Vera Vouga
CARTA-APRESENTAÇÃO
Querido Pedro:
Pediu-me, de Paris, por um
e-mail que marcava um novo encontro após separação de voz, de
escrita e de lugar, que fizesse uma apresentação deste seu livro.
Respondi – o que sempre acreditei e ainda acredito – que um bom
livro não precisa de prefácio, que o tempo (cronicamente!) me
faltava e não sabia se deveria ser eu a apresentá-lo.
O livro veio, por e-mail,
com sua enormidade de apóstrofe ao divino, com sua dimensão
desmesurada (1) de livro muito extenso, sua dedicatória às meninas
dos blogs por quem será, imagino, devorado, na sequência da
descoberta da poesia e do amor que uma feliz escolha escolar lhes
ofereceu. E trocámos mais mails, sinceros e amigos, e assim
crescia em mim a vontade de agradecer tão grande confiança e aceitar
o que de planos, a meu ver superiores, era proposto.
Ainda não lhe disse isto: foi nas
meninas dos blogs que pensei. Propus-lhe até publicitar
alguns excertos e esperar pelas leituras delas. Deveriam ser
múltiplas, espontâneas e limpas, claras, curtas, leves e eficazes. O
Pedro achou que não. O seu livro era um todo e como tal o queria
editar. Pensei ainda nas meninas. O que achariam desta desesperada
interpelação na “última praia”, suspensa neste “plano inclinado”,
deixando-as “para sempre suspensas numa espera”. Que partes as
tocariam mais? Que excertos iriam ser citados, ao infinito
potenciados no espaço imediato e volátil deste voo recente? Que
ondas de pensamento geraria o seu livro?
Foi nas meninas dos blogs
e no mundo, mais do que no amigo, que pensei. E aqui vai o que, no
meio de tantas outras inadiáveis coisas e muito sofrimento pelo
atraso da minha escrita (sofrimento que totalmente lhe reencaminhei,
por ser palavra requerida e duramente adiada, como também real
atraso para o livro) o que queria dizer sobre Confronto – Um
diálogo com Deus.
“Em suma: prosseguimos”. É com
este fabuloso início in media res que Pedro Lyra começa este
longo e poderoso poema, espécie de epopeia em verso livre e branco
cujo herói é, aos olhos contemporâneos, mais elevado do que algum
outro, como em breve veremos. E se é verdade que o começo in
media res é coordenada da epopeia canónica, esta dicção enxuta e
seca é surpreendentemente nova e eficaz.
Mas quem diz que prossegue? E
quem prossegue o quê? Precede o início uma belíssima página de
epígrafes sobre Deus, cujo meridiano de convergência é o da
inquirição e paradoxo. Delas prosseguimos. Precede ainda o início
uma pequena nota explicativa sobre o que de si próprio, em outros
textos, o autor aqui aproveita. Delas igualmente prosseguimos; mas,
indirectamente, com mais ampla focagem, de toda a obra do autor,
concretamente, também, de Desafio e de Contágio. Além
desses fragmentos e das epígrafes citadas, é de todas estas obras e
pensadores, nomeados ou só implícitos que partimos. E é já claro que
o caminho é o da humanidade em geral, uma humanidade sofrente e
longamente interpelante, sujeito, objecto e enunciador da epopeia
das epopeias, que engloba todas as outras, só parcelares e já
escritas, a epopeia da humanidade.
“Em suma: prosseguimos”. E somos
nós que, por alargamento, também aqui estamos, que “meditamos,
meditamos, meditamos” “E seguimos sozinhos”. “Dispomos da Lei, da
Ideia e do Dogma”, da prova, do paradoxo e da contradicção. Como
todos os séculos que deste modo interpelaram Deus, deste modo
brilhante e nobremente irado, continuaremos a repetir a incessante
pergunta: “Quem és tu?” “E nós?”. “E seguimos sozinhos” pois só
acompanhados pelas brilhantes mentes que antes de nós o perguntaram.
E aqui Pedro Lyra, tanto quanto nos cerca de um dizer abrangente,
igualmente nos solta para uma resposta outra, que não a sua nem a
predominante nos séculos que foram. Ele próprio o escreve: “Não: por
essa via/ não acendemos a luz”. Fitando “o céu com olhos terrenos”,
ele escreveu apenas, “um pedido/ um incrédulo pedido de clemência”.
Parece altura de falar ao Pedro,
bem como aos descendentes da brilhante argumentação humana com que
os poetas, os filósofos e os teólogos de linhagem argumentativa,
desesperados pela ausência da resposta divina, interpelaram Deus.
