
natural, avistavam-se
descontentamentos com a estética
vigorante e anseavam-se por uma nova
literatura. Muitas vezes, foi tido
como epígono do romantismo. Érico
Veríssimo diz ser o poeta Castro
Alves a maior figura do romantismo.
José Veríssimo conta-nos que Castro
Alves ´passada a sentimentalidade
sincera, mas pouco variada, e que
sob o aspecto de expressão acabara
por se tornar monótona, das gerações
precedentes, a inspiração de Castro
Alves apareceu como uma novidade -
concluindo em seguida: com castro
Alves, pode-se dizer que se alarga a
nossa inspiração poética,
objetivam-se o nosso estro e os
poetas entra a perceber que o mundo
visível existe´. Por sua vez,
Afrânio Coutinho ´se a classificação
de Castro Alves dentro desta ou
daquela escola é de somenos
importância, não o é o estudo de sua
posição em face do Realismo. Aqui,
sua poesia investe de uma dupla
significação histórica: retoma a
tradição azevediana, afirmando a
estética romântica frente a o
classicismo; e estabelece uma
oposição de qualidade à acomodação
do Ultra-romantismo como sistema
lírico, constituindo-se no principal
artífice de uma nova concepção da
realidade na poesia brasileira´.
Uma figura antitética
Em respeito a Castro Alves, tudo
parece girar em torno de uma
dicotomia - poeta genial versus
poeta anódino. Essa relação aponta
para mais uma impropriedade de
postura da crítica que,
efetivamente, se empenha em
confirmar desmerecimentos da obra de
Castro Alves.
De fato, é uma obra irregular e
curta, mas isso se dá pela natureza
mesmo do poeta, de imaginação
efervescente que inunda e
transborda; de impaciência de moço,
querendo sorver tudo da vida de um
só trago, como se não tivesse -
assim não teve, com efeito - mais
que um instante em toda a sua vida.
A exegese do poema
deve se fazer já no
título. O poeta
evidencia que uma
chave para seu
entendimento está na
palavra ´Adeus´,
registrada entre
aspas. Dessa
maneira, Castro
Alves adverte ao
leitor que este
termo tem uma
utilização especial,
segundo se confirma
nas seis aparições
de Adeus, sempre em
aspas no poema. Aqui
o sinal gráfico é
indicador de
discurso direto, ao
contrário do uso no
título, que sinaliza
a latência
significativa do
termo.
A peculiaridade é
dada porque a cada
aplicação de ´Adeus´
o sentido de
despedida é
acrescido de uma
carga semântica
particular. Essa
qualificação da
palavra tem sua
propriedade
caracterizada por
´modalizadores´
explícitos no verso.
´´Adeus´ eu
disse-lhe a tremer
co´a fala´ e ´Ela,
corando,
murmurou-me: ´adeus´´,
ao primeiro verso, a
tremer co´a fala,
pois é intensa a
emoção
palpitando-lhe; e,
ao segundo, corando,
o pundonor feminil,
transmitem a ´Adeus´
um valor
significativo de uma
despedida de
namorados. Na
verdade, está quase
equivalente
sinonímio de um ´até
logo´ ou ´tchau´ ou
para adequar a
modalidade
lingüística: ´em
breve nos veremos´.
O próprio termo
murmurar (falar
baixo, - quase ao
ouvido, como podemos
presumir), com seu
sussurro
onomatopaico e sua
aliteração da
constritiva bilabial
nasal, também
confere, desse modo,
essa feição
´enamorada´ ao
termo.
Dois outros casos
Castro Alves, em
dois outros seus
poemas, retoma a
questão da semântica
de ´Adeus´. Define-a
como uma palavra
fatal e restringe
seu uso ao momento
extremo de separação
absoluta. Para,
simplesmente,
despedir-se, reclama
outra expressão que
não ´Adeus´. Veja-se
nesse caso a última
estrofe do poema
´Adeus´ de ´A
Cachoeira de Paulo
Afonso´: ´- Adeus -
palavra sombria!/
Não digas - adeus -,
Maria!/ ou não me
fales de amor!´
porque ´- Adeus! -
miséria! Mentira/ De
um seio que não
suspira/ De um
coração sem amor´ (diletíssima
a elipse do verbo,
que se aponte). É
uma poesia sobre o
rompimento de uma
relação apaixonada e
intempestiva o poeta
intitula-a como a
mesma palavra. Os
poemas homônimos
deixam claro como
Castro Alves concebe
a natureza desse
vocábulo.
