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Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

Wilson Martins

Jornal do Brasil

15.4.2006


 

Um recessivo

 


Alaor Barbosa é um recessivo da grande geração regionalista dos anos de 1930 (Contos e novelas reunidos. Brasília: Projecto Editorial/R. Vinas Livraria, 2006). Houvesse escrito àquela altura, estaria hoje solidamente instalado na galeria da fama, ao lado de Graciliano Ramos e Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, muito acima dos figurantes secundário – Alina Paim, Dalcídio Jurandir, Tito Batini e outros Clóvis Amorim – todos glorificados pelo grupo esquerdista que então dominava a vida literária. Cedendo ao prestígio das opiniões correntes, Otto Maria Carpeaux, com a determinação de quem se atira na àgua, elogiou desmedidamente Floriano Gonçalves, soldado raso, política e intelectualmente, do velho PCB: “Lixo, o romance do próprio Floriano Gonçalves baseia-se em conceitos de uma largura que lembra a 'estética como ciência geral das expressões' de Benedetto Croce” (sic). Ou ainda: “Desde o admirável ensaio de Augusto meyer sobre Machado de Assis não foi realizado, parece-me , estudo tão completo de um romancista brasileiro como este Graciliano Ramos e o romance. Estudo de interpretação, de Floriano Gonçalves. (...) O método do ensaísta, baseando-se na verificação de uma contradição intrínseca, será portanto o método dialético. (...) Na verdade, é um estudo sobre a dialética da evolução do gênero 'romance' na literatura brasileira, evolução dialética que se repete dentro da carreira literária de Graciliano Ramos”.
 

Claro, Floriano Gonçalves era um comunista de estrita obediência e dialética fascinante palavra de código. Contudo, o crítico que havia em Carpeaux não tardou em retomar os seus direitos: “O leitor devotado de Graciliano Ramos só pode aplaudir os resultados dos ensaio de Floriano Gonçalves, devido a um método rigoroso admiravelmente manejado. Apenas lamentaria que, dentro daquele esquema dialético (sic), a obra-prima de psicologia novelística de Graciliano não foi devidamente apreciada. Angústia teve de contentar-se com o lugar algo secundário de 'mais uma negação', depois da antítese já representada por São Bernardo. É sinal evidente de que a psicologia – enquanto problema estético – não cabia por completo no esquema da dialética”.
 

Estreando em 1971 com os Contos de campo e noite, Alaor Barbosa acrescentava à literatura de 1930, com essa coletânea e várias outras, uma espécie em que tinha sido notavelmente pobre e, ainda com atraso de duas ou três décadas, enriqueceu-se com romances que, em termos de longa duração, podem ser postos ao lado dos melhores: Caminhos de Rafael (1995), A morte de Cornélio Tabajara (1998) e Memórias do nego-dado Bertolino d´Abadia (1999), livros que o tornam contemporâneo dos antepassados, ou, se quisermos, dos que compõem o capítulo histórico do regionalismo. Pelo imperativo das idéias claras e distintas, é preciso resistir aos entusiasmos puramente subjetivos como os da “mensagem do editor ” na apresentação do volume: “No panorama da literatura brasileira, Alaor Barbosa se projeta e salienta como um dos três pontos culminantes da história do gênero conto: os dosi outros são Machado de Assis e João Guimarães Rosa”, marcas referências que, no caso, nada significam.
 

O que não impede, bem entendido, que sejam excelentes os seus contos, mais pitorescos, como é próprio do regionalismo, que propriamente ligados ao homem profundo como nos romances. Há aí, desde logo, uma impropriedade regularmente cometida pelo autor e seus editores ao apresentar como contos, a propósito dos Caminhos de Rafael, o que na realidade é um romance, e da melhor qualidade. É obra cuja publicação passou despercebida aos nossos diretores de opinião, escrevi àquela altura, seja porque, publicada em Goiânia, não chegou de fato ao seu conhecimento, seja pela desatenção habitual dos grandes centros com relação ao que se faz nas províncias. Como se explica que, tudo bem considerado, Alaor Barbosa não haja recebido o largo reconhecimento que merece ? Ele pertence à família dos realistas provinciais (não provincianos) – Thomas Hardy e Eça de Queiroz, Dostoievski e Giovanni Verga: refiro-me à natureza, não à qualidade e estatura das respectivas obras, sem qualquer restrição implícita ao autor brasileiro.
 

Assim, por exemplo, Bertolino, no romance do mesmo nome: “Ele existiu. Nascido, criado e vivido em Imbaúbas, pequena cidade situada na zona sul do estado de Goiás, fez-se muito conhecido dos seus conterrâneos. Ainda hoje muita gente lá se lembra daquele homem enorme, possuidor de várias singularidades e peculiaridades individuais extremamente marcantes e notáveis, e que, por caisa disso, viveu uma vida bem diferente de quase todos os demais filhos de Imbaúbas”. Essa a matéria do romance: segundo a fórmula consagrada da picaresca, Bertolino é praticamente um enjeitado, criado de favor por parentes e amigos enquanto se encaminhava para uma existência em que os episódios se sucedem por aluvião, sem qualquer ligação orgânica entre eles. Era um “nego-dado”, costume de outras eras, o que já é uma circunstância roma nesca, vida de aventuras, espertezas e golpes variados, sem excluir o crime, na melhor tradição do gênero. É, ao mesmo tempo, o romance de nossa vida política numa pequena cidade do interior, tema de atualidade permanente e lições jamais aprendidas.
 

No que se refere à observação realista, eis um instantâneo do Brasil e de sua gente: “Ah! a estrada de Imbaúbas, Teófilo Ferreira Noronha agora sabe que mais hora menos hora estará em casa: ver a Celina, o Balduíno, aquele terreiro, aquele matinho, e logo adiante, aquele cerrado. Até da bica padecia saudade. Depois de tanto tempo fora, sofrendo naquela Ipameri dura de roer. Tolerando vida de soldado, a metidez do capitão Alpino, a severidade misturada de desinteresse do Sargento Silveira. (...) Teófilo avista uma chacrinha na beira da estrada, a casa tafulhada lá no fundo, meio escondida atrás de uma moita de bananeiras e uma gameleira muito copada. Nem parece ter gente lá. Jinelas fechadas. A porta tembém. Muito chué. Será aquela casa a da tal Josefina mulher da vida que o Aniceto falou que morava logo depois da saída da cidade? Pode ser. O Aniceto neste momento decerto está na casa da Lica. Bobão. Mania de procirar rapariga (...)”.
 

Essa a arte narrativa de Alaor Barbosa, arte de um momento típico que desapareceu no buraco negro da história. É, certamente, um escritor de talento que a crítica brasileira contemporânea não pode ignorar.

 

 

 

 

22.10.2007