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Rubens da Cunha

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


 

 

Crítica, ensaio e comentário:

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Fortuna crítica:


Uma notícia do poeta: 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

Rubens da Cunha


 

Bricolages para Geladeira é o primeiro livro de Clotilde Zingali. São poemas, mas prefiro não fronteirizar a diversidade dos textos que o livro carrega. São palavras tão livres que podem ser lidas como cartas, anotações esparsas, manual de instrução, bula, delírio, razão e também como poemas. São textos docemente irônicos, atuais, nunca vazios ou gratuitos, mas sempre cheios de uma certa incomodação, uma certa ranhura nas entrelinhas.

Os textos são ambientados dentro de um espaço doméstico. Percorremos fotograficamente um cotidiano feito de minúcias: saco grande na lixeira, raviolli, frestas, repolho, agulha, gavetas, não há objeto que o olhar da poeta não tenha perscrutado, não tenha trazido para o papel e dado elevações de alma. Estamos visitando um mundo real e nos entremeios desta visita, vamos conhecendo uma mulher, que ora é sem nome: “me carregam sobre alcunhas diversas”, ora é Lenimar Andrade, ora apenas uma narradora que nos fala de sensações, desapegos, intensidades amorosas. Vida num contínuo fluxo.

Assim, temos neste livro dois planos. No primeiro,  o ambiente físico que cerca essa ‘personagem’ multifacetada, por isso os poemas se fazem de fragmentos, estruturados como se fossem recados para si própria, em que o não dito se acasala com o dito e provoca no leitor uma identificação imediata com este rol de reminiscências, esta lista de objetos, de bricolages. Noutro plano, o corpo físico da personagem é exposto como caminho para conhecermos aquilo que vaga por dentro dela: as suas vontades de sair, de ser outra “quem é esta moça nua, essa outra que me espia pelo buraco da fechadura?” reverberam em momentos de solidão. “Cores, pêlos, manchas e zelos”, “tatuagem com gosto de vôo”, “Palpita em minhas vértebras uma urgência que se esparrama”, são exemplos dos gritos da mulher que vaga dentro do livro.

Poeta de concisão imperativa “ir à luta, sair na frente, pingar o i”, “morrer de sede, de seca”, Clotilde transmite em muitos poemas aquilo que Clarice Lispector denominava o “é da coisa”, a essência, o cerne viril dos significados. Temos no Bricolages para Geladeira, muito mais que enfeites para colar na geladeira e confirmar nossas verdades. Este livro traça um embate entre o mundo de sonhos, angustias, breves desejos por se realizar e a rotina concreta do dia a dia. A força do exílio presente neste espaço é a base para a poeta vasculhar, não apenas a superfície dos objetos e do corpo, mas sobretudo os ecos que este adentramento poético causa.

Diante do incômodo uma estrofe bandagem: “eu sequer ouso / dentro de mim / escrevo”. Puro disfarce, à medida que vamos nos aprofundando na visita percebemos que a poeta vai adensando e aumentando seus textos, que se aproximam da prosa, ganhando um o olhar esmiuçado e emiuçante, que contorna o vagar da ‘personagem”; “na minha hora me percorre com demora, em sépia, talvez. te reconheço por debaixo dos cascos. tenho em mim estilhaços, seduções de cerejas e espumantes, coisas antigas e ossos frágeis”.

Na parte final do livro, o ambiente quase se esfumaça. O corpo torna-se o centro do olhar. Os poemas escarafuncham este corpo: “sentimentos enterrados / debaixo da pele / entre a íris e a retina / glândulas linguais/ interfaces do ouvido / no coração desritimado”

Agora já somos invasores de uma intimidade poética, somos voyeurs de sentimentos. Não se trata de um ataque à privacidade, mas de uma visita às estranhas dessa poesia, sabiamente nomeada de bricolages para geladeira.

 

Rubens da Cunha

Direto para a página de Clotilde Zingali

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

26.5.2007