Na segunda estrofe e
segundo estribilho
de ´O ´Adeus´ de
Teresa´, a palavra
destacada toma uma
roupagem teatral. O
namorado
´conservando-a
presa´ e a jovem
´entre beijos´
encenam
dramaticamente uma
separação. Agora, de
uma despedida
juvenil, florescente
em que os namorados
se deixam ir,
inicialmente; temos
uma cordata
situação: o casal,
já íntimo,
observe-se a
expressão ´sem véus´
do 9º verso,
portanto, os dois
morando juntos, pois
casados,
despedem-se. A
gravidade do quadro
é tonificada pelo
adjetivo pálida, que
além de fazer parte
do escopo vocabular
do léxico romântico
(mesmo tido como uso
vazio de tão
reiterado, nesse
caso o poeta o
revigora; - os
clichês
enraizavam-se por
tal jeito que amiúde
colidiam com o
pensamento do poeta,
no poema ´Um Raio de
Sol´, o poeta fala
de um níveo de uma
escrava morena.),
condensa nessa
poesia uma ambiência
de mal-sina que se
está anunciando.
Melancolicamente
pálida, Teresa
torna-se branca ao
fim da poesia. O
descoramento é por
espanto, surpresa e
por medo, já que
parece antever o
desfecho funesto de
sua história. Teresa
dá seu último ´Adeus´
´arquejando´,
agonizando a última
palavra antes da
morte. ´Adeus´ neste
último verso
potencializa uma
nova essência: um
valor fatal.
O domínio do
ritmo
Castro Alves
demonstra-se
conhecedor profundo
dos idiomatismos de
nossa língua,
antecipando-se mesmo
aos modernos
lingüistas,
utilizando, com
mestria, a palavra
´Adeus´, valendo-se
da oscilação
significativa do
vocabulário. Quanto
ao ritmo da poesia,
duas poderiam ser as
ocorrências de
decassílabos
jâmbicos. Em todo,
onze os versos
heróicos (2º, 3º,
7º, 8º, 10º, 13º,
14º, 15º, 17º, 20º,
21º, 22º); nove os
sáficos (3º, 9º,
11º, 16º, 19º, e
todos os
estribilhos).
Os versos 5º e 23º
possuem distribuição
rítmica polivalente
tanto na forma
heróica quanto na de
cesura feminina. A
configuração
acentual desses
versos apresenta
cesuras em 4º, 6º,
8º, e 10º sílabas
poéticas.
O verso ´A valsa nos
levou nos giros
seus´ acentua-se
como um decassílabo
jâmbico, alternando
entre átona e
tônica, apesar de
nossa classificação
ser controvertida,
por que um acento
recai no pronome de
objeto nos, a rigor,
uma partícula
monossilábica átona.
Mas, sabemos, a
questão é de
sensibilidade de
ouvido: alguns mais
duros para aceitarem
outro acento que não
o gramatical, outros
mais atentos ao
acento temático
topicalizador ou ao
acento poético.
Aspectos
estilísticos
Seguindo nossa
análise, encontramos
no primeiro verso
uma inversão
estilística que
juntamente com uma
forma canônica do
final da poesia
sintetizam os dois
momentos da passagem
do romance do
eu-lírico e Tereza.
Vez primeira
favorece o
encantamento de
jovialidade e graça
à expressão,
condizentes ao
sereno clima de
namoro que se
confirma nesta
apresentação inicial
dos dois namorados,
ao contrário do que
traria o sintagma
nominal primeira
vez, uma forma que
por muito usual
perde o valor de
novidade e frescor
que a inversão,
assim, potencializa.
