Manuel
da Costa Pinto
Dostoiévski
e Tolstói
Avaliar
a obra de um escritor por meio de comparações com outros autores é,
na esmagadora maioria das vezes, uma confissão de fracasso de quem não
consegue explicar para os outros (e para si mesmo) as razões de sua
identificação profunda com esta ou aquela obra. Afinal, é
perfeitamente possível ler Camões sem citar Petrarca, chorar com
Racine e rir com Molière, ou recitar Drummond sem excluir João
Cabral da estante.
Mas
a história da literatura oferece alguns exemplos raros de escritores
que sempre se apresentam associados ao espectro complementar de um
“duplo”: é o caso de Voltaire em relação a Rousseau, de Goethe
em relação a Schiller, de Balzac em relação a Stendhal e,
sobretudo, de Tolstói em relação a Dostoiévski –autor cujas
obras vem sendo sistematicamente editadas no Brasil em traduções
feitas diretamente do original russo.
Todos
eles giram, com seus respectivos pares, em torno dos mesmos problemas,
que são as linhas de força de cada época: a oposição entre
racionalismo e natureza no Iluminismo francês, a estetização do
sujeito e o panteísmo transcendental do romantismo alemão, a tensão
entre a energia individual e a força alienante das relações econômicas
no realismo do século 19. A diferença, quando se fala de Tolstói e
Dostoiévski, é que eles são a síntese, o apogeu e simultaneamente
a dissolução desse processo de constituição (e de representação
literária) do que entendemos por sociedade moderna. Praticamente
todos os temas presentes nas obras de Rousseau, Schiller ou Stendhal
(o “bom selvagem”, a aspiração ao sublime, as verdades parciais
da vida afetiva) reaparecem de modo concentrado em seus livros. Antes
de Tolstói e Dostoiévski, podia-se sem grandes dificuldades
classificar a literatura segundo categorias como “romance
picaresco”, “romance
social”, “romance psicológico” etc. Porém, obras como “Crime
e Castigo” (de Dostoiévski) ou “Ana Karênina” (Tolstói) reúnem
em suas personagens –e muitas vezes em uma única personagem– todo
o mosaico possível de acepções do humano: os abismos interiores de
desejo e culpa, os determinismos materiais e a tentativa de transcendê-los
social e espiritualmente, as utopias políticas e religiosas, a
fronteira tênue entre sanidade e demência, lucidez e possessão.
Aquilo
que os une, no entanto, é justamente o que os separa. A percepção
do drama humano em sua totalidade fraturada, que se verifica tanto em
Tolstói quanto em Dostoiévski e que faz da a literatura anterior uma
espécie de pré-história da arte de representar a pluralidade do
real, tem soluções que designam aos dois escritores russos papéis
praticamente antagônicos na história da literatura. Tolstói é o
remate perfeito da épica burguesa, da arte do romance; Dostoiévski
aponta para sua falência e ultrapassamento. Romances monumentais como
“Guerra e Paz” e “Os Irmãos Karamazov” são, respectivamente,
o panorama e o apocalipse de uma era.
Nesse
sentido, Dostoiévski é muito mais contemporâneo dos apocalipses
cotidianos de nosso tempo do que Tolstói. É difícil encontrar na
literatura universal um sucedâneo da escrita aristocrática do autor
de “A Morte de Ivan Ilitch” (o mais forte candidato seria Thomas
Mann, não por acaso autor de um ensaio intitulado “Goethe e Tolstói”).
Em
contrapartida, um livro como “Memórias do Subsolo” –que foi lançado
pela Editora 34 com tradução de Boris Schnaiderman– gerou uma
profusão de personagens “subterrâneas” que ruminam sua inadaptação
visceral ao mundo em monólogos autodestrutivos, desconstruindo
qualquer ilusão de reconciliação do homem com a sociedade e a
natureza. Há referências evidentes a “Memórias do Subsolo” na
forma alegórica do conto “A Construção”, de Kafka, na
personagem da peça “Dias Felizes”, de Beckett (que passa o tempo
todo enterrada em um buraco), no diálogo sem interlocutor de “A
Queda”, de Camus, e no monólogo existencial de “A Paixão segundo
G.H.”, de Clarice Lispector –o que por si só dá uma idéia do
impacto de Dostoiévski sobre diferentes momentos da literatura do século
20.
