Considerações sobre mim e todo o
respeito
Eu preferiria que não lessem estas
palavras. Elas vêm do fundo do meu mais vazio escuro. Escrevo-as
porque não há outro recurso, não escrevê-las seria morrer
definitivamente da morte que me acomete um tanto mais a cada
martelar de tecla nesta tábua. Não escrever o que me mata seria
desistir de viver, porque não há remédio: respirar é uma agressão
necessária, queimar umas células pra que outras sobrevivam. Escrevo
porque preciso me livrar desse gás venenoso oculto no oco dos meus
dedos. Escrevo porque preciso de uma morte natural, não escrever
seria um suicídio. Queria não ter que responder por estas palavras.
Peço que me isentem da responsabilidade sobre meu sopro. Se me lêem,
façam por vontade e decisão. Não posso suportar hoje o peso de um
leitor embalado, contagiado, curioso com o que vem adiante. Os
curiosos parem por aqui. Escrevo porque preciso pôr pra fora, esta
folha é apenas um depósito provisório. Quem não se proponha a limpar
os dejetos de desconhecidos, pare.
Estou para completar outra idade, e
quanto mais idades tenho tido, menos enxergo o que se concebe por
evolução. Eu não sou um insatisfeito, sou apenas indefinido no
tempo. Lembro que quando completei quinze anos, os mais velhos me
alertaram para aproveitar bem, depois dos quinze, tudo passaria
voando. Deve ser verdade, porque meu décimo quinto “até parece que
foi ontem”. E isso é tão verdade porque quando me lembro do décimo
quarto, não parece que foi anteontem. Gerações e gerações decorreram
entre um e outro. Outras vidas me passaram desde então. À medida que
o número em cima do bolo aumenta, à medida que não vou tendo mais
bolos pra pôr velas em cima, a vida vai ficando mais grave. Depois
dos quinze, amei, odiei, experimentei, sofri, ri, chorei, fui e
estou sendo feliz e infeliz. Como diria Caeiro: estou sendo
natural... E agora, no lugar de sentir-me mais maduro, sinto-me cada
vez mais vulnerável.
De ontem pra hoje, não posso negar que
o fato mais relevante tenha sido a cegueira. Já me perguntaram com
solenidade: qual a coisa mais importante que lhe aconteceu até hoje,
o dia que você jamais vai esquecer? Respondi sem o lamento esperado:
a bela noite em que pisquei os olhos e a luz não voltou do instante
do piscar. E isso não é necessidade de analogia, poeticidade
gratuita. Foi simples assim, literalmente, como tudo precisava ser.
Mas não é por enxergar menos que me sinto vulnerável. As pessoas
costumam reduzir tudo ao “isso ou aquilo”, e se esquecem que há
níveis pras coisas. Quando me proclamo cego, não é por algum tipo
sádico de auto-piedade ou necessidade de chamar atenção. É que
também há níveis de cegueira, não é apenas enxergar ou não enxergar.
Uma colega minha, recentemente, espantou-se com como tinha se
habituado a ver pouco, depois que descobriu precisar de óculos para
corrigir seu 1 grau de miopia. Expressou o assombro que teve quando
pôs as lentes à sua frente. De modo que todo mundo é mais ou menos
cego, irreversivelmente. Eu me apropriei da alcunha apenas porque
estou num nível mais profundo (e não mais avançado) de escuridão. O
hábito pode não fazer o monge, mas pruma festa à fantasia, calha
bastante.
Quando os óculos ainda me valiam de
alguma coisa, eu usava lentes para corrigir treze graus de miopia.
Aposto que se alguém veio lendo até aqui, vai tomar minhas dores e
rir do problema da garota também. Não faça isso. Eu me odiei quando
a colega ali de cima me contou a historia e eu dei-lhe um sorrisinho
condescendente, como se o problema dela fosse pequeno demais pra ser
levado a sério. De novo a história do “isso ou aquilo”. Eu já ouvi
falarem muito por aí, e concordo sem ressalvas: o pior problema do
mundo é o meu problema. Também já ouvi que a cruz não nos seria dada
se não a conseguíssemos carregar. Como não sou tão cristão quanto
conviria, suponho mesmo que a melhor explicação seja a famosa teoria
da relatividade.
