Peron
Rios
15.6.2003
Secchin, entre
memória e o imaginário
“Em
sua primitividade psíquica, Imaginação e Memória aparecem em um
complexo indissolúvel. Analisamo-las mal quando as ligamos à
percepção. O passado rememorado não é simplesmente um passado da
percepção . ( ... ) Para reviver os valores do passado, é preciso
sonhar, aceitar essa grande dilatação psíquica que é o devaneio,
na paz de um grande repouso. Então a Memória e a Imaginação
rivalizam para nos devolver as imagens que se ligam à nossa
vida”.
Gaston
Bachelard. A Poética do Devaneio.
Antonio
Carlos Secchin não consegue surpreender com a publicação de seu
novo livro, Escritos sobre poesia & alguma ficção. O
que é uma alegria para o seu leitor assíduo. Não se trata de mais
um livro de ensaios, mas, como percebeu com inteligência André
Seffrin,
de uma ficcionalização da crítica literária. Desse modo, põe à
margem o pernóstico vocabulário acadêmico ( que nunca o
contaminou ) para poder manter a beleza, tantas vezes vitimada, do
objeto que observa.
As
duas criações mais explícitas do livro ( Memórias Póstumas
de Castro Alves e Em torno da traição ) acabam sendo
apenas uma metonímia mais impactante de sua crítica escritural, o
que se percebe desde Poesia e Desordem, passando por seu
estudo de referência João Cabral : a poesia do menos.
Poetização
da escrita ensaística, conexão de uma sintaxe limpa e legível com
uma elaborada seleção vocabular e sem afetação, aproximação
metafórica que põe em risco o conceito para dar vazão à percepção
ativa, infidelidade à ilusória exatidão iluminista, são
qualidades que, juntas, retiram o mérito da adivinhação :
trata-se inevitavelmente de Antonio Carlos Secchin.
Mesmo
aqueles que, com razão, recusam as famosas listas de superlativos,
no espaço artístico, vêem-se tentados a perceber o crítico
fluminense como o mais agudo leitor de poesia da atualidade. Por via
de seus textos, sempre faz uma defesa da literatura, mas acentua o
olhar para uma defesa da poesia. Sem deslizar para um
“etnocentrismo” dos gêneros de criação, já afirmou sentir-se
incomodado com a ênfase que se joga sobre a prosa, às custas de um
certo ostracismo da produção poética em verso.
Escreve,
dessa maneira, o ensaio Memórias Póstumas de Castro Alves,
de intertextualidade flagrante, e que abre essa sua nova coletânea.
Inicialmente publicado, em 1997, numa edição comemorativa dos 150
anos do poeta dos escravos, felizmente é reeditado nos Escritos,
evitando se perder no fatal esquecimento de todo periódico. Uma
breve biografia do autor de Tragédia no Mar é escrita na
primeira pessoa, ou seja, ele narrando por si mesmo sua vida tão
apaixonada e conflituosa. E começa o relato, assim como Brás
Cubas, a partir de sua própria morte. Da mesma forma que se
vislumbra na sua Carta ao Seixas, ficção e história aqui
se realizam num complexo insolúvel. De fato, é impossível, em
certos momentos, separar onde finda a voz do Castro Alves morto e
onde inicia a do crítico Secchin. Por exemplo, ao falar de sua
poesia retórica e exclamativa, o poeta romântico afirma nas
“suas” memórias:
“[...]
não era com sussurros que se incendiava o público : era com
entusiasmo, dramaticidade, retórica. Eu tinha consciência de que
fazia alguns poemas para voz alta, e não para leitura com um chá
no aconchego das cadeiras de balanço”.
Não
é improvável que essa consideração pertença apenas a um dos
elementos envolvidos: ao escritor romântico ou ao poeta que o
recriou. Como é também possível que seja um juízo comum a ambos.
De todo modo, a ambigüidade está definitivamente instalada. Um
outro trecho vem reforçar o que deixamos dito :
“
Tive a bênção de ser o último poeta a casar povo e poesia, e já
estava bem morto à época do divórcio”.