Deus não responde ou não podemos captar qualquer resposta alta se a
nossa vibração for escura e sombria, como necessariamente é a
relativa a todos os estados de tristeza, de revolta e de zanga. (E o
da argumentação e discussão teórica, no remoto limite é, como
permitem ver, no plano materializado do visível, os dados da
prosódia e da fonética articulatória, quase sobreponível a um certo
tipo de cólera). Esses estados afastam-nos dos planos superiores,
criando fechamento e opacidade onde deveríamos criar sintonia. Por
isso, por clarabóias de uma luz justíssima, houve poetas que falaram
da “rosa impura da tristeza” (Albano Martins) ou da “dor, essa falta
de harmonia” (Camilo Pessanha). Pois só a vibração de júbilo e
gratidão nos aproxima de Deus e nos permite que intuição e razão de
novo se conjuguem, após a era do desenvolvimento separado, da lógica
disjuntiva e do inevitável desespero humanista.
Afirma Schiller: “Outrora,
naquele belo despertar das energias intelectuais, os sentidos e o
espírito não possuíam ainda um domínio estritamente separado; porque
nenhuma cisão os tinha ainda tentado a fazer partilhas hostis e a
definir a sua demarcação (…). Por mais que a razão se elevasse, ela
transportava a matéria amorosamente consigo, e por mais fina e aguda
que fosse a forma que usava para separar, ela nunca mutilava” (2).
“Foi a própria cultura que abriu esta ferida na moderna humanidade
(…). O entendimento intuitivo e especulativo repartiram-se então com
hostilidade pelos seus campos distintos, tendo principiado a vigiar
as suas fronteiras com desconfiança e inveja” (3). “A cultura, longe
de libertar-nos, apenas desenvolve (…) uma nova carência” (4). E
recomenda: “Ousa ser sábio” (5). Libertando-te dos que “preferem o
brilho crepuscular de conceitos sombrios (…) aos raios luminosos da
verdade (…). Teriam de ser já sábios para amar a sabedoria: tal
verdade já foi sentida por aquele que deu o nome à filosofia” (6).
Por isso o grande obstáculo à vibração do amor divino é decerto a
nossa falta de amor. Como chegar, então, a esse primeiro umbral? Ou
como reavê-lo, depois de ser perdido? Não há resposta fácil, embora
certos dados se apresentem como reconciliadores com o inexplicável:
mal e miséria de uma aparente sem razão como passagens do repetido
trânsito da reencarnação, amplo processo de experiência e
crescimento. Será então talvez mais fácil ser mais dócil, como os
lírios do campo. Virados para o alto, recebem facilmente as
vibrações do alto. Enquanto muitos homens, de há muito congregados
no Panteão da cultura e do conhecimento, se mostram incapazes de
harmonia. Assim os vê Jorge Luís Borges, considerando Pascal “uma
das figuras mais patéticas da história da Europa” (7). E continua:
“Não é um místico. Pertence àquela classe de cristãos, denunciada
por Swedenborg, que julgam ser o céu um galardão e o inferno um
castigo e que, acostumados à melancólica meditação, não sabem falar
com os anjos. Importa-lhes menos Deus do que a refutação de quem o
nega” (8).
Não é este o caso de Pedro Lyra,
poeta e claramente teólogo no profundo sentido que Borges lhe
atribui: “porque todo o homem culto é um teólogo, e para o ser não é
indispensável a fé” (9). E Pedro Lyra é-o, na sua infatigável e
ardente travessia da memória da humanidade, das ideologias, das
linguagens e dos discursos, não desdenhando nada do que é humano e
nobre, mas não temendo as novas utopias que foram carne e sangue de
quem ousou atravessar as ardentes estepes do século XX. O que ainda
(e já tão pouco, creio) o detém, à entrada da cidade, é a
resistência a não resistir, abrindo-se para a mesmo que pálida,
ainda cheia de dúvida, promessa mais que aurora, vibração da paz. A
luz, que sempre em formas várias, variamente buscou, assim a
formatava em Decisão: “Uma arma./ Decidi/ construir uma arma
(…) E construí: um revólver de luz”. Entretanto pensou, viveu e foi
escrevendo. Sobre o homem das neves e sobre o amor. E globalmente
transformava a circunstância e o concreto em pródiga e abrangente
declinação ontológica. Veja-se, como exemplo, a transformação,
quantitativa, é certo, mas qualitativa até à evidência, dos sonetos
de amor de Musa lusa para Desafio – Uma poética do amor.
Repare-se na dimensão teológica
(ainda que ortodoxamente herética) do “génesis” do livro, seu
início:
SONETO DE
CO0NSTATAÇÃO – I
Do barro
pelo hálito de
um deus,
num salto
pela mão da
natureza,
o universo
nasceu:
nasceu o homem.