Por sinal, Einstein foi o único Físico
que nos apresentou algo realmente aproveitável para a vida. Newton,
por exemplo, perdeu tanto tempo pensando na gravidade que aposto
como esqueceu a maçã lá no chão, ela apodreceu e cá estamos, presos
por leis “naturais” que o homem inventou. Pra provar que a gravidade
existia, bastava mostrar o galo na cabeça depois do impacto e ponto.
Então era só aproveitar o doce da fruta que molestou o corpo, há que
se dar um proveito pra tudo. Mas não nos importamos muito em dar
proveitos, importamo-nos mais em dar nomes pra tudo, até para a
queda duma maçã, e aí esquecemos que a maçã caída podia ser
apreciada sem mesmo a chamarmos de maçã. Aliás, elas caem sem serem
chamadas.
Mas a tal da relatividade é mesmo
genial. Ora, se algum estudioso das ciências exatas me estiver lendo
(o que eu acharia, ao mesmo tempo, lisonjeiro e absurdo), vai achar
ridículo tudo o que eu acabei de dizer. Provavelmente alguém que
estude as humanidades me achará, no mínimo, interessante. Os mais
ávidos podem me considerar muito esperto; os mais comedidos, apenas
leviano. Mas eu não preciso ser interessante nem inteligente, eu
preciso existir e ponto. Cair e permanecer no silêncio da minha
queda. Sem nenhuma gravidade. Toda dor é necessária. Por que achar
que não? Estou mais vulnerável porque, a cada dia que passa, teimo
mais em pensar na gravidade das minhas dores. Agora mesmo, estou
arrumando justificativas e mais justificativas pro fato de ter
perdido alguma visão. Agora mesmo, estou lamentando e lamentando o
fato de não saber o que fazer com minha vulnerabilidade.
Ainda há pouco afirmei ter amado de
ontem pra hoje. E isso é definitivamente a única verdade
incontestável que disse até aqui. Veja como dar nomes às coisas não
adianta, como nenhuma teoria é genial o suficiente: o amor não é
relativo. E tampouco é questão de “isso ou aquilo”, de ou ama ou não
ama. Ama-se sempre, irremediavelmente. Mas ainda há jeitos
diferentes de amar, e eu tenho amado de um jeito diferente a cada
dia. Se eu parar pra pensar direito, vou perceber que estou mesmo é
amando com mais urgência. É a urgência de amar que me sufoca. Como
se para dar um sentido àquilo que faço, eu precise me sentir fértil
por amar alguma coisa. Como se não me sentir amado anulasse as
minhas considerações sobre todo o resto. E tem estado tão urgente o
meu amor, que qualquer coisa serve. A última vítima foi um Girassol,
quem sabe o que amarei depois? A vantagem de amar uma flor é poder
pensar que o perfume dela é a correspondência. Por isso não
costumamos dizer que amamos qualquer arbusto. A urgência de amar
pressupõe uma súplica breve, que quando não é atendida, revolta.
Amar é estar predisposto a ser amado em retorno, e, mesmo assim, nem
sempre se está realmente predisposto, assim como nem sempre o
retorno se concretiza. E, não se engane, nada disso impede ninguém,
no mundo, de amar. Mas eu ainda não sei lidar com a
incorrespondência, porque julgo nunca ter sido correspondido. E é
triste precisar admitir que talvez eu não conseguisse tampouco lidar
com a correspondência, no caso dela chegar um dia. Um dia ela chega,
eu sei, talvez até já tenha chegado. É só que eu perdi muita visão,
e pareço não me sensibilizar com determinadas sutilezas. O amor
correspondido é uma sutileza, requer olhos de águia. E eu ando
tateando o amor, botando perto do nariz pra sentir se tem perfume de
Girassol, apalpando, chacoalhando, e quando dou por mim, meu amor
ficou todo deformado e torto. O amor é frágil demais, não suporta a
falta de retinas, a ausência da contemplação à distância. O meu
amor. O meu.
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