John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

Manuel da Costa Pinto


 

Confissões de um flamenguista

 

 

O escritor Nelson Rodrigues dizia maldosamente que a pior forma de solidão é a companhia de um paulista. Eu poderia acrescentar que uma outra forma de solidão é ser paulista e torcer por um time carioca. O fato de ser torcedor do Flamengo e ser um paulista genuíno (ao longo dos meus 38 anos, não fui mais do que uma dúzia de vezes ao Rio de Janeiro!) já me gerou diversos constrangimentos. Nas conversas de bar, quando o assunto chega no futebol e as pessoas perguntam qual é meu time do coração, tenho sempre que fazer um pequeno esboço biográfico para justificar minha paixão pelo rubro-negro: digo que comecei a gostar de futebol na mesma época em que Zico surgia como grande revelação da era pós-Pelé, que eu raramente ia a estádios e que via futebol pela TV (de modo que pouco importava se meu time jogava em São Paulo, Rio, Porto Alegre ou Macapá), que a escolha de um time não pode se guiar por preconceitos chauvinistas etc. etc. De nada adianta. Torcer pelo Flamengo em São Paulo é mais ou menos como ser brasileiro e torcer pela Argentina. Uma aberração genética, um desvio de caráter, uma heresia agravada pela rivalidade entre Rio e São Paulo.

Durante a adolescência, a história me perdoou: o Flamengo de Zico e Júnior foi o grande time dos anos 80, tricampeão brasileiro, campeão da Libertadores, campeão mundial. De uns tempo para cá, porém, o Flamengo só dá vexame e tive que adotar uma explicação mais poética, aproveitando o fato de ser um jornalista que trabalha há muitos anos com literatura. Aqui vai minha apologia metafísica do flamenguismo: além de ser uma instituição supranacional (o time tem a maior torcida do Brasil e, portanto, do mundo), o Flamengo é também uma entidade supratemporal e trans-histórica. A prova disso é que um dos maiores escritores de todos os tempos, o francês Stendhal, foi um flamenguista avant la lettre. Ou alguém duvida que o romance O Vermelho e o Negro, de 1830, é uma elegia premonitória às glórias rubro-negras? Mais do que isso, pode-se afirmar que Zico foi o Julien Sorel do futebol. No rastro deixado por Sorel (o jovem herói de O Vermelho e o Negro, que sai da província para conquistar a sociedade parisiense munido apenas da força do talento e do gênio individual), Zico foi o plebeu subnutrido que saiu de Quintino para galgar os pedestais do futebol mundial.

Tudo bem, tudo bem, Zico não é muito diferente dos outros craques de origem humilde que conquistaram fama e fortuna. Mas havia nele um elemento trágico de raiz genuinamente literária – e rubro-negra. Quando Zico perdeu o pênalti contra a França, na Copa de 86, estava cumprindo o destino de todo herói romanesco: no auge da glória, pôs tudo a perder, ofereceu-se em sacrifício para ensinamento dos homens, punindo a soberba do “país do futebol”. Ao bater aquele fatídico pênalti, Zico estava inconscientemente emulando Julien Sorel, que cometeu um crime gratuito que o levaria dos salões aristocráticos para o cadafalso.

Estas aproximações literárias têm bons predecessores. O próprio Nelson Rodrigues, numa crônica lapidar, justificou a rivalidade do Fla-Flu pelo fato de que a primeira equipe de futebol do Clube de Regatas Flamengo foi uma dissidência do Fluminense, gerando um ódio fratricida e fazendo com que Flamengo e Fluminense fossem – na frase genial de Nelson – “os irmãos Karamázovi do futebol”. No âmbito propriamente ficcional, o escritor António de Alcântara Machado deixou-nos contos epifânicos, como “Corinthians (2) v. Palestra (1)” e “Gaetaninho”. João Antônio e Renato Pompeu também foram mestres na arte de captar a alma dos estádios, as utopias sociais brasileiras, encarnadas nas aspirações dos jogadores de várzea que sonham “sair de sua vida cinzenta para o mundo ensolarado dos craques” – conforme expressão do jornalista Marcos Faerman num belo ensaio que tive o prazer de publicar na revista literária da qual sou editor (CULT n. 11, junho/98, número dedicado ao futebol). Aliás, quem quiser ter uma boa idéia da prolífica prosa futebolística na literatura brasileira deve ler Onze em campo e um banco de primeira (Editora Relume-Dumará, organização de Flávio Moreira da Costa), com contos dos autores citados e de João Ubaldo Ribeiro, Orígenes Lessa, Sérgio Sant’Anna, Ricardo Ramos (filho de Graciliano) e Edilberto Coutinho, entre outros.

