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Peron Rios

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Poesia:

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Ensaio, resenha, crítica & comentário:

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

Peron Rios

15.6.2003

Secchin, entre memória e o imaginário 

 

“Em sua primitividade psíquica, Imaginação e Memória aparecem em um complexo indissolúvel. Analisamo-las mal quando as ligamos à percepção. O passado rememorado não é simplesmente um passado da percepção . ( ... ) Para reviver os valores do passado, é preciso sonhar, aceitar essa grande dilatação psíquica que é o devaneio, na paz de um grande repouso. Então a Memória e a Imaginação rivalizam para nos devolver as imagens que se ligam à nossa vida”.  

Gaston Bachelard. A Poética do Devaneio.

 

 

Antonio Carlos Secchin não consegue surpreender com a publicação de seu novo livro, Escritos sobre poesia & alguma ficção. O que é uma alegria para o seu leitor assíduo. Não se trata de mais um livro de ensaios, mas, como percebeu com inteligência André Seffrin[1], de uma ficcionalização da crítica literária. Desse modo, põe à margem o pernóstico vocabulário acadêmico ( que nunca o contaminou ) para poder manter a beleza, tantas vezes vitimada, do objeto que observa.

As duas criações mais explícitas do livro ( Memórias Póstumas de Castro Alves e Em torno da traição ) acabam sendo apenas uma metonímia mais impactante de sua crítica escritural, o que se percebe desde Poesia e Desordem, passando por seu estudo de referência João Cabral : a poesia do menos.

Poetização da escrita ensaística, conexão de uma sintaxe limpa e legível com uma elaborada seleção vocabular e sem afetação, aproximação metafórica que põe em risco o conceito para dar vazão à percepção ativa, infidelidade à ilusória exatidão iluminista, são qualidades que, juntas, retiram o mérito da adivinhação : trata-se inevitavelmente de Antonio Carlos Secchin.

Mesmo aqueles que, com razão, recusam as famosas listas de superlativos, no espaço artístico, vêem-se tentados a perceber o crítico fluminense como o mais agudo leitor de poesia da atualidade. Por via de seus textos, sempre faz uma defesa da literatura, mas acentua o olhar para uma defesa da poesia. Sem deslizar para um “etnocentrismo” dos gêneros de criação, já afirmou sentir-se incomodado com a ênfase que se joga sobre a prosa, às custas de um certo ostracismo da produção poética em verso.

Escreve, dessa maneira, o ensaio Memórias Póstumas de Castro Alves, de intertextualidade flagrante, e que abre essa sua nova coletânea. Inicialmente publicado, em 1997, numa edição comemorativa dos 150 anos do poeta dos escravos, felizmente é reeditado nos Escritos, evitando se perder no fatal esquecimento de todo periódico. Uma breve biografia do autor de Tragédia no Mar é escrita na primeira pessoa, ou seja, ele narrando por si mesmo sua vida tão apaixonada e conflituosa. E começa o relato, assim como Brás Cubas, a partir de sua própria morte. Da mesma forma que se vislumbra na sua Carta ao Seixas, ficção e história aqui se realizam num complexo insolúvel. De fato, é impossível, em certos momentos, separar onde finda a voz do Castro Alves morto e onde inicia a do crítico Secchin. Por exemplo, ao falar de sua poesia retórica e exclamativa, o poeta romântico afirma nas “suas” memórias:

“[...] não era com sussurros que se incendiava o público : era com entusiasmo, dramaticidade, retórica. Eu tinha consciência de que fazia alguns poemas para voz alta, e não para leitura com um chá no aconchego das cadeiras de balanço”[2].

