Miguel Sanches Neto
Nestlé premia Record e Cia das
Letras
19.05.97
Já Antonio Cicero, com Guardar (Record),
representa a poesia contemporânea
com grande felicidade:
é de um lirismo sem sabor e sem sentido.
Romanticamente comportado,
usando rimas gastas e sentimentos estereotipados
(embora politicamente corretos),
Cicero é um poeta que, confundindo
poema com letra de música,
permanece na superfície dos clichês.
É o pior livro premiado. Mas o pecado
não é só do autor estreante, e sim de todo
o horizonte poético de que ele faz parte. |
Embora o Prêmio
Nestlé de Literatura tenha mudado, os seus resultados continuam
ainda insatisfatórios. Esta é a avaliação de um crítico provinciano
que vê o prêmio de uma posição deslocada geograficamente. Todos os
vencedores estão ligados ao eixo Rio-São Paulo, embora a comissão
julgadora tenha sido constituída por críticos de diversas
procedências. Até a primeira etapa do prêmio, em que foram
escolhidos 18 finalistas, havia uma certo equilíbrio entre as
metrópoles e demais províncias, mas o resultado final, obtido
através de votação em diversos pontos do país, comprova o que todos
já sabemos: vivemos à sombra de uma mídia colonizadora que dita
inventa os grande autores. Todos os premiados são oriundos de
editoras com grande prestígio nacional. Curiosamente, nenhuma das
editoras menores, regionais ou edições do autor recebeu o prêmio,
embora estivessem sido classificadas. O prêmio foi repartido entre a
Record (3 livros) e a Companhia da Letras (2 livros), com a presença
solitária da Global (melhor livro de contos de autor consagrado)
numa categoria em que nenhuma das duas grandes vencedores estava
presente. Mesmo que alguns dos autores premiados sejam do outros
estados, são nomes já devidamente incorporados à produção paulista
ou carioca, como Manoel de Barros que, apesar de ser mato-grossense,
viveu muitos anos no Rio. Isso deixa mais do que evidente que a
segunda fase do concurso, que não dependia mais do júri, acabou
reincidindo numa visão míope da produção literária, segundo a qual,
só tem valor aquilo que já foi aceito por nossos dois grandes
centros de cultura. Mesmo o Rio Grande do Sul, que hoje o terceiro
pólo editorial do país, não conseguiu romper este colonialismo que,
mais do que nunca, o prêmio Nestlé deixa evidente.
O Piano e a
Orquestra (Cia das Letras), escolhido como o melhor romance de autor
consagrado, é também o melhor livro distinguido pelo Prêmio Nestlé.
Ele estabelece definitivamente o ressurgimento de Carlos Heitor Cony,
que passa a ser o romancista mais badalado da literatura brasileira
contemporânea. A grande relevância do autor deve ter contribuído em
muito na escolha de seu livro, embora o prêmio talvez ficasse melhor
nas mãos de Fausto Wolff, cujo livro À Mão Esquerda tem a mesma
qualidade e a mesma densidade do de Cony.
O livro,
apresentado pela editora como um "folhetim cômico-transcedental",
põe em cena o relato da luta silenciosa de um homem contra os seus
fantasmas mais íntimos.
Em última
instância, o que está em jogo não é o confronto entre o Demônio
("encarnado" em seu primo Rodano) e Deus, mas sim entre a sanidade e
a loucura. Este impasse fica significado nas entrelinhas, pois o
romance, tendo uma casca narrativa que cria pistas falsas, é
apresentado como uma reconstituição de parte da história da família
do narrador, a materna, oriunda da região de Vassouras. A
apresentação deste ramo de sua árvore genealógica e do mapa da
região chama atenção para um formato literário que vai ser deslocado
pelo narrador, na medida em que ele não busca recuperar a história
de sua família e sim exorcizar os seus fantasmas.
Olavo, que
nunca tinha dado maiores importâncias ao seu primo pobre e
analfabeto, súbito vê-se interessado por ele. Isso se dá num momento
em que o jornalista se encontra fragilizado.