Os paralelos entre futebol e literatura, contudo, não se esgotam nesse plano temático em que os escritores criam histórias envolvendo jogadores, torcedores e cartolas. Há algo de mais abstrato e ao mesmo tempo profundo entre essas duas paixões, nesse encontro entre a letra e a bola. Tanto nos gramados quanto nos livros temos um universo encerrado em si mesmo, um mundo que se comunica com nosso cotidiano de maneira indireta: no estádio e num bom romance estão em jogo todas as paixões humanas (desejo, medo, inveja, ambição, ética, leis etc.), porém aqui elas adquirem forma e finalidade. Dentro de sua limitação de espaço e tempo, uma partida de futebol e um relato literário encerram o percurso de uma vida. No apito final e no último capítulo temos uma revelação, que pode ser tão monstruosa como uma derrota para o Vasco ou o suicídio de Ana Karênina, e tão jubilosa quanto golear o Vasco ou o idílio pastoral das comédias de Shakespeare.

Em outras palavras, a literatura corrige a realidade naquilo que esta tem de precário. Em literatura, até mesmo a injustiça e o triunfo do Mal tornam-se compreensíveis, o caos e a destruição são assimilados a uma ordem superior: a ordem das palavras. Foi nisso que o escritor Albert Camus estava pensando ao afirmar que os grandes artistas criam “universos de substituição”, relatos e imagens que condensam a condição humana, conferindo permanência ao que é mortal, justapondo aos fragmentos de nossa vivência uma harmonia de prazeres e dores, tragédias e apoteoses. Estas mesmas tragédias e apoteoses fazem a vida de quem ama o futebol. A vibração com a conquista de um título não tem função meramente catártica, assim como o choro por causa do rebaixamento de nosso time para a segunda divisão guarda um resíduo de racionalidade por trás da emoção. Podemos não saber objetivamente qual é a causa da vitória ou da derrota, mas sabemos que essa causa existe, seja ela o espírito de equipe, o talento individual do craque, o erro do juiz, as falcatruas dos cartolas ou mesmo os caprichos de uma bola na trave. É essa causalidade perfeita que falta à vida – e por isso o futebol e a arte são tão superiores à vida.

Ao citar Camus, não consigo evitar o tom pessoal e lembrar que li pela primeira vez O Estrangeiro na mesma época em que organizava infindáveis campeonatos de futebol de botão, com tabelas cuja complexidade faria corar os cartolas da CBF. Qual a relação entre os dois fatos? É simples: sem nenhum talento para a ficção, agarrei-me às obras de Camus como se eu mesmo tivesse escrito aqueles relatos (O Estrangeiro, A Peste, A Queda) que expressavam de forma tão brilhante o divórcio do homem e seu cenário, o sentimento do absurdo diante da solidão, da mortalidade e da opacidade do mundo; e, como autêntico perna de pau no futebol, criei nos campeonatos de botão o meu próprio “universo de substituição”, corrigindo minha inabilidade natural com a bola através de partidas emocionantes em que era sempre eu quem jogava pelos dois times (temia que algum amigo viesse quebrar a harmonia mágica dos jogos com regras e resultados diferentes daqueles que eu manipulava).

Depois de alguns anos lendo ininterruptamente as obras de Camus, descobri com assombro que ele fora goleiro do RUA (Racing Universitaire d’Alger, time amador de sua Argélia natal) e amava o futebol a ponto de escrever a seguinte frase: “Depois de muitos anos em que o mundo me ofereceu tantos espetáculos, o que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações dos homens, devo-o ao futebol.”