Não é improvável que essa consideração pertença apenas a um dos elementos envolvidos: ao escritor romântico ou ao poeta que o recriou. Como é também possível que seja um juízo comum a ambos. De todo modo, a ambigüidade está definitivamente instalada. Um outro trecho vem reforçar o que deixamos dito :

“ Tive a bênção de ser o último poeta a casar povo e poesia, e já estava bem morto à época do divórcio”.[3]

A ideologia que circula em torno da palavra bênção é certamente do poeta dos escravos. Mas o texto também permite imaginar, ainda que seja um pouco menos provável, que o crítico Secchin lamente de algum modo o divórcio referido. Essa comunhão de vozes se torna visível também se conhecermos alguns pontos biográficos do autor de Todos os Ventos. Ao descrever a dificuldade de Castro Alves para a matemática, ele acrescenta : “o consolo é que, para fazer poesia, quase nunca é preciso contar além de 12 sílabas, e esse número basta para acolher o universo inteiro”. Ora, o alívio do poeta romântico é também o do Secchin entrevistado pela Folha PROLER, onde admite as dissonâncias com as abstrações do cálculo. Sendo assim, a desnecessidade da matemática para a percepção do universo não deixa de ser uma deliciosa desforra do poeta fluminense.

Mas dizendo apenas isso, não diria o essencial. O ponto-chave para a feitura de um tal texto são as mãos que o escrevem. Quanto seria artificioso alguém compor sem arte as falas de um escritor como Castro Alves !  As Memórias levam ao extremo uma crença que perdurou na modernidade : só um poeta pode escrever tão bem sobre outro poeta. Um crítico no máximo inteligente pode convencer o seu leitor pela força dos argumentos que apresenta. O escritor, ao se aventurar na crítica, convence por outra via a meu ver mais eficaz : pela via do contágio. Assim também irá pensar André Malraux, em L’Homme Précaire et la littérature. A morte do irmão é assim narrada pelo Castro Alves ficcional :

“ Em outubro do ano anterior já dava sinais de desequilíbrio. O jeito foi mandá-lo ao Rio, a ver se melhorava. Acabou suicidando-se. Sofri, me lembrei da primeira tentativa; a segunda, desgraçadamente, dera certo. Loucura e morte se abraçaram, e comemoraram as bodas em cima do cadáver de José”[4].  

A última frase guarda uma imagem que só um olhar literário poderia conceber. A fuga da referencialidade, o vislumbre dos atros planos do cosmos - fixado no abraço entre a morte e sua causa -, a metafísica ( tanathos e a loucura ) pensada metaforicamente, sob uma visão pessimista do homem enquanto fruto de ironia e objeto de uma perversa alegria do Universo. Tudo se condensa na concisão da imagem poética construída por Secchin. Um outro momento feliz das Memórias é a descrição da morte de seu personagem :

“ Seis de julho de 1871, três e vinte da tarde. Daqui a dez minutos vou morrer. Peço à mana que me ajude a levantar da cama, quero ir à janela e ver ainda uma vez o sol. Com grande esforço apóio-me ao parapeito; a respiração ofegante, o suor, essa dor no peito. Imóvel, sinto que a luz do sol se escurece, ou talvez seja eu que esteja escurecendo dentro do dia que insiste em brilhar. Três e meia. Castro Alves não existe mais”[5].

Com exceção das rimas internas entre mana e cama, peito e parapeito, que deixaram o bom gosto um pouco à deriva, o restante da frase conserva uma força invulgar. A metáfora do pôr-do-sol não do dia, mas do homem, é admirável. E tudo isso tendo por invólucro a amplitude da palavra, o ritmo que não desliza ou extrapola as regras de eufonia.

É por momentos como esses que Antonio Carlos Secchin será sempre um convite na estante, uma tentação do olhar e, sobretudo, dos sentidos. Por vezes, sob a necessidade de enfrentar ensaístas sem a mínima sedução, será preciso fechar de algodão os nossos ouvidos quando se aproximar a palavra do autor dessas Memórias. Com sua leveza não de pluma, mas de pássaro, o autor nos faz compreender concretamente as palavras da escritora Virgínia Woolf : “ Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos”.

                                                                                 

Peron Rios

Recife, 20/06/2003.



[1] Em  texto do jornal O Globo, de 15 de junho de  2003.

[2] SECCHIN, Antonio Carlos. Escritos sobre poesia e alguma  ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 15.

[3] Idem. p. 20.

[4] Idem. p. 15.

[5] Idem, p. 20.

 

Antônio Carlos Secchin