Vinda do nada
para os
infinitos,
vinda de uns
antropóides
para o nada,
a espécie
– esta parábola
no tempo.
Ou seja terra
ou ar
ou fogo
ou água
foi a
necessidade que a moveu
foi a
satisfação que a sustentou:
sob uma lua
virgem
– entre névoas
–
sobre um leito
de folhas
– entre nuvens
–
o primeiro
casal nos garantiu.
Por nós
nos afirmamos
por nós mesmos
pois foi o sexo
– o Amor –
quem nos gerou.
O
livro abre-se epifanicamente para a deflagração e contemplação do
transcendente no seu apogeu, ainda pessoal (o amor), mas que promete
ou aproxima ou vagamente prenuncia o estado de contemplação e união
absolutos a que menos pessoas têm acesso e costuma ser dito místico.
Este estádio de contemplação, ainda que não se alçando a alturas tão
únicas, Schiller caracteriza-o como essencial ao ser humano. Cito:
“Enquanto o ser humano, no seu primeiro estado físico, apenas
apreende de modo passivo o mundo sensível, enquanto apenas sente,
ele forma ainda um todo único com o mesmo (…). Só quando o coloca
fora de si próprio ou o contempla, é que a sua personalidade
se destaca dele e lhe surge um mundo, uma vez que ele cessou de
perfazer um todo com o mesmo. A contemplação (…) é a primeira
relação do ser humano com o universo que o rodeia. Se os apetites se
apoderam directamente do seu objecto, a contemplação afasta para
longe o seu, fazendo dele a sua propriedade verdadeira e inalienável
precisamente ao salvá-lo da paixão. A necessidade da natureza, que
no estado de mera sensação o dominava com poder indiviso, abandona-o
na reflexão; nos sentidos sucede uma paz momentânea; o próprio
tempo, esse elemento eternamente mutável, permanece quedo, enquanto
os raios dispersos da consciência se juntam e uma imagem do
infinito, a forma, se reflecte no solo efémero. Logo que se
faz luz no ser humano também deixa de ser noite fora dele, logo que
tudo nele acalma também se apazigua a tempestade no universo e as
forças litigiosas da natureza encontram a paz entre limites
estáveis. Daí que não seja de surpreender que os textos poéticos
mais antigos falem deste grande evento no interior do ser humano
como sendo uma revolução no mundo exterior, figurando o pensamento
que vence as leis temporais sob a imagem de Zeus que põe fim ao
reino de Saturno” (10). Daí, ainda, que no encontro final da
trapezista com o anjo encarnado em As Asas do Desejo (11) de
Wim Wenders, Peter Handke, autor do guião, lhe endosse um
longuíssimo monólogo em que a protagonista, a um palmo do abraço
mais adiado do cinema, se diz finalmente um ser solitário,
solidário, completo (12).
Voltemos a Pedro Lyra e à paz que
verteu sobre o mundo em Desafio – Uma poética do amor e
Contágio – Poesia do desejo. O amor redime, transforma,
rapidamente eclipsa uma violenta apóstrofe, “Astros malditos”, para
fazer-se “limbo”, “anunciação”, noite genesíaca, manhã. “Era uma
noite simplesmente noite,/ noite no tempo, noturna/ como qualquer
noite no tempo”. (“Parece que é o universo que desponta/ do
primitivo caos que nos gerou”). “E a aurora nos encontrou
reinventados”, “para colher a manhã em nossas mãos”. Escreve ainda:
“Trago-te uma flor,/ para a celebração da descoberta. // Fui
colhê-la/ num jardim anterior ao paraíso”. Perante este esplendor,
ainda que parcial, o fragmento torna-se todo, por sinédoque,
submerge o que ainda questiona e de novo cavalga o dorso da metáfora
ditosamente modulada e especular: “…quando raiar em tuas mãos um sol
de quinta-feira”, “quando raiar de tuas mãos um sol de
quinta-feira”. É a radical experiência amorosa, até este momento, a
grande revelação para o poeta. No rosto único, amou “toda a
espécie”, fundindo o eu e o mundo por irradiação deste radical
júbilo fundente: “Tu estás clara e estás em toda parte:/ na cor no
ar na luz – e eu te contacto/ na tua mais compacta claridade”. “Quem
nos tocar, também será feliz”.