Infelizmente, não posso dizer o mesmo sobre essa ética do futebol: nos meus campeonatos de botão, o Flamengo sempre se sagrava campeão...

 

Manuel da Costa Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Manuel da Costa Pinto


 

Dostoiévski e Tolstói

Avaliar a obra de um escritor por meio de comparações com outros autores é, na esmagadora maioria das vezes, uma confissão de fracasso de quem não consegue explicar para os outros (e para si mesmo) as razões de sua identificação profunda com esta ou aquela obra. Afinal, é perfeitamente possível ler Camões sem citar Petrarca, chorar com Racine e rir com Molière, ou recitar Drummond sem excluir João Cabral da estante.

Mas a história da literatura oferece alguns exemplos raros de escritores que sempre se apresentam associados ao espectro complementar de um “duplo”: é o caso de Voltaire em relação a Rousseau, de Goethe em relação a Schiller, de Balzac em relação a Stendhal e, sobretudo, de Tolstói em relação a Dostoiévski –autor cujas obras vem sendo sistematicamente editadas no Brasil em traduções feitas diretamente do original russo.

Todos eles giram, com seus respectivos pares, em torno dos mesmos problemas, que são as linhas de força de cada época: a oposição entre racionalismo e natureza no Iluminismo francês, a estetização do sujeito e o panteísmo transcendental do romantismo alemão, a tensão entre a energia individual e a força alienante das relações econômicas no realismo do século 19. A diferença, quando se fala de Tolstói e Dostoiévski, é que eles são a síntese, o apogeu e simultaneamente a dissolução desse processo de constituição (e de representação literária) do que entendemos por sociedade moderna. Praticamente todos os temas presentes nas obras de Rousseau, Schiller ou Stendhal (o “bom selvagem”, a aspiração ao sublime, as verdades parciais da vida afetiva) reaparecem de modo concentrado em seus livros. Antes de Tolstói e Dostoiévski, podia-se sem grandes dificuldades classificar a literatura segundo categorias como “romance picaresco”,  “romance social”, “romance psicológico” etc. Porém, obras como “Crime e Castigo” (de Dostoiévski) ou “Ana Karênina” (Tolstói) reúnem em suas personagens –e muitas vezes em uma única personagem– todo o mosaico possível de acepções do humano: os abismos interiores de desejo e culpa, os determinismos materiais e a tentativa de transcendê-los social e espiritualmente, as utopias políticas e religiosas, a fronteira tênue entre sanidade e demência, lucidez e possessão.

Aquilo que os une, no entanto, é justamente o que os separa. A percepção do drama humano em sua totalidade fraturada, que se verifica tanto em Tolstói quanto em Dostoiévski e que faz da a literatura anterior uma espécie de pré-história da arte de representar a pluralidade do real, tem soluções que designam aos dois escritores russos papéis praticamente antagônicos na história da literatura. Tolstói é o remate perfeito da épica burguesa, da arte do romance; Dostoiévski aponta para sua falência e ultrapassamento. Romances monumentais como “Guerra e Paz” e “Os Irmãos Karamazov” são, respectivamente, o panorama e o apocalipse de uma era.

Nesse sentido, Dostoiévski é muito mais contemporâneo dos apocalipses cotidianos de nosso tempo do que Tolstói. É difícil encontrar na literatura universal um sucedâneo da escrita aristocrática do autor de “A Morte de Ivan Ilitch” (o mais forte candidato seria Thomas Mann, não por acaso autor de um ensaio intitulado “Goethe e Tolstói”).

Em contrapartida, um livro como “Memórias do Subsolo” –que foi lançado pela Editora 34 com tradução de Boris Schnaiderman– gerou uma profusão de personagens “subterrâneas” que ruminam sua inadaptação visceral ao mundo em monólogos autodestrutivos, desconstruindo qualquer ilusão de reconciliação do homem com a sociedade e a natureza. Há referências evidentes a “Memórias do Subsolo” na forma alegórica do conto “A Construção”, de Kafka, na personagem da peça “Dias Felizes”, de Beckett (que passa o tempo todo enterrada em um buraco), no diálogo sem interlocutor de “A Queda”, de Camus, e no monólogo existencial de “A Paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector –o que por si só dá uma idéia do impacto de Dostoiévski sobre diferentes momentos da literatura do século 20.