O estado de amizade
entre os dois jovens
amantes acaba no
assassínio de Tereza
por seu próprio
companheiro. A
revelação do drama
de seu amante ser
seu algoz
explicita-se na
expressão última vez
(x vez primeira) que
transmite uma carga
de fatalidade, tanto
porque topicaliza a
palavra última, com
sua força majestosa
de proparoxítono,
como porque, com sua
forma direta
cristalizada, resume
em si a
irreversibilidade da
tragédia.
Interessante notar o
uso do pronome
subjetivo nos
seguintes sintagmas
verbais: ´a primeira
vez que eu vi
Teresa´ e ´foi a
última vez que eu vi
Teresa´. Lemos
Monteiro, no seu
estudo sobre os
pronomes pessoais,
escreve que, na
tradição gramatical,
´em raros casos se
justifica a
colocação dos
pronomes sujeitos.
Said Ali ensina que
eles devem ser
usados quando a
clareza o exige ou
quando se quer
chamar a atenção
para a pessoa do
sujeito. Cunha e
Cintra dizem que o
normal é a omissão,
já que as
desinências verbais
bastam para indicar
a pessoa a que se
refere o verbo´.
Dada esta
explicação,
acreditamos que
Castro Alves por
dois motivos dá luz
ao pronome eu:
primeiro para
acentuar a
subjetividade de sua
expressividade
catártica, como
declaração de um eu
condoído e pesaroso
- não arrependido -
rememorando
(sofrendo) sua
desdita. E depois
para, com a
explicitude da
subjetividade,
enfatizar o caráter
íntimo de sua
confissão e
ressaltar que foi
com ele que toda a
desgraça aconteceu,
numa espécie de
´egocentrismo
cósmico´
característico dos
grandes artistas
românticos.
O jogo imagético
No segundo verso
´Como as plantas que
arrasta a
correnteza´,
observamos a
estranheza que nos
causa a imagem que o
poeta tentou
realçar, sem
conseguir um bom
resultado, contudo.
A correnteza de um
rio arrastando uma
planta concentra a
oposição violenta de
forças das águas e
da frágil planta,
acentuado
desequilíbrio, e a
turbulência que é
evocada com a
imagem. Algo que
muito mais
desencadearia
sensações fortes e
travadas, o que se
reforça graças à
feridade advinda do
grupo consonântico -rr,
destacável por está
na cesura principal
do verso.
O problema é que
esta imagem se
presta a ilustrar a
enlevação em que se
tomaram os dois
jovens quando
dançavam uma valsa.
´A valsa nos levou
nos giros seus´ é
todo aliterado pela
sibilante, som de
suavidade e leveza,
contrários e de
sugerências
semânticas e
sensitíveis
distintas do que
remete o verso
anterior.
Mas ainda em favor
do poeta podemos
lembrar de um calmo
rio que descanse em
sua límpida
superfície as
pétalas de uma flor
e a embale
docemente...
entretanto, ainda
está registrado
arrasta, vocábulo
vigoroso e robusto e
em posição especial
no verso.
Por fim, o poema
merece a menção ao
fato de encadear uma
nova visão de amor.
Alfredo Bosi
observa, com
respeito a Castro
Alves: ´Com ele
fluem sem meandros
as correntes de uma
renovada lírica
erótica, tanto mais
forte e limpa quanto
menos reclusa no
labirinto das culpas
sem remissão´. Mário
de Andrade, em um
seu artigo ,
considera: ´´Hebréia´,
´Boa-noite´, ´O
adeus de Teresa´, ´O
tonel das danaides´
e ´Os anjos da
meia-noite´ provas
decisivas de mudança
profunda na
concepção temática
do amor na poesia do
Brasil´.
Castro Alves renega
o amor clássico. À
ausência do amigo, a
bem-amada não se
deixa solícita a
esperança de seu
herói. Ao contrário
de Penélope que
esperou em virtude a
Ulisses, Teresa é
tomada por uma nova
paixão e a ela se
entrega. Portanto, o
amor clássico,
moral, é suplantado
pelo amor, em um
novo entendimento,
um amor carnal e
lúdico.