Ora não é isto que acontece, ou
só muito de raspão acontece, em Confronto. Não porque haja
propriamente insulto ou desrespeito mas porque, ainda preso neste
terreno de experiência e escrita, à tradição argumentativa, o autor
acumula súplicas sem solução e sem saída, dolorosamente aprisionado
na dignidade veemente de um silêncio interpelante que se confirma
“incrédulo pedido de clemência”. Apelos sucessivos e veementes se
dirigem, desta “última praia” ao Pai distante, ausente: “Mas volta”,
“Volta”, “Desce das nuvens”, “Quem te retém?”, “Então, por que não
voltas?”, “Volta”, “Já é hora, vem!” “Por isso, volta”, “Então
volta, mas agora”, “Pai não faz isto com filho, aqui embaixo”. E por
três vezes o sujeito da súplica abre o espaço para um fugaz clarão
de luz:
(De repente,
pareceu-me que um sol despontava à meia noite,
redespertando o
mundo);
*
(Pareceu-me
descer uma líquida luz sobre os campos e as almas,
refecundando as
terras e a esperança);
*
(Nesse
instante, pareceu-me despontar numa penumbra uma lua verde,
reconvidando os
viventes).
E a luz
ainda não se faz, ainda muito presa à retórica da imagem de linha
decadentista/simbolista, visando ineditismo e estranhamento. Pelo
contrário, a luz desponta onde houver paz, o outro nome, mais breve,
da harmonia. E sempre se anuncia e se nos dá, como afago escondido e
discreto, quando o poeta permite que atravesse este longo poema em
duro verso livre, um qualquer ritmo arquetípico, decassilabo ou
alexandrino, quase sempre, instaurando a modulação da lei, a magia
da reminiscência e, claro, a abolição das fronteiras do tempo e do
espaço: “Só em raros momentos a redime” (“E o mais vivo de todos foi
o Amor – o único abrigo/ em que tentaste adoçar a passagem neste
exílio”). E “só aqui a seiva germinou”.
Mas germinará mais. Basta que,
neste tempo de mudança cósmica, de mais velocidade e mais clareza,
Pedro Lyra por momentos se esqueça da tradição lógico-discursiva e
se deixe entrever, ainda que dubitada, a harmonia do cosmos. E o que
aqui é sonho, enunciado no futuro, começará a sê-lo, em permanência,
nesse instante detonador de um outro plano, “com toda a claridade
das certezas:/ Eu salvarei a tua Casa e o teu Amor”. Será também
preciso abandonar o espartilho das interpretações canónicas
prudentes e abrir-se para a profunda e sagrada sintonia com Deus,
seja através da tão tocante via das criaturas (13), seja do radical
despojamento, ponto fulcral da via mística mais pura em que Deus
enche em absoluto o ser em que universalmente se duplica (14). E a
parusia é essa presença progressiva, pujante e plena em nós,
multiplicados Verbos e Seus filhos. E a partir daqui, não há
identidade ou diferença, tempo e não tempo, carne e espírito em
risco de litígio. Do Nada até ao Ser é tudo aqui, agora,
eternamente. Os planos permanentemente se cruzam e o milagre não é
uma excepção à lei mas uma materialização que acontece sempre que a
ela nos abrimos e a sabemos conhecer.
Dizia Pedro Lyra, anos atrás, em
“Anunciação”: “Aqui, eu”. Nesse livro anterior (Contágio),
mais teológico do que este que agora se apresenta porque mais
luminoso, o autor enunciava o pronome que, ainda segundo Borges, só
poderia ser expressão da condição divina e, em última análise,
proferido por Deus. “Segundo a teologia cristã, Sou o que Sou
manifesta o facto de só Deus existir realmente ou (…) que a palavra
eu só por Deus pode ser pronunciada. (…) Sou o que Sou
é uma afirmação ontológica” (15). É este o horizonte: o seu, o
nosso.
Sabe? Quando passei do documento
anexo este seu livro a print, dada a desmesura do texto, pedi
à Gráfica da minha Faculdade que me fizesse essa impressão de
suporte. Eles aproveitaram o verso de folhas já usadas. Ficou assim
impresso: o seu livro é o que é mas é também uma certeza e uma
promessa. Todos os versos contêm um outro livro, visível, muito
belo, mas secreto, grafado a quadradinhos que vemos mas não sabemos
ler ainda. E que já está escrito. Lembraria Pessoa: esse livro é que
é lindo. Ele modula certamente e aflora o Livro de que falam os
Livros. O que na Bíblia se diz Livro da Vida e no Alcorão
se diz Livro evidente. Que habita junto de Deus, como essência.
“Deus apaga e confirma o que quer” (16).
É isto, Pedro Lyra, o que, para
não me alongar em excesso, me ocorre dizer sobre o seu
livro-em-curso. Vou prender a respiração até que diga se terei
alguma razão. Peço-lhe, por isso, que não demore muito a responder
ao abraço muito grato da
Vera
NOTAS
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