O narrador
ocupa uma posição intermediária entre dois pontos: a família
interiorana, com suas crenças no sobrenatural, nos poderes mágicos,
e a vida da capital, representada pela ex-esposa, uma psicóloga
conceituada. Tendo recusado a profissão da companheira, que chegou a
abandonar a clínica para agradá-lo, o narrador passa por uma crise
de esvaziamento da vida que o leva a experimentar um delírio que
coloca em risco a sua estabilidade mental. Num de seus passeios pelo
território do passado, o colégio rural onde gastou parte da
infância, depara-se com uma vaca falante. Ter como interlocutor um
animal é algo que, longe de ser uma simples intromissão do
maravilhoso, reforça a dolorosa solidão de Olavo. Estando no mais
completo abandono, ele inventa uma companhia fantástica. O diálogo
com a vaca é, pois, um sintoma do seu desencontro total com o ser
humano, mas é também um forte indício de desequilíbrio, o que o faz
pensar em recorrer à ajuda de um psicólogo, indicado por uma amiga
de sua ex-mulher. Desiste depois da idéia e logo a vaca é abatida,
anulando a possibilidade de agravar a sua crise: "Admitir a vaca
seria admitir que eu não podia mais ser eu, com tudo aquilo que sou,
ou penso ter sido" (p.190). O único problema que persiste é o de seu
primo, cujos poderes "sobrenaturais" acaba ganhando fama. Quando as
coisas estão voltando novamente à normalidade, a amiga de Marta, sua
ex-esposa, o procura para que intermedeie um encontro entre esta e
Francisco de Assis Rodano. A psicóloga acaba se entregando à crença
nas forças paranormais. Completa-se então a ação reflexiva,
circular: Olavo não acredita na análise, mas sucumbe, num primeiro
momento, à tentação de procurar um psicólogo.
Marta, que
acreditava fervorosamente no tratamento científico dos problemas
psicológicos, sendo inclusive o seu agente, se entrega à
possibilidade de uma cura pela suposta paranormalidade.
Olavo, que
havia mandado um jornalista desempregado (única testemunha de suas
conversas com a vaca) para levantar os passos de Rodano na
cidadezinha de Rodeio - maneira que encontrou para se desfazer de
sua presença indiscreta -, perdendo posteriormente todo o contato
com ele, acaba indo à procura do primo, para atender ao pedido de
Ruth, e do seu enviado. Em Rodeio, descobre que este fugiu com uma
mulher casada e que o primo foi fulminado por um raio, no grande
encontro entre ele, o Diabo, e o Outro.
Com isso cessam
todas as forças desestabilizadoras, que são consideradas fantasmas,
e Olavo pode novamente retornar à normalidade: "No meu caso, os
fantasmas não eram metafóricos. E se eu me livrasse de Francisco de
Assis Rodano e Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira [o jornalista],
assim como me livrara da vaca, poderia voltar ao chão normal de
qualquer homem. Voltaria a ser um sujeito comum - teria direito a
novamente me respeitar" (p.258).
Feito este
breve resumo, cabe-nos apontar o princípio construtivo do livro:
este se assemelha a pedradas em água parada que formam círculos
concêntricos em torno de um ponto ferido. Assim, temos uma intensa
repetição de frases, de atributos dos personagens, de explicações e
de expressões com que foi definida uma pessoa. Isso dá à narrativa
um movimento circular. Mas não é apenas estruturalmente que o autor
recorre à imagem da circularidade. O próprio enredo tem esta
configuração e está metaforizado na imagem da roda-gigante. No fim
das tardes de domingo, este momento de inquietação, Olavo gasta o
seu tempo passeando sozinho por um parque de diversões decadente.
Ele não quer se divertir, mas experimentar a sua solidão. Entra na
roda gigante quando não tem mais ninguém, escolhendo invariavelmente
a cadeira número nove. O nove, sendo três vezes o três, é o símbolo
por excelência da circularidade. O três é uma imagem do ciclo
completo e perfeito. O nove, portanto, é uma cadeia infinita de
ciclos.