Mas
“Memórias do Subsolo” teve importância, acima de tudo, no
interior da própria produção dostoievskiana, projetando-se sobre
seus quatro romances de maturidade: “Crime e Castigo”, “O
Idiota”, “Os Demônios” e “Os Irmãos Karamazov”. Cada um
desses livros mereceria um artigo à parte, mas a recente publicação
de “O Idiota” pela Editora 34, em tradução do original russo
feita por Paulo Bezerra (que também traduziu “Crime e Castigo”),
acaba lançando o foco sobre aquela que talvez seja a mais complexa
personagem de Dostoiévski: o príncipe Míchkin.
Comparado
aos outros três romances citados acima, o enredo de “O Idiota”
oscila entre a ingenuidade e a banalidade. “Crime e Castigo” é um
romance policial estruturado a partir de uma espécie de
“assassinato filosófico” (o herói, Raskólnikov, comete o crime
para provar sua superioridade moral); “Os Demônios” é um retrato
das disputas ideológicas no seio de um grupo de revolucionários;
“Os Irmãos Karamazov” é um drama familiar tecido ao redor do
tema mítico do parricídio.
Já
“O Idiota” é a história, aparentemente sem grande complexidade
narrativa, do retorno do jovem Míchkin à Rússia, após vários anos
de internação na Suíça (para tratamento da epilepsia), e de seu
envolvimento em um triângulo amoroso no qual os outro dois vértices
são Rogójin (um devasso perdulário que dilapida a herança paterna)
e Nastácia Filíppovna (uma mulher ao mesmo tempo ultrajada e altiva,
além de arrebatadoramente bela).
Mas
o que importa no romance, como de resto em qualquer obra de Dostoiévski,
é a criação de um cenário ficcional em que tudo conflui para uma
esfera que poderíamos chamar de “escatológica” (entendida aqui
no sentido da discussão teológica sobre o fim dos tempos e o juízo
final). Essa dimensão apocalíptica, religiosa, impregna cada frase
ou ação das personagens de “O Idiota”. Míchkin é uma espécie
de iluminado, que cativa ao primeiro olhar com sua simplicidade e
parece ver através da alma alheia. Mas sua ingenuidade e pureza
quixotescas, que tangem a idiotia, não o impedem de, logo na primeira
cena, no trem que o leva de volta à terra natal, conhecer Rogójin e
penetrar na trama passional que este e Nastácia vivem, percebendo ali
um desejo de expiação e de exercício do Mal em estado puro que
transformam estas figuras sensuais em emanações arquetípicas, em
encarnações da essência degradada do homem após a Queda.
A
partir daí, o romance se desenrola em uma sucessão de cenas vividas
por uma miríade de personagens que constituem uma espécie de afresco
da Rússia do século 19: seres mesquinhos e frívolos como Gánia (o
pretendente de Nastácia) ou Aglaia (o amor “terreno” –e por
isso inviável– do príncipe Míchkin); figuras acanalhadas (como
Totski, Liébediev ou Fierdischenko) e moribundos desesperados (como
Hippolit, o jovem tísico e jacobino que faz um longo discurso
anunciando seu suicídio para uma audiência desinteressada). São
personagens que se digladiam, discursam, gritam, agonizam, defendem idéias
com a mesma intensidade com que vivem paixões carnais; vão do reles
ao sublime num piscar de olhos. Por trás de cada uma das cenas de escândalo
social que se desenrolam ao longo de “O Idiota”, o leitor percebe
a atmosfera de horror metafísico que aguarda Míchkin, Rogójin e
Nastácia no epílogo narrativo. É como se Dostoiévski fizesse de
cada bêbado, agiota ou seviciador que desfila diante de nossos olhos
uma fresta pela qual vislumbramos uma redenção sempre adiada.
