Alaor
Barbosa é um recessivo da grande geração regionalista dos anos de 1930
(Contos e novelas reunidos. Brasília: Projecto Editorial/R. Vinas
Livraria, 2006). Houvesse escrito àquela altura, estaria hoje
solidamente instalado na galeria da fama, ao lado de Graciliano Ramos e
Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, muito acima
dos figurantes secundário – Alina Paim, Dalcídio Jurandir, Tito Batini e
outros Clóvis Amorim – todos glorificados pelo grupo esquerdista que
então dominava a vida literária. Cedendo ao prestígio das opiniões
correntes, Otto Maria Carpeaux, com a determinação de quem se atira na
àgua, elogiou desmedidamente Floriano Gonçalves, soldado raso, política
e intelectualmente, do velho PCB: “Lixo, o romance do próprio Floriano
Gonçalves baseia-se em conceitos de uma largura que lembra a 'estética
como ciência geral das expressões' de Benedetto Croce” (sic). Ou ainda:
“Desde o admirável ensaio de Augusto meyer sobre Machado de Assis não
foi realizado, parece-me , estudo tão completo de um romancista
brasileiro como este Graciliano Ramos e o romance. Estudo de
interpretação, de Floriano Gonçalves. (...) O método do ensaísta,
baseando-se na verificação de uma contradição intrínseca, será portanto
o método dialético. (...) Na verdade, é um estudo sobre a dialética da
evolução do gênero 'romance' na literatura brasileira, evolução
dialética que se repete dentro da carreira literária de Graciliano
Ramos”.
Claro,
Floriano Gonçalves era um comunista de estrita obediência e dialética
fascinante palavra de código. Contudo, o crítico que havia em Carpeaux
não tardou em retomar os seus direitos: “O leitor devotado de Graciliano
Ramos só pode aplaudir os resultados dos ensaio de Floriano Gonçalves,
devido a um método rigoroso admiravelmente manejado. Apenas lamentaria
que, dentro daquele esquema dialético (sic), a obra-prima de psicologia
novelística de Graciliano não foi devidamente apreciada. Angústia teve
de contentar-se com o lugar algo secundário de 'mais uma negação',
depois da antítese já representada por São Bernardo. É sinal evidente de
que a psicologia – enquanto problema estético – não cabia por completo
no esquema da dialética”.
Estreando em
1971 com os Contos de campo e noite, Alaor Barbosa acrescentava à
literatura de 1930, com essa coletânea e várias outras, uma espécie em
que tinha sido notavelmente pobre e, ainda com atraso de duas ou três
décadas, enriqueceu-se com romances que, em termos de longa duração,
podem ser postos ao lado dos melhores: Caminhos de Rafael (1995), A
morte de Cornélio Tabajara (1998) e Memórias do nego-dado Bertolino
d´Abadia (1999), livros que o tornam contemporâneo dos antepassados, ou,
se quisermos, dos que compõem o capítulo histórico do regionalismo. Pelo
imperativo das idéias claras e distintas, é preciso resistir aos
entusiasmos puramente subjetivos como os da “mensagem do editor ” na
apresentação do volume: “No panorama da literatura brasileira, Alaor
Barbosa se projeta e salienta como um dos três pontos culminantes da
história do gênero conto: os dosi outros são Machado de Assis e João
Guimarães Rosa”, marcas referências que, no caso, nada significam.
O que não
impede, bem entendido, que sejam excelentes os seus contos, mais
pitorescos, como é próprio do regionalismo, que propriamente ligados ao
homem profundo como nos romances. Há aí, desde logo, uma impropriedade
regularmente cometida pelo autor e seus editores ao apresentar como
contos, a propósito dos Caminhos de Rafael, o que na realidade é um
romance, e da melhor qualidade. É obra cuja publicação passou
despercebida aos nossos diretores de opinião, escrevi àquela altura,
seja porque, publicada em Goiânia, não chegou de fato ao seu
conhecimento, seja pela desatenção habitual dos grandes centros com
relação ao que se faz nas províncias. Como se explica que, tudo bem
considerado, Alaor Barbosa não haja recebido o largo reconhecimento que
merece ? Ele pertence à família dos realistas provinciais (não
provincianos) – Thomas Hardy e Eça de Queiroz, Dostoievski e Giovanni
Verga: refiro-me à natureza, não à qualidade e estatura das respectivas
obras, sem qualquer restrição implícita ao autor brasileiro.
Assim, por
exemplo, Bertolino, no romance do mesmo nome: “Ele existiu. Nascido,
criado e vivido em Imbaúbas, pequena cidade situada na zona sul do
estado de Goiás, fez-se muito conhecido dos seus conterrâneos. Ainda
hoje muita gente lá se lembra daquele homem enorme, possuidor de várias
singularidades e peculiaridades individuais extremamente marcantes e
notáveis, e que, por caisa disso, viveu uma vida bem diferente de quase
todos os demais filhos de Imbaúbas”. Essa a matéria do romance: segundo
a fórmula consagrada da picaresca, Bertolino é praticamente um
enjeitado, criado de favor por parentes e amigos enquanto se encaminhava
para uma existência em que os episódios se sucedem por aluvião, sem
qualquer ligação orgânica entre eles. Era um “nego-dado”, costume de
outras eras, o que já é uma circunstância roma nesca, vida de aventuras,
espertezas e golpes variados, sem excluir o crime, na melhor tradição do
gênero. É, ao mesmo tempo, o romance de nossa vida política numa pequena
cidade do interior, tema de atualidade permanente e lições jamais
aprendidas.
No que se
refere à observação realista, eis um instantâneo do Brasil e de sua
gente: “Ah! a estrada de Imbaúbas, Teófilo Ferreira Noronha agora sabe
que mais hora menos hora estará em casa: ver a Celina, o Balduíno,
aquele terreiro, aquele matinho, e logo adiante, aquele cerrado. Até da
bica padecia saudade. Depois de tanto tempo fora, sofrendo naquela
Ipameri dura de roer. Tolerando vida de soldado, a metidez do capitão
Alpino, a severidade misturada de desinteresse do Sargento Silveira.
(...) Teófilo avista uma chacrinha na beira da estrada, a casa tafulhada
lá no fundo, meio escondida atrás de uma moita de bananeiras e uma
gameleira muito copada. Nem parece ter gente lá. Jinelas fechadas. A
porta tembém. Muito chué. Será aquela casa a da tal Josefina mulher da
vida que o Aniceto falou que morava logo depois da saída da cidade? Pode
ser. O Aniceto neste momento decerto está na casa da Lica. Bobão. Mania
de procirar rapariga (...)”.
Essa a arte
narrativa de Alaor Barbosa, arte de um momento típico que desapareceu no
buraco negro da história. É, certamente, um escritor de talento que a
crítica brasileira contemporânea não pode ignorar.