Nilto Maciel
A arte de engolir palavras
20.03.2005
Com o livro A arte de engolir
palavras, constituído de 20 peças, Lourdinha Leite Barbosa estreou
no gênero conto. No ensaio intitulado "Sobre A arte de engolir
palavras e outras artes", aposto ao volume como posfácio, a
professora Vicência Maria Freitas Jaguaribe faz minuciosa análise da
obra, que poderia deixar os críticos sem mais nada a dizer. Assim,
vê na coletânea cinco narrativas fantásticas, sendo as demais "de
natureza mimética ou realista, no sentido mais geral desse termo".
Algumas histórias da coleção tratam de
pequenos dramas pessoais, quase sempre femininos ou na visão
feminina (personagem-narradora), em reduzido número de parágrafos
curtos, fundados no recurso da narração, com breves diálogos. Como
também observa Vicência Jaguaribe, "o narrador de terceira pessoa
desse conto, como o de muitos outros, parece um mero recurso da
autora para emprestar à narrativa uma ilusão de objetividade, pois
quem na realidade acaba filtrando os fatos para o leitor é a própria
protagonista, por meio da técnica do discurso indireto livre, que
soa quase como um monólogo".
A maioria das peças do volume foi
construída como narrações em terceira pessoa. Personagens-narradores
encontram-se em "Nó cego", "Poça dágua", "Flores de papel", "Medo" e
"Encantamento". Na primeira, uma das mais longas do livro, uma
mulher conta a sua desilusão amorosa: flagra o marido com outro
homem, em "beijo profundo, prolongado", sem deixar claro ao leitor a
identidade do outro, talvez para dar ao conto um ar de mistério. Na
segunda narrativa, de feitio fantástico, outra mulher narra o
próprio desespero, como num pesadelo. O leitor, entretanto, só
percebe o perfil feminino no desfecho, quando a personagem observa:
"Sei que estou ferida, mas não sinto dor". Na terceira história
desse tipo, a protagonista Zefa, a moça doida, desenvolve a narração
no presente, em monólogo interior. "Medo" tem como narrador um
homem, embora também pudesse ser mulher. Nas primeiras linhas ele se
diz desesperado. No último dos contos em primeira pessoa um menino
apaixonado pela bailarina do circo conta a história.
Raríssimas vezes a contista se vale do
flagrante, dando o narrador pequenos saltos no tempo, a cada
parágrafo. Em "Bumerangue" a protagonista, sem nome explícito, chega
a uma fazenda. Em flash-back a narração se volta para a partida da
personagem ("Partira escorraçada e humilhada"). Seguem-se breves
narrações-descrições do ambiente ("cozinha larga e clara"; "colheita
do feijão"; "as chuvas trouxeram à fazenda"). Após meia dúzia de
frases, apresenta o segundo ser fictício, "um rapazola franzino, de
olhar manso e fala pouca". E novo conflito se instaura, até o
desfecho, quando a mulher, "resignada, partiu em busca de um novo
refúgio, como a fechar uma porta sem fim". Dessa forma, Lourdinha
Leite Barbosa consegue pintar a protagonista por dentro, bem como o
ambiente onde ela vive e o tempo dos seus embates interiores, tudo
em pouco mais de 30 linhas. Em "A Valsa Proibida" esta técnica se
repete, com algumas variações: os flashes-backs são mais longos, o
tempo narrado se encurta, a personagem tem nome explícito, Mirta, e
o desfecho parece feliz.
Às vezes o tempo se dilata, enquanto o
espaço da ação se restringe. Em "Vida em três tempos", como o
próprio título indica, Marília se revê em três momentos de sua vida.
Pensa, rememora. O conflito é interior; a protagonista se acha em
casa, a olhar para "o porta-retrato em cima da mesinha de
cabeceira". Ao final, "enrodilhou-se na velha poltrona", a dizer ao
leitor que dali não saiu, ao longo da narração. Outras vezes o
espaço se amplia. Em "Aqui, ali, acolá", como o título mostra, a
ação se dá em diversos lugares: no campo (árvores, pedras, estrada);
na cidade ("avenida larga e movimentada"), uma pousada, um hospital.