Mas “Memórias do Subsolo” teve importância, acima de tudo, no interior da própria produção dostoievskiana, projetando-se sobre seus quatro romances de maturidade: “Crime e Castigo”, “O Idiota”, “Os Demônios” e “Os Irmãos Karamazov”. Cada um desses livros mereceria um artigo à parte, mas a recente publicação de “O Idiota” pela Editora 34, em tradução do original russo feita por Paulo Bezerra (que também traduziu “Crime e Castigo”), acaba lançando o foco sobre aquela que talvez seja a mais complexa personagem de Dostoiévski: o príncipe Míchkin.

Comparado aos outros três romances citados acima, o enredo de “O Idiota” oscila entre a ingenuidade e a banalidade. “Crime e Castigo” é um romance policial estruturado a partir de uma espécie de “assassinato filosófico” (o herói, Raskólnikov, comete o crime para provar sua superioridade moral); “Os Demônios” é um retrato das disputas ideológicas no seio de um grupo de revolucionários; “Os Irmãos Karamazov” é um drama familiar tecido ao redor do tema mítico do parricídio.

Já “O Idiota” é a história, aparentemente sem grande complexidade narrativa, do retorno do jovem Míchkin à Rússia, após vários anos de internação na Suíça (para tratamento da epilepsia), e de seu envolvimento em um triângulo amoroso no qual os outro dois vértices são Rogójin (um devasso perdulário que dilapida a herança paterna) e Nastácia Filíppovna (uma mulher ao mesmo tempo ultrajada e altiva, além de arrebatadoramente bela).

Mas o que importa no romance, como de resto em qualquer obra de Dostoiévski, é a criação de um cenário ficcional em que tudo conflui para uma esfera que poderíamos chamar de “escatológica” (entendida aqui no sentido da discussão teológica sobre o fim dos tempos e o juízo final). Essa dimensão apocalíptica, religiosa, impregna cada frase ou ação das personagens de “O Idiota”. Míchkin é uma espécie de iluminado, que cativa ao primeiro olhar com sua simplicidade e parece ver através da alma alheia. Mas sua ingenuidade e pureza quixotescas, que tangem a idiotia, não o impedem de, logo na primeira cena, no trem que o leva de volta à terra natal, conhecer Rogójin e penetrar na trama passional que este e Nastácia vivem, percebendo ali um desejo de expiação e de exercício do Mal em estado puro que transformam estas figuras sensuais em emanações arquetípicas, em encarnações da essência degradada do homem após a Queda.

A partir daí, o romance se desenrola em uma sucessão de cenas vividas por uma miríade de personagens que constituem uma espécie de afresco da Rússia do século 19: seres mesquinhos e frívolos como Gánia (o pretendente de Nastácia) ou Aglaia (o amor “terreno” –e por isso inviável– do príncipe Míchkin); figuras acanalhadas (como Totski, Liébediev ou Fierdischenko) e moribundos desesperados (como  Hippolit, o jovem tísico e jacobino que faz um longo discurso anunciando seu suicídio para uma audiência desinteressada). São personagens que se digladiam, discursam, gritam, agonizam, defendem idéias com a mesma intensidade com que vivem paixões carnais; vão do reles ao sublime num piscar de olhos. Por trás de cada uma das cenas de escândalo social que se desenrolam ao longo de “O Idiota”, o leitor percebe a atmosfera de horror metafísico que aguarda Míchkin, Rogójin e Nastácia no epílogo narrativo. É como se Dostoiévski fizesse de cada bêbado, agiota ou seviciador que desfila diante de nossos olhos uma fresta pela qual vislumbramos uma redenção sempre adiada.

Aliás, esse é um dos traços estilísticos mais marcantes de Dostoiévski: fazer com que as questões metafísicas mais pungentes se imiscuam na vulgaridade das ações ordinárias (conservando assim seu realismo) e, ao mesmo tempo, fazer com que encontros miraculosos e cenas improváveis, dignas dos romances de folhetim, adquiram uma gravidade tal que pareçam ser a conseqüência lógica de um universo que caminha para a consumação.