Aliás,
esse é um dos traços estilísticos mais marcantes de Dostoiévski:
fazer com que as questões metafísicas mais pungentes se imiscuam na
vulgaridade das ações ordinárias (conservando assim seu realismo)
e, ao mesmo tempo, fazer com que encontros miraculosos e cenas improváveis,
dignas dos romances de folhetim, adquiram uma gravidade tal que pareçam
ser a conseqüência lógica de um universo que caminha para a consumação.
Tudo
nos romances dostoievskianos está às portas do juízo final. Daí o
paroxismo de cada gesto e a extrema compressão espacial e temporal de
“O Idiota”. A cena da festa na casa de Gánia (em que cada
personagem expõe suas piores iniqüidades e que termina com Nastácia
lançando ao fogo o pacote de dinheiro com o qual Rogójin queria
“comprá-la”), seria inconcebível em qualquer romance
naturalista, nos quais personagens de origens sociais diferentes só
convivem em espaços públicos e no qual as separações de classes se
fazem sentir o tempo todo. Em Dostoiévski, porém, um simples cubículo
é capaz de comportar nobres, burgueses, funcionários públicos,
estudantes e vagabundos que debatem acaloradamente entre si – todos
envolvidos em questões metafísicas, que pairam acima das determinações
materiais e das segregações entre o público e o privado.
Da
mesma maneira, toda a ação da primeira parte do livro (cerca de 200
páginas!) se desenrola ao longo de um único dia, arrastando o príncipe
por uma quantidade inimaginável de experiências – como se nada
pudesse ser postergado, como se cada ação tivesse um caráter de urgência,
como se todo movimento guardasse uma promessa só atingida em momentos
de intensidade sobre-humana (a exemplo dos ataques de epilepsia de Míchkin).
Essa
compressão do espaço e do tempo aponta para um fato desconcertante:
o grande escritor realista era no fundo um místico, no sentido
bizantino do termo –leitura defendida pelo filósofo Luiz Felipe
Pondé em livro que será lançado no início do próximo ano pela
Editora 34 (“Crítica Religiosa a um Humanismo Ridículo: Uma
Introdução à Filosofia da Religião em Dostoiévski”).
O
que isso significa exatamente? A crítica tradicional muitas vezes
interpretou sua conversão ao cristianismo ortodoxo como um fato político:
depois de militar no Círculo Petratchévski (grupo de socialistas utópicos)
e ser preso por conspirar contra a vida do czar, Dostoiévski foi
condenado à morte em 1849, tendo a pena comutada para quatro anos de
prisão na Sibéria quando já estava diante do pelotão de
fuzilamento (na verdade, a cena toda fora uma perversidade das
autoridades, já que a comutação havia sido concedida por Nicolau I
antes da data prevista para a execução). Alquebrado pelos anos de
degredo, Dostoiévski teria transferido da política para a religião
seu sentimento de revolta, dando conotações messiânicas a sua adesão
ao movimento eslavófilo (uma forma de nacionalismo que contrapunha a
pureza da alma russa ao desenraizamento provocado pela ocidentalização
da Rússia). A religião, todavia, não teria conseguido sufocar seu
anarquismo essencial –e a prova disso estaria na parábola do Grande
Inquisidor, episódio alegórico (narrado em “Os Irmãos
Karamazov”) no qual Cristo retorna à terra e é preso pela igreja
católica espanhola porque sua mensagem de liberdade seria insuportável
para o homem. A Igreja Católica, segundo uma interpretação
recorrente, seria aqui uma metáfora de todos os poderes temporais,
incluindo o czar (que Dostoiévski se furtara de atacar para não se
ver novamente enredado em problemas políticos).
Embora
consistente, essa leitura deixa num plano meramente instrumental ou
ideológico o misticismo de Dostoiévski –e aqui a intervenção de
Pondé é preciosa, pois desvenda no escritor russo uma dimensão
“vertical” (ou sobrenatural) sem a qual a crítica da auto-suficiência
humanista, contida em um livro como “Memórias do Subsolo”, seria
incompreensível ou meramente patológica. O anônimo e irascível
narrador dessa novela, que do fundo de sua tocaia investe contra “os
palácios de cristal”, as quimeras construídas pelo “homem de ação”,
seria simultaneamente um instantâneo do estado de agonia do homem na
natureza e uma abertura para as visitações do transcendente.