Em "Uma paisagem quase perfeita" as personagens habitam um casarão
antigo, com seu porão escuro e o grande quintal cheio de árvores:
uma paisagem quase perfeita. Como nos contos de fadas, as moças
sonham e sofrem de solidão. "Os dias escorriam tão lentos quanto o
rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites". E ocorre a
transgressão no tempo e no espaço: a monotonia é suspensa por um
acontecimento inesperado - a chegada de um jardineiro. A figura
masculina penetra no mundo feminino. "Apenas no quintal e jardim".
Daí por diante tudo se transforma no casarão e nas donzelas, que
vão, uma a uma, murchando, amarelando, morrendo.
Há também histórias folclóricas, que
não deslustram o conjunto, como "Flores de papel", em linguagem
regional: cabaça, tomar tenência, indagorinha, mangar de mim, fazer
mangoça, pataca. A intertextualização com as cantigas de roda dá à
obra um quê de arte literária. Essa localização da trama no espaço
rural ou da cidade pequena ocorre em diversas peças do volume. Em
"Penitente" o protagonista anda por ruas desertas, pelo átrio da
matriz, vai ao açude, embrenha-se no mato, banha-se na cacimba. Não
se tratam, porém, de narrativas regionalistas, quer pela manipulação
da linguagem, quer pela estruturação do enredo. A contista não cansa
o leitor com diálogos intermináveis de matutos e muito menos com
descrições enfadonhas de paisagens e topografias.
Os personagens de Lourdinha Leite
Barbosa são apenas os que participam diretamente da trama: o
protagonista e o antagonista. Raras vezes aparece terceiro ou quarto
ser fictício. Isso faz com que o conto seja curto e não se desdobre
em mais de uma história ou apresente um enredo dentro de outro.
Mesmo no clássico triângulo amoroso, o terceiro personagem não passa
de sutil lembrança. Em "Bumerangue" a protagonista faz breve
referência ao ex-marido, sem sequer mencionar o nome: "Até ameaça de
morte ele fizera". Apenas "ele" e nada mais. Em "A Decisão",
Hortência lembra do ex-marido em uma frase capital: "ele confessou
que tinha outra". Essa outra não chega a ser personagem. Em "A Valsa
Proibida" pode-se ver uma só ser fictício, Mirta, "mulher idosa,
vestisda de princesa". Seu pai e sua mãe são apenas referidos, em
fato remoto de sua vida. Os amigos são como bibelôs, objetos: "Mirta
recebia os amigos com um largo sorriso". São apenas "homens e
mulheres, em traje de festa". Com tanta economia de personagens, é
natural que os conflitos não aflorem. Pois a trama é quase sempre
pessoal, individual, interior. O enredo por pouco não é abolido nas
narrativas de Lourdinha. Veja-se "Vida em três tempos", que pode ser
o exemplo mais claro disso: a protagonista Marília vive com Dirceu,
que, no entanto, não passa de personagem morto, passado. "Já não
eram um. Calada. Sem nada a dizer. Fingindo não ver, não ouvir.
Brigar para quê?" Ou seja, o outro, Dirceu, não passava de um ser
apático, sem reação, incapaz de participar de um conflito.
Vistos os contos em alguns dos
fundamentos do gênero, resta-nos avaliar a linguagem da contista. Em
primeiro lugar, a concisão e a precisão, presentes na maioria das
histórias. Em conseqüência, a riqueza de sugestões e a economia dos
detalhes, tão bem percebidas por Vicência Jaguaribe. Ou seja,
Lourdinha Leite Barbosa consegue realizar a arte de engolir palavras
em sua primeira coleção de peças ficcionais, enquanto muitos
escritores passam a vida expelindo palavras e terminam sufocados
pela própria verborragia.
Direto
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Barbosa
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