Tudo nos romances dostoievskianos está às portas do juízo final. Daí o paroxismo de cada gesto e a extrema compressão espacial e temporal de “O Idiota”. A cena da festa na casa de Gánia (em que cada personagem expõe suas piores iniqüidades e que termina com Nastácia lançando ao fogo o pacote de dinheiro com o qual Rogójin queria “comprá-la”), seria inconcebível em qualquer romance naturalista, nos quais personagens de origens sociais diferentes só convivem em espaços públicos e no qual as separações de classes se fazem sentir o tempo todo. Em Dostoiévski, porém, um simples cubículo é capaz de comportar nobres, burgueses, funcionários públicos, estudantes e vagabundos que debatem acaloradamente entre si – todos envolvidos em questões metafísicas, que pairam acima das determinações materiais e das segregações entre o público e o privado.

Da mesma maneira, toda a ação da primeira parte do livro (cerca de 200 páginas!) se desenrola ao longo de um único dia, arrastando o príncipe por uma quantidade inimaginável de experiências – como se nada pudesse ser postergado, como se cada ação tivesse um caráter de urgência, como se todo movimento guardasse uma promessa só atingida em momentos de intensidade sobre-humana (a exemplo dos ataques de epilepsia de Míchkin).

Essa compressão do espaço e do tempo aponta para um fato desconcertante: o grande escritor realista era no fundo um místico, no sentido bizantino do termo –leitura defendida pelo filósofo Luiz Felipe Pondé em livro que será lançado no início do próximo ano pela Editora 34 (“Crítica Religiosa a um Humanismo Ridículo: Uma Introdução à Filosofia da Religião em Dostoiévski”).

O que isso significa exatamente? A crítica tradicional muitas vezes interpretou sua conversão ao cristianismo ortodoxo como um fato político: depois de militar no Círculo Petratchévski (grupo de socialistas utópicos) e ser preso por conspirar contra a vida do czar, Dostoiévski foi condenado à morte em 1849, tendo a pena comutada para quatro anos de prisão na Sibéria quando já estava diante do pelotão de fuzilamento (na verdade, a cena toda fora uma perversidade das autoridades, já que a comutação havia sido concedida por Nicolau I antes da data prevista para a execução). Alquebrado pelos anos de degredo, Dostoiévski teria transferido da política para a religião seu sentimento de revolta, dando conotações messiânicas a sua adesão ao movimento eslavófilo (uma forma de nacionalismo que contrapunha a pureza da alma russa ao desenraizamento provocado pela ocidentalização da Rússia). A religião, todavia, não teria conseguido sufocar seu anarquismo essencial –e a prova disso estaria na parábola do Grande Inquisidor, episódio alegórico (narrado em “Os Irmãos Karamazov”) no qual Cristo retorna à terra e é preso pela igreja católica espanhola porque sua mensagem de liberdade seria insuportável para o homem. A Igreja Católica, segundo uma interpretação recorrente, seria aqui uma metáfora de todos os poderes temporais, incluindo o czar (que Dostoiévski se furtara de atacar para não se ver novamente enredado em problemas políticos).

Embora consistente, essa leitura deixa num plano meramente instrumental ou ideológico o misticismo de Dostoiévski –e aqui a intervenção de Pondé é preciosa, pois desvenda no escritor russo uma dimensão “vertical” (ou sobrenatural) sem a qual a crítica da auto-suficiência humanista, contida em um livro como “Memórias do Subsolo”, seria incompreensível ou meramente patológica. O anônimo e irascível narrador dessa novela, que do fundo de sua tocaia investe contra “os palácios de cristal”, as quimeras construídas pelo “homem de ação”, seria simultaneamente um instantâneo do estado de agonia do homem na natureza e uma abertura para as visitações do transcendente.

