TER OU NÃO TER – BEM-VINDOS A ELSINORE
O olhar é o pensamento.
Tudo assalta tudo e eu sou a imagem de tudo.
O dia roda o dorso e mostra as queimaduras,
a luz cambaleia,
a beleza é ameaçadora.
Transmitem-se, interiores, as formas.
– Não posso escrever mais alto.
Herberto Helder, in: Do
Mundo, Assírio e Alvim, 1994
A luz alterna com as sombras – bailado antigo ao som
do rumorejar das folhas dos plátanos que bordejam um caminho que
corre para parte alguma – para o Natal corre o caminho, diz-me quem
sabe, enquanto escrevo. E o dia torna-se um dos tais dias para reler
com olhos novos Gamoneda* e Gimferrer*, e reler com os olhos de
sempre Cesariny, o que dizem que morreu, mas a quem ainda há pouco
encontrei, bem vivo e de corpo inteiro, nas suas “palavras imensas”,
nas suas “palavras acesas como barcos”, nas suas palavras “só sombra
só soluço só espasmos só amor só solidão desfeita”**; dia para
acreditar em Kafka (o que usou palavras em quem ninguém acreditou) e
nos políticos que, com o mesmo sorriso, constroem túneis sem saída e
intimam os cegos de nascença a ver uma luzinha ao fundo… lá muito ao
fundo; dia para rir do humor dos humoristas nacionais na televisão
nacional, para comer peixe congelado em restaurante à beira-mar:
para ver montras em vésperas de Natal.
Quem tem medo do absurdo? Bem-vindos a Elsinore, que
foi castelo de um jovem Hamlet assombrado por fantasmas e loucura,
atormentado pela dúvida essencial: “ser ou não ser", existência ou
inexistência - em qual delas a felicidade?
Vivemos na era da globalização: Elsinore é agora
Londres e é Nova Iorque; é Paris e é Lisboa; é a grande cidade e a
aldeia remota onde a TV diz missa aos domingos e prega violência
durante todos os dias do ano.
Morto o Príncipe da Dinamarca, há muito que, sem
perder um mícron da sua profundidade, a questão já não é a dúvida
hamlética, já não é “ser ou não ser”, mas "ter ou não ter". O homem
aquisitivo (vulgo: “consumidor”, tema sem dúvida de uma próxima
lucubração da cronista, em noite de nevoeiro) não é atormentado por
qualquer dúvida: o que quer que seja, a sua felicidade está em
“ter”, na posse, no poder de aquisição: de bens essenciais, para os
que não sabem o que é "ter"; de uma televisão plasma com ecrã plano
de grandes dimensões, para os que já têm os bens essenciais; de um
carro topo de gama para os que já têm os bens essenciais, uma
televisão plasma e um carro de cinquenta mil euros; de um iate e um
avião, para os que já têm todos os outros bens e o carro topo de
gama; do domínio do mundo, para os que têm tudo, inclusive o iate e
o avião; de uma remota ilha deserta, onde possam refugiar-se com, ou
sem, um livro e uns calções, e viver de banana e caramujos, para os
que, possuidores de tudo, sonham – os coitados! – com a liberdade do
nada-ter, que não conhecem.
(Permitam-me, p.f., que não me refira às crianças que
exigem, pelo menos, roupas de marca e telemóveis de última geração,
nem às que, a morrer de inanição, ainda perguntam: “Mãe, no céu tem
pão?”***).
Ausente de mim mesma, integro-me, com o frio e o
nevoeiro, na multidão que, ao som de um desgastado Jingle Bells,
circula nas artérias da cidade e com ela avanço e me detenho junto
de montras onde miríades de coisas inúteis aguardam um comprador –
porque vai ser Natal. A meu lado, um homem ensobretudado que não
sabe já o que desejar interessa-se por um aparelho de medir o grau
de alcoolémia. “É barato”, diz. “Para que o queres?”, pergunta,
friamente, o vison a seu lado. “Tu nem bebes!”. Difícil a
desistência. “Podia dá-lo ao Pedro…”. “Dá-lhe, mas é a porcaria que
te deu no ano passado!”
Mentalmente, exclamo: Paz aos homens de boa-vontade!
Afinal, o caminho corre para o Natal, enquanto
escrevo. Mudado está, porém, o léxico natalício. No novo Elsinore,
povoado de fantasmas da pobreza e da ambição, um Elsinore em que a
questão é “ter ou não ter”, o Natal tornou-se a época por excelência
para a satisfação da gula, da sofreguidão da posse, reprimidas ao
longo do ano, a época em que a felicidade e a generosidade são
obrigações nem sempre fáceis de cumprir. (Refiro-me, é claro, ao
Natal do comum dos mortais portugueses, e não ao dos que, em
qualquer época do ano, fazem as suas compras em Londres, ou Nova
Iorque, sem preocupações com o cartão de crédito).
E porque “não posso escrever mais alto”, Feliz Natal,
Feliz Ano Novo - para todos, sem excepção!
* Poetas espanhóis, recentemente premiados.
** Do poema de Cesariny: “You are welcome to
Elsinore”
*** Do poema "No Céu tem Prozac”, do poeta brasileiro
Soares Feitosa.
Lisboa, natal de 2006