A
ideologia que circula em torno da palavra bênção é
certamente do poeta dos escravos. Mas o texto também permite
imaginar, ainda que seja um pouco menos provável, que o crítico
Secchin lamente de algum modo o divórcio referido. Essa comunhão
de vozes se torna visível também se conhecermos alguns pontos
biográficos do autor de Todos os Ventos. Ao descrever a
dificuldade de Castro Alves para a matemática, ele acrescenta :
“o consolo é que, para fazer poesia, quase nunca é preciso
contar além de 12 sílabas, e esse número basta para acolher o
universo inteiro”. Ora, o alívio do poeta romântico é também o
do Secchin entrevistado pela Folha PROLER, onde admite as
dissonâncias com as abstrações do cálculo. Sendo assim, a
desnecessidade da matemática para a percepção do universo não
deixa de ser uma deliciosa desforra do poeta fluminense.
Mas
dizendo apenas isso, não diria o essencial. O ponto-chave para a
feitura de um tal texto são as mãos que o escrevem. Quanto seria
artificioso alguém compor sem arte as falas de um escritor como
Castro Alves ! As Memórias
levam ao extremo uma crença que perdurou na modernidade : só um
poeta pode escrever tão bem sobre outro poeta. Um crítico no máximo
inteligente pode convencer o seu leitor pela força dos argumentos
que apresenta. O escritor, ao se aventurar na crítica, convence por
outra via a meu ver mais eficaz : pela via do contágio. Assim também
irá pensar André Malraux, em L’Homme Précaire et la littérature.
A morte do irmão é assim narrada pelo Castro Alves ficcional :
“
Em outubro do ano anterior já dava sinais de desequilíbrio. O
jeito foi mandá-lo ao Rio, a ver se melhorava. Acabou
suicidando-se. Sofri, me lembrei da primeira tentativa; a segunda,
desgraçadamente, dera certo. Loucura e morte se abraçaram, e
comemoraram as bodas em cima do cadáver de José”.
A
última frase guarda uma imagem que só um olhar literário poderia
conceber. A fuga da referencialidade, o vislumbre dos atros planos
do cosmos - fixado no abraço entre a morte e sua causa -, a metafísica
( tanathos e a loucura ) pensada metaforicamente, sob uma visão
pessimista do homem enquanto fruto de ironia e objeto de uma
perversa alegria do Universo. Tudo se condensa na concisão da
imagem poética construída por Secchin. Um outro momento feliz das Memórias
é a descrição da morte de seu personagem :
“
Seis de julho de 1871, três e vinte da tarde. Daqui a dez minutos
vou morrer. Peço à mana que me ajude a levantar da cama, quero ir
à janela e ver ainda uma vez o sol. Com grande esforço apóio-me
ao parapeito; a respiração ofegante, o suor, essa dor no peito. Imóvel,
sinto que a luz do sol se escurece, ou talvez seja eu que esteja
escurecendo dentro do dia que insiste em brilhar. Três e meia.
Castro Alves não existe mais”.
Com
exceção das rimas internas entre mana e cama, peito
e parapeito, que deixaram o bom gosto um pouco à deriva, o
restante da frase conserva uma força invulgar. A metáfora do pôr-do-sol
não do dia, mas do homem, é admirável. E tudo isso tendo por invólucro
a amplitude da palavra, o ritmo que não desliza ou extrapola as
regras de eufonia.
É
por momentos como esses que Antonio Carlos Secchin será sempre um
convite na estante, uma tentação do olhar e, sobretudo, dos
sentidos. Por vezes, sob a necessidade de enfrentar ensaístas sem a
mínima sedução, será preciso fechar de algodão os nossos
ouvidos quando se aproximar a palavra do autor dessas Memórias.
Com sua leveza não de pluma, mas de pássaro, o autor nos faz
compreender concretamente as palavras da escritora Virgínia Woolf :
“ Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro
dos nossos pensamentos”.
Peron
Rios
Recife,
20/06/2003.
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