Não se iça ao
paroxismo a um amor
´fiel à sua lei de
cada instante´ de
que se inundou e em
que se liberta
Vinícius de Moraes;
mas não se
enclausura
apaticamente dentro
de si numa ara
impassível às
paixões que sopram
de doce aura em
brisa... acendendo
nosso amor ´que não
seja imortal, posto
que é chama´...
O poeta ocupa um
lugar ímpar na
lírica romântica por
não ter limitado sua
escritura à simples
expressão da ´ânsia
de amar´, quimera
contemplativa da
moral romântica.
Castro Alves destoa
do protótipo do
poeta romântico.
SAIBA MAIS
ALVES, Castro.
Prólogo de Espumas
Flutuantes, in:
Poesias completas/
de Castro Alves,
prefácio de Manuel
Bandeira. - Rio de
Janeiro: Ediouro,
1995.
BANDEIRA, Manuel.
Notícia sobre o
poeta, in: Poesias
completas/ de Castro
Alves, prefácio de
Manuel Bandeira. -
Rio de Janeiro:
Ediouro, 1995.
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História concisa da
Literatura
Brasileira. 2a. ed.
São Paulo: Cultrix,
1974.
COUTINHO, Afrânio. A
Literatura no
Brasil/ Direção
Afrânio Coutinho;
co-direção: Eduardo
de Faria Coutinho. -
6º ed. rev. e atual.
- São Paulo: Global,
2002.
CUNHA, Euclides da.
Castro Alves e seu
tempo. - 2ª ed,
Grêmio E. da Cunha,
Rio de Janeiro. 1919
IVO, Lêdo. A
Travessia de Castro
Alves in: Alves,
Castro. Melhores
poemas de Castro
Alves/ Seleção e
apresentação de Ledo
Ivo. - 7º ed. São
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HORTA, Ânderson
Braga. Os ´erros´ de
Castro Alves, in:
HTTP.// www
secrel.com.br./jpoesia/
MATOS, Edilene. A
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verso, in: HTTP.//
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PROENÇA, M.
Cavalcante. O
catador Castro Alves
in: estudos
Literários/M.
Cavalcante Proença;
prefácio de Antônio
Houssais; nota de
Ivan Cavalcanti
Proença. - 3ª ed -
Rio de Janeiro: José
Olímpio, 1982.
VERÍSSIMO, Érico.
Breve História da
Literatura
Brasileira. Érico
Veríssimo: tradução
VERÍSSIMO, José.
História da
Literatura
Brasileira. Rio de
Janeiro: J. Olympio,
1982.
MARCOS ROBERTO DOS SANTOS AMARAL
*Colaborador, do Curso de Letras da
Uece
FIQUE POR DENTRO
A voz do poeta do povo
Jamil Almansur Hadad , em sua
´Revisão de Castro Alves´,observa: ´Com
todos os seus rompantes de poeta erudito,
imitador de Hugo e tradutor de Esprocenda,
ele prolonga a voz dos cantadores cegos das
feiras, a voz dos serenatistas bêbedos em
noites com lua ou sem lua, mandando a amada
suspirosa acordar por detrás das rótulas
silentes, a voz do cabra empolgada no
desafio, ou entoando o hino de glórias em
louvor dos heróis pastoris ou do cangaço´.
M. Cavalcanti Proença, fazendo um apanhado
de ´semelhança de processos´ entre a poesia
de Castro Alves e entre a dos catadores (em
geral) nordestinos (especificamente), chama
atenção para os ´elementos que estruturam a
popularidade do condoreiro´, enumerando,
então, um repertório de elementos que
atestam essa veia castroalvina que pulsa com
a poesia popular. Por essas qualidades de
sua obra, é que se entende a admiração tão
vigorosa e apaixonada do público ao seu
vate. Por isso seus poemas como ´Navio
Negreiro´ e ´Vozes d´África´ são estimados
como ´a maior altura do seu estro. O
primeiro é uma evocação dantesca dos
sofrimentos dos negros na travessia da
África para o Brasil; o segundo, uma soberba
apóstrofe do continente oprimido a implorar
a justiça de Deus´, escreve o poeta Manuel
Bandeira.
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