O eixo, em
torno do qual sidera Olavo, é o passado. Todo o percurso narrado lhe
serve como uma preparação para aceitar de forma não-problemática a
sua solidão, que perde a seu aspecto negativo, tornando-se neutra, e
que lhe garante, contra a loucura à qual ela conduz num primeiro
momento, uma situação de estabilidade. Isso é conseguido sem que o
narrador tenha que recorrer a nada nem a ninguém. A solidão aceita
("decidi que a solidão era o que mais me convinha, entre outros
motivos porque eu estava habituado a ela" - p.297) é o território da
lembrança, momento em que se pode voltar os olhos para uma dimensão
perdida. A sua vida então é a própria roda-gigante, que tem como
centro imóvel o passado: "Chegara a tentar uma explicação para essa
mania, essa fixação pela roda-gigante: o fato de subir e descer sem
sair do lugar. Era uma vocação e um destino" (p.298). Desprezando a
idéia de progressão, que projeta no futuro a felicidade do ser
humano, o narrador se entrega ao destino circular, a este movimento
fixo. Na trajetória de Olavo pode ser lida, sem grandes esforços, a
própria trajetória de Cony romancista, entregue a uma vocação para o
movimento de rotação da roda-gigante. Tomado por uma força centrípeta, ele segue um itinerário fechado em torno do vivido.
O Piano e a
Orquestra é portanto um romance em que estão sendo narrados não os
feitos transcendentais de Rodano (que é apenas um louco), mas o
doloroso caminho para se chegar à conciliação de solidão e sanidade.
A imagem de separação em que o título do livro está fundado define,
num primeiro nível, a vida desconectada de Rodano:
"E como não
aceitasse nenhum maestro (nem mesmo aquele a quem chamava o Outro),
o piano (que era ele) ia para um lado e a orquestra (que era o
resto) ia para outro" (p.144). Esta imagem serve também para
determinar o sentimento de ilha do narrador que assume os seu
destino de piano.
Deixando de
lado as aparências, notamos que o centro semântico do romance é a
luta contra o enlouquecimento, desencadeado pela separação com Marta
- o que faz o narrador, no último parágrafo do livro, creditar a ela
a culpa de tudo. Olavo se salva ao escrever o romance, atividade que
também é um exercício de solidão.
O melhor
romance de autor estreante, O Silêncio da Chuva, de Luiz Alfredo
Garcia-Roza (Cia das Letras), é uma confirmação da desmonetização
dos experimentalismos que definiu o retorno de Cony. Romance
policial muito bem escrito, com sabor, coerência e leveza, O
Silêncio da Chuva nada tem a ver com os livros similares de Rubem
Fonseca. O seu protagonista, o Inspetor Espinosa, faz jus ao nome.
Fugindo da regra, ele é um policial instruído e sensível, que está
mais para filósofo do que para investigador. A grande novidade do
personagem é que, ao invés de ser um racionalista, ele tem uma
grande vocação para a fantasia. Habitante do mundo da literatura,
tenta resolver uma série de crimes através de um investimento na
imaginação. Logo, a atividade policial, para ele, é irmã da
atividade literária. As construções das cenas possíveis para a
elucidação do crime é um exercício narrativo.
Esta diferença
de Espinosa, leitor compulsivo, não compromete o enredo policial em
que não faltam complicações, sexo e suspense. Com uma estrutura
muito bem elaborada e com uma linguagem tranqüila, O Silêncio da
Chuva é a feliz adaptação do romance policial em terras brasileira,
sendo talvez o que melhor se fez no Brasil na esfera da literatura
de entretenimento.
O melhor de
livro de conto de autor consagrado, Cheiro de Amor, de Edla van
Steen (Global), também marca esta mudança da produção literária.
Seus contos estão ligados ao universo teatral. Aparecerão casos de
lesbianismo, homossexualismo, relações familiares liberais. Outro
característico é o temática essencialmente atual, que vai da AIDS ao
Plano Real, dando grande familiaridade aos seus contos que, mesmos
nos momentos de queda, conseguem comover o leitor. O uso deste
universo de referência tão contemporâneo revela o parentesco com o
discurso teatral.
Trata-se de um
livro razoável que, em determinadas passagens, paga tributo a alguns
clichês. Se ele não chega a ser uma grande obra, é infinitamente
melhor do que o seu mais forte concorrente (Keith Jarrett no Blue
Note, de Silviano Santiago). A sensação que se tem diante da
literatura de Edla van Steen é de um certo sufocamento. O seu é um
universo circunscrito aos espaços íntimos. Suas narrativas são um
tanto adolescentes - inclusive, estilisticamente. Cheiro de amor, no
entanto, merece ser lido pelo que há nele de sinceridade literária.
