Uma casa
maior que o mundo.
Gazeta do Povo,
12.08.2000
Percorrendo
quatro cantos da poesia contemporânea, o crítico elege a sua
morada.
Sem nenhum
incentivo, vivendo um momento de orfandade crítica e midiática,
a poesia continua dando frutos num sistema de recepção fechado,
em que apenas os leitores domésticos, geralmente outros poetas ligados
por vínculos de amizade, entram em contato com os livros. Esta auto-suficiência
imposta aos bardos se dá não apenas pela falta de mercado,
mas também pela ausência de critérios editoriais seletivos,
tudo sendo publicável: em casa, para atender demandas pessoais,
ou em pequenas editoras, que antes imprimem os livros do que os transformam
em produto de valor extrínseco, ou seja, em um objeto desejável
dentro de um horizonte de consumo sofisticado.
Esta superlotação
poética nas prateleiras das livrarias faz com que bons autores fiquem
à margem de um público maior. Este é o caso de Iacyr
Anderson Freitas, que publicou por conta própria
o livro Mirante (Juiz de Fora, 1999), reunião de 33 sonetos, num
livro centrado nas incertezas do eu. O soneto, tão questionado nas
últimas décadas, volta como uma possibilidade de ligar a
poesia de agora aos grandes nomes da língua portuguesa, viabilizando
assim o reencontro com uma tradição positiva apagada de nossa
poesia por poetas modernos que transformaram sua incapacidade de unir engenho
e arte em preconceito, decretando a morte do soneto - exercício
de rigor e de magia. Esta forma poética é vista como um meio
de expressão legítimo e atual num tempo, como o nosso, de
poemas ruins:
Abre-se um
novo embate. Abre-se a musa.
Eis que o
metro força o antigo engenho.
Devo encaixar
o mundo numa blusa e, pródigo, doar o que não tenho.
Devo encontrar
outrora este soneto.
Também
medir com régua cada estrofe.
Não
se assuste o leitor. Este é o único poema metalingüístico
do livro e cumpre a função de posfácio. Nos demais,
Iacyr Anderson Freitas fala de coisas vividas e sentidas, como toda grande
poesia, fundando-se no homem. Dono de uma língua universal, consegue
ele dar naturalidade a textos que tratam de forma clara sentimentos de
impotência diante do tempo, buscando no amor renovado a recuperação
de toda a alegria, hoje perdida.
Mais elíptica
e fragmentária, a poesia de Manoel Ricardo
de Lima (Embrulho, 7letras, 2000) opera numa outra sintonia, destacando-se
por um discurso em ruínas. É a atonalidade buscada pelos
jovens poetas que encontraremos neste livro que não quer dizer,
apenas sugerir as situações, renunciando à linguagem
em nome de um silêncio que corrói todos os poemas. Levando
à risca a economia dos meios, Manoel Ricardo se opõe a toda
poesia que se queira acabada, bem elaborada, para permanecer na luta contra
a poesia propriamente dita, tida pelo autor com fora de tempo e de lugar.
Persegue a linguagem da juventude achando que isso lhe dará a juventude
da linguagem - aposta um tanto arriscada numa época em que nada
envelhece mais rápido do que os valores da moda. [Mais comentários
de Cláudio Portela]
Em uma outra
latitude poética, Weydson Barros Leal, Os
ritmos do fogo (Topbooks, 2000), se dedica a um fechamento da linguagem,
em poemas que se encaminham para o hermético, influência declarada
de um Rimbaud e de um Rilke, embora em alguns momentos escreva poemas de
conteúdo mais transparente - não por acaso os de melhor qualidade
-, num livro que é competente, embora sem a chama poética
da genialidade. Os seus ritmos são antes os do incaraterístico,
longe do fogo sagrado dos textos de Rimbaud, o escritor vidente por excelência.
Indeciso entre
vários estilos, Weydson é vítima do fascínio
pela influência, buscando modelos que não se ajustam entre
si e à voz do poeta. A influência só é produtiva
quando ela soma com o que trazemos conosco - verdade um tanto óbvia
que vem sendo esquecida.
Embora com
uma precisa percepção das dimensões que faz o gênio,
que exprime a imensidão do eu e de seu poder de criação,
como fica sugerido em um dos mais belos versos do livro ("A casa de minha
infância / era maior que o mundo que passava na rua" p.50), a sua
poesia reconhece como maior o mundo literário do que a casa do poeta,
espaço próprio que deveria ter sido alargado para rivalizar
com tudo aquilo que não é ele. Os grandes livros de poema
fazem-se umbigo do mundo, relevância que a coletânea Os ritmos
do fogo não consegue adquirir para o leitor, que se sente mais dentro
do mundo em que vivemos do que na casa grande que é o livro de poemas
bem realizado.
É esta
a proeza justamente de um jovem poeta gaúcho, Capinejar,
cujo segundo livro (Um terno de pássaros ao sul, Escrituras, 2000)
encanta e prende o leitor da primeira à última página,
tanto pelo ritmo extremamente ágil quanto pelo forte princípio
masculino de um discurso que se faz força de expressão. Este
poema-livro é unificado pela busca biográfica da figura paterna,
afastada da família pelo divórcio. Filho de Carlos Nejar
e Maria Carpi, dois poetas gaúchos, o autor reencontra o pai neste
livro, recuperando-o pela poesia. Manejando metáforas espontâneas,
por mais inesperadas, Carpinejar esbanja vitalidade poética, não
havendo recuo ou hesitação em seu livro de pura vitalidade.
Valendo-se
de tercetos, meio à maneira de Dante, a quem faz referência,
mas sem o rigor dos versos medidos a régua, Carpinejar recupera
o pai ausente (de sua vida e de sua terra natal) e sua poesia telúrica,
tanto pelo tema quanto pelo estilo, colocando-se como uma grande força
poética.
A tensão
do livro se constrói sobre a ausência física do pai,
com referências à morte, uma morte metafórica, e a
necessidade de perdoar esta ausência, de transformá-la em
presença. O poeta vai rememorando o pai e o pampa, este espaço
carregado de sentido para Carlos Nejar (que fez dele uma experiência
de poesia), tecendo a unidade entre os dois. O filho, ao voltar-se para
este pampa real e poético (presente também nos livros de
Carlos), se depara justamente com o pai, porque ambos são um só.
Se o poema se abre com um pedido impossível ("Volta para o pampa,
pai"), revelando a saudade e o desejo de desfrutar do convívio físico
com Nejar, mesmo sabendo que a "casa dele é distanciar-se", ele,
o poema, acaba com uma inversão extremamente reveladora: "Volta
ao pai, pampa". É justamente este o sentido de Um terno de pássaros
ao sul, poema longo que, fundado no mitopoético universo paterno,
devolve o pampa a Carlos Nejar, agora personagem de uma outra saga, onde
o velho poeta que recuperou a história de seus antepassados é
personagem e não mais sujeito, papel reservado para a nova geração
da família.
Não
pense o leitor, no entanto, que este livro é uma nota de rodapé
da obra de Nejar. Não, ele encena um drama próprio e numa
freqüência de linguagem particular que complementa esta invenção
lírica dos pampas, criando um outro Nejar, o personagem visto pela
ótica de abandono do filho:
Quem te conhece
pela fama, Não te conhece ainda, apenas a projeção
do que inventaste em vida.
Em todos os
versos, sentimos que a casa mítica do autor, o Sul, é maior,
muito maior do que o resto. |