Essas “visitações” não ocorrem em “Memórias do Subsolo”, mas despontam ao fim de “Crime e Castigo” (com a redenção de Raskolnikov) e nas crises de epilepsia do príncipe Míchkin, estes momentos de iluminação mística, de experiência interior de Deus que se dão justamente a partir da doença e da desagregação da natureza (na qual um cientificismo estreito gostaria de nos encerrar). O anticlericalismo de Dostoiévski, dentro dessa perspectiva, não seria uma defesa política da Igreja Ortodoxa contra a Igreja de Roma, mas a expressão de uma teologia negativa, bizantina, que evita a pretensão dogmática dos escolásticos (que buscam em vão “provar” a existência de Deus) e percebe o sobrenatural a partir de nossa disfunção essencial e da própria incapacidade de descrever ou contemplar um Deus todavia entrevisto pelo homem em seu exílio “vertical”.

Essa leitura, longe de destituir o valor propriamente literário de Dostoiévski, ajuda a compreender melhor o caráter anti-estetizante e anti-literário de obras como “Memórias do Subsolo”, “O Idiota” ou “Crime e Castigo” – cujas asperezas e redundâncias são recuperadas pelas traduções de Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra, sepultando antigas versões feitas a partir do francês (que suavizavam a escrita dostoievskiana).

É conhecido, por exemplo, o repúdio de Tolstói ao estilo “mal-acabado” dos romances de seu “duplo” literário. Também Tolstói tinha uma preocupação com o desenraizamento do povo russo e pregava o retorno à simplicidade da igreja primitiva e aos valores da vida camponesa –uma fuga do mundo tematizada no livro “Padre Sérgio” (publicado pela Cosac & Naify em tradução de Beatriz Morabito).

Mas, em Tolstói, as crises religiosa, política (sua renúncia aos privilégios de nobre latifundiário) e até mesmo estética (sua rejeição da arte ao final da vida) são expressão das frustrações de uma utopia inspirada em Rousseau (e, portanto, “ocidentalizante”). A crítica ao “homem inútil” contida em “A Morte de Ivan Ilitch” deságua no vazio sem consolo do humanista confrontado com a morte e com um mundo que lhe escapa por entre os dedos. Algo bem diferente, portanto, da superação metafísica que se antevê ao final de “Memórias do Subsolo”.

Enquanto escreveu, Tolstói jamais conseguiu se libertar de seu próprio talento literário, em nenhum momento ele consentiu em transgredir as regras da grande arte como forma de superação de suas limitações: quando a arte se demonstrou incapaz de transformar o mundo, abdicou dela. Mesmo “Ana Karênina”, que deveria ser uma condenação da vida “mundana”, se desdobra em dois enredos paralelos (a história da adúltera Ana Karênina e do camponês aristocrático Liévin) que resultam numa sinfonia perfeita e fazem da protagonista uma figura feminina cuja complexidade consegue suplantar até mesmo a Emma Bovary de Flaubert.

Comparado a Tolstói, portanto, Dostoiévski é o avesso do artista que lança um olhar olímpico sobre a realidade. Seus livros de enredo caótico e o discurso circular de suas personagens não estão a serviço da representação do existente ou da autonomia do objeto estético, mas de uma outra ordem, mais obscura e transcendente –e por isso Joseph Frank deu ao quinto e último volume de sua biografia do escritor russo (que vem sendo editada no Brasil pela Edusp) o título de “Dostoiévski: O Manto do Profeta”. Obviamente, é preciso cautela quando se lê um escritor a partir de um recorte extra-literário. Mas talvez se possa dizer que Dostoiévski que foi o profeta de todas as convulsões que marcaram a história da literatura depois de sua obra.

(texto originalmente publicado no caderno “Sinapse”, da Folha de S.Paulo)

Manuel da Costa Pinto

 

   

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

Manuel da Costa Pinto



O outono da aristocracia:

 

O Leopardo de Lampedusa

e a adaptação cinematográfica de Visconti

 

O italiano Luchino Visconti (1906‑1976) é o diretor mais “literário” da história do cinema. Sua filmografia está totalmente impregnada pelo diálogo entre imagem e letra: Obsessão (1942) é baseado numa tradução para o francês de The postman always rings twice, de James Cain, que Jean Renoir deu a Visconti (que fora seu assistente no final dos anos 30); Senso (1952) é uma adaptação da obra de Camillo Boito; Rocco e seus irmãos (1960) retoma o espírito verista de uma tentativa frustrada de adaptar I Malavoglia, de Verga; O estrangeiro (1968) foi baseado no romance homônimo de Albert Camus; Morte em Veneza (1971) parte da novela de Thomas Mann; e O inocente (1976) foi filmado a partir do romance de Gabriele d’Annunzio.

