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Regina Gouveia


 

Nave


Não tem nome minha nave
seja de um deus ou de um sábio.
Sem bússola, sem astrolábio,
computador ou radar,
cá vou eu na minha nave
mais uma vez a girar,
no meu passeio orbital.
Minha nave é espacial.
Com qualquer velocidade
e momento linear,
vai girando minha nave
com seu momento angular.
Minha nave é singular.
Minha nave não precisa
de impulsão nem gravidade,
pelo espaço ela desliza,
só precisa liberdade.
Não tem motores de explosão,
não há qualquer combustão
nem reacção nuclear.
Ela pode viajar
sem energia solar
e sem ajuda do vento.
O motor da minha nave
é só o meu pensamento.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Regina Gouveia


 

Ausência


Hoje não estou para ninguém.
Se alguém telefonar,
nem que seja algum ministro,
(como se fosse vulgar
algum ministro ligar...)
digam só que eu não existo,
ou então fui viajar,
que ando à deriva no espaço,
que estou morta de cansaço.
Sentada no meu terraço,
hoje não estou para ninguém.
Quero ver o pôr do sol,
mais logo, ao entardecer,
quero ver Vénus nascer
e a lua desabrochar.
Quero dormir ao luar,
é noite de lua cheia.
Quero ter como lençol
este céu que me rodeia,
um céu de estrelas pejado.
Quero ver a estrela polar,
Marte, Júpiter, Dragão
Cassiopeia, Leão,
quero ver estrelas cadentes,
correndo no céu estrelado
brilhando, muito luzentes.
Quero sonhar com pulsares
com galáxias, quasares,
e à luz das constelações
embriargar-me de amor.
Quero esquecer meus pesares
e todo este amargor
que por dentro me consome
ao pensar que ainda há um ror,
são oitocentos milhões,
de gente que passa fome.


 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Mantovanni Colares

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Regina Gouveia


 

Indeterminismo


O nosso Universo é quadrimensional,
a quarta dimensão é fundamental
e já não faz sentido a seta do tempo.
Daí eu não saber se este sofrimento,
esta dor aguda que me invade o peito,
afinal é causa ou será efeito.


 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Antero Barbosa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Regina Gouveia


 

Exploração


Qual exploradora, parti um dia.
Embrenhei-me na selva da vida
onde sabia andar escondida
a poesia

Encontrei-a
na luz ténue do sol ao fim do dia,
na molécula, no átomo, no quantum de energia,
nas leis de Newton, no conceito de entropia.

Encontrei-a
na reflexão da luz, na impulsão no ar,
no cheiro a maresia e nas algas do mar,
no orvalho, na geada, na chuva, no luar.

Encontrei-a
no ínfimo e no imenso que a vista não alcança,
nas rugas dum idoso, no rir de uma criança,
numa tela, num concerto, numa dança.

Encontrei-a
no voo da gaivota, na pétala da flor,
na chama que tremula e se multiplica em cor
e que irradia energia na forma de calor

Encontrei-a
Nas estrelas, nas galáxias mais distantes,
no olhar apaixonado daqueles dois amantes,
nos extintos dinossauros de dimensões gigantes.

Encontrei-a
Em medusas, corais, nos fundos oceanos,
no vento a agitar nas árvores os ramos,
em pinturas rupestres com vários milhares de anos

Encontrei-a
Na violeta escondida no canto do jardim
e no frasco que continha essência de jasmim.
Tentei então guardá-la só para mim.

Foi assim que ela se evolou
e de novo eu aqui estou
a procurá-la.


 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Bruno Miquelino

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Regina Gouveia


 

Certeza


Falavam-nos de heróis e de vilões,
eram sempre os outros, os vilões.
Contavam-nos batalhas e traições,
falavam de epopeias, de façanhas,
de guerras desiguais, mesmo assim ganhas.
A meio da lição,
já eu montava no meu alazão
e uma vezes era D. João,
outras vezes D. Sebastião
ou D. Fernando, morto em Fez,
ou então, D Filipa, a linda Inês,
o Decepado, sempre com a bandeira,
ou ainda Brites, a famosa padeira.
Cresci e desde então não mais sonhei
usar a espada, guerrear, ser realeza.
Passei a confrontar-me com a certeza
que um belo dia nada mais serei
que molécula, átomo ou ião,
mistura de cinza com poeira
provavelmente pisada no chão.


 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Aurelino Costa, Portugal

 

 

 

 

 

 

 

 

São Jerônimo, de Caravagio

 

 

 

 

 

Regina Gouveia


 

Chama


Dançava a chama voluptuosa
espalhando em redor um tom vermelho-rosa
As achas ardiam na lareira
e a criança batendo as palmas, rindo,
dizia "lindo, lindo"
apontando a fogueira.

Era uma chama voluptuosa
e ao mesmo tempo etérea,
tudo por causa do plasma,
o quarto estado da matéria.

No plasma, com seus núcleos e iões
em estranhas convulsões
electrões davam saltos quânticos.

Era a energia
que assim se emitia
em passos de dança, sensuais, românticos,

A criança que, batendo as palmas, rindo,
dizia "lindo, lindo",
adormeceu sorrindo.

E então a louca chama, pressentindo
que a criança já estava dormindo,
deu em esmorecer, foi-se extinguindo.


 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Willis Santiago Guerra

 

 

 

28/04/2006