Essas
“visitações” não ocorrem em “Memórias do Subsolo”, mas
despontam ao fim de “Crime e Castigo” (com a redenção de
Raskolnikov) e nas crises de epilepsia do príncipe Míchkin, estes
momentos de iluminação mística, de experiência interior de Deus
que se dão justamente a partir da doença e da desagregação da
natureza (na qual um cientificismo estreito gostaria de nos encerrar).
O anticlericalismo de Dostoiévski, dentro dessa perspectiva, não
seria uma defesa política da Igreja Ortodoxa contra a Igreja de Roma,
mas a expressão de uma teologia negativa, bizantina, que evita a
pretensão dogmática dos escolásticos (que buscam em vão
“provar” a existência de Deus) e percebe o sobrenatural a partir
de nossa disfunção essencial e da própria incapacidade de descrever
ou contemplar um Deus todavia entrevisto pelo homem em seu exílio
“vertical”.
Essa
leitura, longe de destituir o valor propriamente literário de Dostoiévski,
ajuda a compreender melhor o caráter anti-estetizante e anti-literário
de obras como “Memórias do Subsolo”, “O Idiota” ou “Crime e
Castigo” – cujas asperezas e redundâncias são recuperadas pelas
traduções de Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra, sepultando antigas
versões feitas a partir do francês (que suavizavam a escrita
dostoievskiana).
É
conhecido, por exemplo, o repúdio de Tolstói ao estilo
“mal-acabado” dos romances de seu “duplo” literário. Também
Tolstói tinha uma preocupação com o desenraizamento do povo russo e
pregava o retorno à simplicidade da igreja primitiva e aos valores da
vida camponesa –uma fuga do mundo tematizada no livro “Padre Sérgio”
(publicado pela Cosac & Naify em tradução de Beatriz Morabito).
Mas,
em Tolstói, as crises religiosa, política (sua renúncia aos privilégios
de nobre latifundiário) e até mesmo estética (sua rejeição da
arte ao final da vida) são expressão das frustrações de uma utopia
inspirada em Rousseau (e, portanto, “ocidentalizante”). A crítica
ao “homem inútil” contida em “A Morte de Ivan Ilitch” deságua
no vazio sem consolo do humanista confrontado com a morte e com um
mundo que lhe escapa por entre os dedos. Algo bem diferente, portanto,
da superação metafísica que se antevê ao final de “Memórias do
Subsolo”.
Enquanto
escreveu, Tolstói jamais conseguiu se libertar de seu próprio
talento literário, em nenhum momento ele consentiu em transgredir as
regras da grande arte como forma de superação de suas limitações:
quando a arte se demonstrou incapaz de transformar o mundo, abdicou
dela. Mesmo “Ana Karênina”, que deveria ser uma condenação da
vida “mundana”, se desdobra em dois enredos paralelos (a história
da adúltera Ana Karênina e do camponês aristocrático Liévin) que
resultam numa sinfonia perfeita e fazem da protagonista uma figura
feminina cuja complexidade consegue suplantar até mesmo a Emma Bovary
de Flaubert.
Comparado
a Tolstói, portanto, Dostoiévski é o avesso do artista que lança
um olhar olímpico sobre a realidade. Seus livros de enredo caótico e
o discurso circular de suas personagens não estão a serviço da
representação do existente ou da autonomia do objeto estético, mas
de uma outra ordem, mais obscura e transcendente –e por isso Joseph
Frank deu ao quinto e último volume de sua biografia do escritor
russo (que vem sendo editada no Brasil pela Edusp) o título de
“Dostoiévski: O Manto do Profeta”. Obviamente, é preciso cautela
quando se lê um escritor a partir de um recorte extra-literário. Mas
talvez se possa dizer que Dostoiévski que foi o profeta de todas as
convulsões que marcaram a história da literatura depois de sua obra.
(texto originalmente publicado no caderno “Sinapse”, da Folha
de S.Paulo)
Manuel
da Costa Pinto
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