Porém, foi na adaptação de O Leopardo – romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) publicado postumamente em 1958 – que Visconti encontrou não apenas uma afinidade literária, mas uma afinidade de classe: o cineasta per­tencente à nobreza peninsular viu no romance desse nobre siciliano a expressão melancólica do declínio da aristocracia italiana, do fim de uma era e de seu ethos mediterrâneo.

O enredo do romance de Lampedusa – que acaba de ganhar uma nova tradução, de Marina Colasanti – está intencionalmente reduzido à presença física de seu protagonista: Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina. Tendo como pano de fundo a unificação italiana por Garibaldi, no século XIX, o romance transforma as peripécias do príncipe num emblema do embate entre a crepuscular nobreza bourbônica e a nova ordem burguesa que desponta no horizonte. Os deliciosos diá­logos de Don Fabrizio com o padre Pirrone (em que a sensualidade incon­trolável do adúltero príncipe contrasta com sua aceitação hipócrita da moral católica); sua adoração pelo sobrinho Tancredi (que se infiltra maquiavelicamente nas hostes garibaldinas afirmando que “se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”); o contrato pelo qual ele acerta o casamento de Tancredi com a adorável Angelica, filha de Don Calogero Sedàra (burguês grosseiro e parvenu); a visita ao palácio dos Salina, em Donna­fugata, do cavalheiro Chevalley de Mon­terzuolo, um bem-intencionado mensageiro dos constitucionalistas piemonteses que tenta convencer Don Fabrizio a aceitar o título de senador e que foge depois de ouvir histórias aterrorizantes sobre a violência endêmica da Sicília – todos esses episódios concorrem para dar contornos nítidos a uma couleur locale que obedece menos ao desejo de escrever um romance histórico do que à necessidade de fazer com que O Leopardo (ou O Gattopardo, conforme a opção da tradutora) reproduza, em sua estrutura narrativa, a adesão do mundo aristocrático à materialidade da experiência, à singularidade de mœurs que só se trans­ferem por laços de sangue (e não por abstratos contratos sociais, como no Estado burguês), desa­parecendo com a morte de seus últimos representantes.

O dispositivo narrativo de Lampe­dusa foi claramente extraído de Stendhal. Num ensaio intitulado Lezioni su Stendhal (Sellerio, Palermo, 1987), Lampedusa escreveu que as personagens do autor das Crônicas italianas estão sempre na busca de paixões que afirmem sua verdade individual contra o fundo opressivo e aniquilador da sociedade – de forma que, na estrutura dos romances stendhalianos, a ação se encerra tão logo a verdade da personagem tenha sido atingida. Daí o fim abrupto de O vermelho e o negro ou de A cartuxa de Parma (cujo protagonista, Fabrizio del Dongo, certamente inspirou Lampedusa na criação do Fabrizio Corbera de O Leopardo). Para Lampedusa, personagens como o Julien Sorel de O vermelho e o negro e Fabrizio del Dongo “encontraram [a plenitude] e portanto deixaram de procurar, isto é, de viver”. E, como o ro­mance persegue essa plenitude, o fim da narrativa se precipita de modo intencionalmente artificial e “antiliterário” a partir da morte do herói.

Partilhando com Stendhal esse ethos aristocrático no qual o mundo que conta é o mundo do herói exemplar, em que a nobreza se refugia na alma individual (último bastião contra os valores mercantis da sociedade burguesa), Lampedusa faz com que O Leopardo acompanhe o apogeu da vida do príncipe, uma vida na qual os vínculos com a terra fazem contraponto com a violenta paisagem siciliana, indiferente aos acontecimentos históricos. A curva temporal do romance acompanha a existência de Don Fabrizio. Quando ele morre, o romance encerra sumariamente vários núcleos narrativos que haviam se aberto, mas que já não fazem mais sentido: o último capítulo termina com as indicações “fim das relíquias” e “fim de tudo”, como se os últimos vestígios da presença material do príncipe apontassem para o fim de seu universo.