Entre os
estreantes no conto, Antônio Fernando Borges, com Que fim levou
Brodie?(Record), representa uma corrente diversa. Escritor com
linguagem asseada, os seus contos primam pela fluidez e pela
elegância da construção. É um livro de aluno esforçado que compõe à
maneira do mestre (no caso, o escritor arqui-imitado Jorge Luís
Borges). Que fim levou Brodie? tem boa fatura, mas pouca imaginação
e raros lampejos de genialidade. Fernando Borges escreve como quem
faz as tarefas de casa, não suja o uniforme e gosta de sentar na
primeira fila. No conjunto, o livro é tão chato como os trabalhos
dos alunos bem comportados.
Além disso, ele
retoma um tema muito surrado, que faz parte de uma época já superada
(os anos 80), quando era novidade escrever ficção como ensaio. É,
portanto, fruto temporão da corrente dos simulacros literários,
corrente que está sendo contestada pela literatura dos anos 90, que
volta a investir no biográfico, no autêntico, no vivido.
Na poesia, a
premiação de Manoel de Barros coincide com a de Cony. O seu livro
acabou sendo escolhido em função de seu prestígio nacional. O
concurso, no entanto, se tivesse premiado Ruy Espinheira Filho,
poderia ter tirado do anonimato o grande poeta baiano que é uma de
nossas vozes líricas mais importantes. O livro sobre nada (Record)
funciona como uma antologia da obra de Barros. Poeta basicamente do
verso (o que fica visível no grande número de pontos finais em seus
poemas), ele aparece no volume plagiando, estilística e
tematicamente, a si mesmo.
Seus poemas
continuam explorando o universo infantil e a linguagem desregrada
que o notabilizaram. A imagem de um livro sobre nada reitera a sua
concepção de poesia enquanto objeto inútil cuja utilidade é chamar a
atenção para as coisas sem utilidade. O conceito do nada ganha
significação na medida em que nega um mundo marcado pelo consumo e
pela posse. É impossível apreender o sentido de sua poesia sem
pensar nesta antinomia. O poeta, para ele, deve ser sempre um ser
antitético, contraditório, navegante contra a correnteza.
Sua linguagem é
marcada por um sem-número de prefixos negativos que demonstra com
muita clareza este processo de negação. Mas a negação do mundo
tecnológico, matemático por excelência, se dá também através de dessemantização da linguagem: o poeta investe na anomalia
lingüística criando um terremoto nos significados. Esta sabotagem é
a sua forma de afastar a poesia de um mundo em que exatidão é igual
a domínio.
O livro em
apreço vem, como já se tornou praxe em sua obra, dividido em tomos:
"Arte de infantilizar formigas", "Desejar ser", "O livro sobre nada"
e "Os Outros: o melhor de mim sou Eles". Esta divisão tem
correspondência com a própria técnica de fragmentação que
caracteriza a sua poesia. A fragmentação se dá em três níveis: o
verso é composto por palavras que não se casam, que se chocam; o
poema é composto por versos isolados; e o livro, por partes
separadas. As lacunas que aparecem no seu texto têm por objetivo
romper com o ritmo suave, com o fluxo pacífico, fazendo com que a
leitura se dê aos trancos, para mexer com o leitor.
Já Antonio
Cicero, com Guardar (Record), representa a poesia contemporânea com
grande felicidade: é de um lirismo sem sabor e sem sentido.
Romanticamente comportado, usando rimas gastas e sentimentos
estereotipados (embora politicamente corretos), Cicero é um poeta
que, confundindo poema com letra de música, permanece na superfície
dos clichês. É o pior livro premiado. Mas o pecado não é só do autor
estreante, e sim de todo o horizonte poético de que ele faz parte.
Página inicial do Disseram d+ d-
Página inicial da Lista dos 20
Temporada de caça aos 20 da lista
Carta de Gerardo Mello Mourão
Listas, uma idéia interessante(des)
|