A produção literária de
Lourdinha Leite Barbosa dispensa
qualquer comentário. Alguns críticos
especializados já se encarregaram de
destacar seus contos e ensaios,
incluindo seus trabalhos em
conceituadas publicações. O domínio
da linguagem e o apuro da correção
permeiam sua obra e denotam a
intimidade com que a autora lida com
a palavra.
A originalidade de suas criações
incita a nossa imaginação e comprova
sua qualidade estilística.
Entretanto, isso não é tudo. como
leitora, considero que escrever bem
não é o bastante; é preciso seduzir
e enredar o leitor com uma boa
história. Essa é a arte que
Lourdinha exerce com talento e
sensibilidade; tanto que, aqui e
ali, somos instigados a mergulhar
novamente em seus textos em busca,
assim, de novos desdobramentos.
Quando relemos uma história,
reencontramos as personagens e, a
cada encontro, algo novo se revela,
renovam-se as possibilidades de
leitura. Esta que se segue é apenas
mais uma, dentre tantas, sobre ´Uma
paisagem quase perfeita´. As
protagonistas desse conto transitam
numa atmosfera simbólica, deixando,
portanto, silenciosamente vestígios
de dor e desesperança.
São cinco mulheres sem brilho, sem
cor e sem voz. A casa é sua prisão,
o carcereiro, o pai castrador e
habilidoso em submetê-las à lei.
Como repressor de suas vidas
eróticas é aquele que limita o gozo
e barra seus impulsos desejantes. O
´casarão antigo´ nos remete ao
passado. Lá, afetos e lembranças são
guardados ´num porão escuro´,
obscuro e enigmático, arquivo de
suas fantasias femininas. O ´grande
quintal cheio de árvores´ é um lugar
proibido, onde elas receiam
aventurar-se. A autoridade paterna,
introjetada em seus egos, deu origem
a um superego ameaçador e exigente.
O território do sonho
A ´paisagem quase perfeita´ emoldura
e paralisa as cinco mulheres
amordaçadas, caladas à força. Ali,
´Não se ouviam vozes´, embora as
vozes interiores não sosseguem e
teimem em se manifestar, pois ´todas
sonhavam com grandes espaços,
vastidões sem fim´. Nos sonhos, seus
desejos se realizam de forma
disfarçada, dando-lhes a ilusão de
que seus espaços se expandem em
direção a um objeto que mantém e
reaviva constantemente a pulsão
erótica. Assim, a ´ausência de sons´
não impede que o discurso de suas
almas silenciosas seja
melodiosamente embalado ´pelo
barulho do vento nas folhas e o
gemido das dobradiças no vaivém de
portas e janelas´.
O equilíbrio é mantido pelas
interdições: ´não rir muito,
conversar pouco´. Elas se defendem
da desconfortante e inesgotável
atividade de Eros, sublimando seus
desejos nas contas do ´rosário que
eram obrigadas a rezar todas as
noites´. A ordem era ´rezar sempre´,
buscando compensar suas frustrações,
deslocando o prazer para a
transcendência.
Esgotadas pelo isolamento e
incompletas pela ausência do outro,
que as constituiria como sujeito, as
cinco mulheres são surpreendidas por
um ´acontecimento inesperado´: ´O
pai permitiu que uma figura
masculina, penetrasse no mundo
feminino´. A autora lança mão da
ambigüidade da palavra ´penetrar´ e,
através da sugestão, oferece
indícios das conseqüências dessa
intromissão.
Se, como afirma George Bataille, o
desejo prepara uma fusão na qual se
misturam dois seres em busca de
continuidade e completude, vemos
então que o outro é essencial para
que um sujeito entre na dialética
lacaniana, ou seja, tenha como
objeto do seu desejo ser o objeto do
desejo do outro. Além do mais, com a
suspensão da lei paterna, instala-se
a transgressão, elemento da
atividade erótica.
A partir daí, o silêncio é quebrado
e o desejo violentamente exposto;
regras e limites são violados em
busca do prazer disfarçadamente
resignado ao confinamento. Convém
lembrar que, para Freud, o que é
reprimido sempre retorna e o retorno
do recalcado cobra um preço: a
angústia que advém do conflito entre
o princípio do prazer e um outro: o
princípio da realidade. A narrativa
ganha uma vivacidade própria e, uma
a uma, as cinco mulheres são
envolvidas por ´uma onda de calor
que se propaga pela propriedade´.
Ligam-se os corpos, os seres e as
coisas; a quantidade de calor é
excessiva para quem sente, desse
modo, sua vida reduzida a cinzas.
O outro
Assim, ´Clara foi a primeira a
escurecer´, assustada com o fascínio
que exercia no outro. Ao negar
oferecer-se como objeto brilhante,
´terminou retinta, negra como a
escuridão´, que insistia em não
abandonar. ´Margarida amarelou´,
desvirginada ´se desnudou´. Criou
vida própria, espalhou sementes onde
antes a terra era estéril. ´Nesse
dia o pai teve que abrir as portas´
e permitir a vazão da paixão que
rompia regras impetuosamente.
Magnólia ´desmanchava-se em água´.
Fervia. Não houve como retê-la,
´escorria pelo piso e ganhava as
ruas´. O grande reservatório
libidinal rompeu-se sob o jugo do
princípio do prazer. Magnólia
dissolveu-se no desejo do outro. Já
Aurora, ´tão solar, emudeceu´.
Voltou à obscuridade, angustiada
pelo medo de ser punida. ´A voz
calou´ e optou por repetir o
fracasso e conviver com a dor já
conhecida. Por precaução, cerrou os
lábios que ´desapareceram para
sempre´. Eugênia, ´enlouquecida,
explodiu em chamas´. Ateado o fogo
transformador, que ardia como brasa
sob o silêncio, o efeito foi
devastador. Não suportou a
embriaguez de tanto oxigênio.
Iluminou a ´paisagem quase perfeita´
como fogos de artifício.
Não é por acaso que, mais uma vez,
Loudinha Leite Barbosa, traduz em
cenas de rara beleza as inquietações
e expectativas do universo feminino.
Afinal, o centro das atenções da
autora é a grandeza trágica da
condição de ser mulher, conforme
ensaio de Vicência Jaguaribe (2001)
A nosso ver, o conto, ´Um paisagem
quase perfeita´, pode ser
interpretado como uma metáfora do
desejo. As cinco personagens
revivem, através do pai, a
atualização constante da castração,
criadora da falta. Como seres
faltosos, vivem em busca de algo que
foi perdido para sempre, e se foi
perdido, jamais será reencontrado. A
princípio, a insatisfação é
sublimada e a angústia canalizada
para a oração, porém a entrada em
cena do outro modifica o quadro.
A intromissão se dá pelo relaxamento
da lei paterna e, como conseqüência,
elas são tomadas,
incondicionalmente, pelo princípio
do prazer. O excesso de energia
recalcado por anos a fio, investe
libidinalmente este outro que passa
a ser visto como objeto de seus
desejos. Deixam-se, então, levar
pelas exigências da pulsão erótica
que anseia, assim, à liberação
total.
BIA JUCÁ*
Colaboradora
*Psicóloga e licenciada em Letras
SAIBA MAIS
FREUD, S. O Ego e o Id. In:
Edição Standart Brasileiradas Obras
Completas de Sigmund Freud. v. XIX.
Rio de Janeiro: Imago, 1979.
MEZAN, Renato. Freud pensador da
cultura. São Paulo: Brasiliense,
1990.
NASIO, J. David. Os 7conceitos
cruciais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto
Alegre: LP&M, 1987.
LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de
engolir palavras. Recife: Bagaço,
2001.