Todos os episódios que compõem essa fábula outonal foram exemplarmente transpostos por Visconti no filme de 1963. Além da energia stendhaliana que emana da beleza física de Alain Delon (Tancredi) e Claudia Cardinale (Angelica), o diretor foi de uma felicidade ímpar na escolha de Burt Lancaster para o papel principal. No encontro com Chevalley, por exemplo, o célebre discurso de Don Fabrizio sobre a vocação atávica dos sicilianos para o imobilismo e para a morte, para o retorno voluptuoso aos estágios inorgânicos da matéria, encontra nas pálpebras pesadas de Lancaster o justo equilíbrio entre a condescendência senhorial do príncipe e o cansaço profundo de seu corpo e de sua casta.

Aqui e ali, Visconti cria cenas inexistentes no romance, mas que reforçam alguns dos traços do espírito aristocrático de O Leopardo. Na guerra dos sicilianos contra os garibaldinos, por exemplo, os exércitos do rei não se esquivam das balas, enquanto os revolucionários se esgueiram pelos flancos: para os soldados do rei (que, mesmo não sendo nobres, preservam os resquícios do pundonor medieval), fugir das balas seria como fugir ao destino implícito no seu nascimento e no seu sangue.

A leitura que Visconti faz de O Leopardo se mostra igualmente magistral na chegada da família Salina à Donnafugata. Recepcionados na catedral, eles se acomodam no púlpito lateral para assistir à missa e seus rostos pétreos, caiados de branco pela poeira da estrada, são trans­formados em máscaras mortuárias pela câmera de Visconti, enquanto o fundo musical acrescenta à cena um tom de cortejo fúnebre. Aquela cena de província do fim do mundo, quente e esquálida, continua com a pavorosa música da banda que espera os Salina no adro da igreja, dando cores mórbidas à vida dessa nobreza moribunda que Visconti transpôs das páginas de Lampedusa para a tela – que passa a ser preenchida apenas pelas grandes paisagens minerais da Sicília, que se transformam (como observou o crítico Antonio Costa em Immagine di un’immagine: Cinema e letteratura) em monumentos mudos, em afrescos de um mundo imóvel.

O momento de maior intensidade do filme, porém, é a longa seqüência do baile no palácio Ponteleone, em que Burt Lancaster desfila a melancolia de Don Fabrizio em meio da alegria febril e histérica dos convivas. Numa cena emblemática, Tancredi, Angelica e o príncipe se refugiam na biblioteca do palácio em que há uma réplica do quadro Morte do justo, de Greuze – e as reflexões lúgubres de Don Fabrizio provocam em Angelica um enternecimento que culmina no beijo entre eles e na valsa em que Burt Lancaster e Claudia Cardinale coreografam a dança da burguesia ascendente com a nobreza finissecular.

Visconti e sua roteirista predileta, Suso Cecchi d’Amico, conseguiram dar ao filme um desfecho que, sem ser literal, recria à perfeição o finale da obra de Lampedusa. Se, no romance, a morte de Don Fabrizio anuncia os capítulos em que ocorre a rápida degradação do mundo dos Salina, o filme, em contrapartida, se encerra com a retirada de cena do príncipe, que perambula pelos becos de Palermo após o baile.

Essa retirada, porém, não é desprovida de derrisão. Na cena (do livro e do filme) em que se despedira de Chevalley, Don Fabrizio havia dito: “Nós fomos os Gattopardos e os Leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas, continuaremos a crer que somos o sal da terra.”

Agora, na seqüência final de sua obra-prima cinematográfica, Visconti retoma essa frase com uma imagem de lirismo e ironia: quando o gattopardo de Salina sai do enquadramento da câmera, desaparecendo num vicolo palermitano, surge um gatinho vira-lata, único vestígio de vida nessa realidade amesquinhada que virá preencher o vazio deixa­do pelo príncipe. 

Manuel da Costa Pinto

   

 

Roberto Pompeu de Toledo

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Culpa